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sábado, 1 de junho de 2019

"O que muitos andaram para aqui chegarmos." - Andanças de exílio para conquistar o horizonte



Deixem-me começar por uma quadra de Daniel Filipe, do seu livro Pátria, Lugar de Exílio (1963): “Pátria, mas terra agreste; / terra, apesar da morte. / Pátria sem medo a leste. / Lugar de exílio a norte.” Esta quadra não entrou no arranjo musical que deste poema fez Luís Cília em 1973, no disco “Contra a ideia da violência”, mas bem podia ter entrado!
Se trago estes dois nomes para começar a falar do livro que para aqui nos convocou - O que muitos andaram para aqui chegarmos (Bruxelas: Poemar, 2019) -, tal deve-se ao facto de Daniel Filipe ser um bom poeta do exílio e ter sido perseguido pela polícia política, como vários dos participantes na obra de que hoje falamos, e ao facto de Luís Cília (que foi incentivado a musicar poetas pelo próprio Daniel Filipe) ter sido uma referência para muitos exilados portugueses, designada e assumidamente para um dos participantes nesta antologia testemunhal, Manuel Jorge Gonçalves, que o conheceu em Paris.
Mas há ainda uma outra razão para terem sido estes versos de Daniel Filipe os escolhidos: é que eles condensam muito do que sobre o exílio se possa dizer em termos de expressão literária - o exilado tem de dar corpo à contradição, vivendo a ausência e assumindo esse estar fora com dor (“Pátria, mas terra agreste” é verso que reúne esse estar preso e estar distante em simultâneo, um paradoxo da existência que vai muito para lá da geografia); o exilado procura a utopia para se salvar (“lugar de exílio a norte” é o verso que bem explica o conforto que Maria Augusta Seixas vai encontrar em Bruxelas, a que chama a “casa dos desertores”, abrigo e porto seguro, ou o paraíso que o já citado Manuel Jorge Gonçalves vai descobrir no país que o acolhe, quando exclama: “Bélgica, terra de liberdade, tão mais progressista e evoluída!”). 
Estão assim projectadas duas linhas de leitura que determinam este livro: por um lado, o registo testemunhal do exílio, vivido e sentido, como experiência dos limites e como risco indispensável para dar corpo à existência; por outro lado, a Bélgica e Bruxelas como unidade de espaço, varanda de ver o mundo e desejar o futuro, comum a todos os intervenientes nesta obra.
O livro conta com dez testemunhos e uma justificação, constando esta no capítulo que encerra o volume, em cujo título se questiona Maria Manuel Gandra: “E as mulheres?” Com efeito, das dez colaborações apenas uma é assinada por uma mulher, Maria Augusta Seixas; contudo, tem razão Maria Manuel Gandra quando refere que elas estão “na sombra, discretas e seguras figuras de segundo plano”, apesar de esse “segundo plano” não estar isento de heroísmo, de luta, de dor, de sonho, afinal os mesmos ingredientes que fizeram mover os homens que por aqui passam - é que praticamente todos os textos são povoados pela figura feminina, independentemente de ser a namorada ou a mãe, a companheira ou a protectora dos refugiados, a mulher humilhada por um agente da PIDE ou aquela que é trazida a Portugal e acaba por se deixar adoptar também pela pátria de exílio do companheiro.
Bruxelas foi encarada como “porto seguro” por todos estes “pássaros de arribação” (metáfora que é usada no curto texto introdutório) depois de um voo rasteiro, demasiado rasteiro para não dar nas vistas, com passaporte falso, sob a protecção das sombras da noite, num itinerário “a salto”, calcorreando estradas de fronteira e Pirenéus, vivendo a insegurança e o medo, tudo numa “rocambolesca viagem para o exílio”, como a classificou Carlos Marum.
No horizonte que ficava para trás, estava a polícia política, estava a guerra colonial iminente e impositiva no trajecto de cada um, estava a militância política e obrigatoriamente clandestina. No horizonte que ficava para trás, estava também um tempo em que, como refere José de Matos, “desconfiança era a palavra que filtrava tudo o que ouvia”. Tão intensa era essa treva do receio de dizer e de pensar que Vítor Ascensão reconhece que, mesmo fora de Portugal, “durante muito tempo, viveu com os pesadelos de medo, de insegurança e fragilidade” e “o sentimento de que qualquer coisa [pudesse]acontecer acompanh[ava]-o”.
A insegurança vestia, muitas vezes, a roupagem da ilusão, obrigando estes actores a um regime de atenção e de cuidado, sobretudo na percepção do perigo, como aconteceu com José Matias, quando lhe apareceu uma personagem a querer formar um grupo para uma invasão na ilha da Madeira, criatura que não era outra coisa senão um informador, um “bufo”, que pretendia chegar ao topo da organização política de oposição com que Matias simpatizava.
No trajecto até Bruxelas, havia a França, com paragem em Paris por tempo variável. Era a oportunidade para encontros com outros exilados, para um olhar já mais higiénico sobre o mundo - recorda José de Matos que entrar em França “foi lavar as roupas bolorentas dos regimes fascistas de Portugal e Espanha”. As ruas de Paris foram também o espaço que permitiu a alguns participarem no Maio de 1968, como foi o caso de José Coelho, que sentiu o fascínio de “ver a liberdade com que aqueles milhares de pessoas se manifestavam a reivindicar uma mudança de um sistema autoritário vigente para um sistema com maiores liberdades.”
Contudo, o apelo mais forte vinha de Bruxelas, ali onde lhes era possível deixarem a clandestinidade e reapropriarem-se da identidade, através do estatuto de refugiado político atribuído pela ONU. A cidade era, além disso, o novo mundo, terra de abundância e de trabalho, de liberdade, onde, depois da fuga de um “país triste, acabrunhado, onde o lindo céu azul de Lisboa parecia cinzento” e “podia desabar na cabeça a todo o momento”, como evoca Maria Augusta Seixas, valia a pena o trabalho (muitas vezes, de sobrevivência), o esforço, numa capacidade de adaptação e de mudança impressionantes, alicerçadas na convicção e na esperança.
Os textos até aqui citados caracterizam-se sobretudo pela marca da memória e do testemunho, num contar da experiência pessoal, vários deles redigidos por outro que não o protagonista do que é contado e um deles sob a forma de entrevista. Ressalta em todos um balanço positivo do percurso feito e a passagem do testemunho à escrita afigura-se como uma forma de reencontro ou de aproximação ou de partilha, como descobre Carlos Melro no final da sua prestação: “Acabei por dizer coisas em que nunca tinha pensado, contei histórias que nunca tinha contado, mas tudo saiu espontaneamente.”
Restam ainda por referir dois textos, o de Diogo Pires Aurélio e o de Fernando Gandra. Não porque o percurso até Bruxelas tenha sido diferente ou porque as dificuldades tenham sido menores, mas porque, na sua concepção, estes dois textos ultrapassam o registo do testemunho e deixam-se impregnar pela literatura.
Diogo Pires Aurélio, ao puxar “Vocabulário do exílio” para título, abre o caminho da liberdade da semântica, selecionando palavras, expressões, acrónimos e datas como “a salto”, “carta”, “clandestino”, “comboio”, “esquemas”, “guerra”, “nevoeiro”, “noite”, “ONU”, “STIB” e “25 de Abril de 1974” para, a propósito de cada uma das entradas, contar a sua história. Cada uma delas adquire um novo significado para lá da marca denotativa que o dicionário lhe confere, da mesma maneira que o narrador, por vezes, é independente da personagem sobre quem conta, um tal D., que se percebe ter sido um empréstimo do autor ou que narrador e personagem se mesclam, como se num vaivém entre os arquivos da memória e os acontecimentos tornados presente. Por estas onze secções passam os momentos de glória e de medo e as pequenas histórias que carregam a marca do desespero do momento; passa ainda a reflexão, em termos muito pragmáticos e em tom de resposta antecipada às conjecturas do leitor, para ajudar a entender atitudes que só existiram por causa das circunstâncias, por causa do sofrido.
“Porque não há vento?” é a questão trazida para título por Fernando Gandra, num texto de metáfora forte, enveredando por uma escrita poética, de imagens intensas, em que o leitor é logo desafiado a observar a gare de Austerlitz, onde passam “milhares de portugueses numa aflição calada” ou, depois, levado até Bruxelas, onde “a saudade é uma lâmina sangrenta que nada pode contra a inflamação do longe”. Mas o texto rapidamente adquire um tom épico ao enumerar as razões que os candidatos ao estatuto de refugiado político apresentavam, chamando as razões de um colectivo, que vão configurando também o retrato da alma de um país (se é que ela não estava também em fuga!): “fugimos do Cais de Alcântara e dos seus lenços de adeus até ao meu regresso que era os mesmos que acenavam na Cova da Iria altar do mundo (...) / fugimos da naftalina e do quanto mais me bates mais tenho ciúmes e anda encosta o teu peito ao meu / (...) / fugimos dos raciocínios do contumaz almirante Américo que sofria de microcefalia (...)”, etc. No total, dezoito recorrências anafóricas, todas pintando um país que fora abandonado e era satirizado em cada um dos motivos apresentados.
Numa segunda parte, o texto de Fernando Gandra aproxima-se da escrita biográfica, traçando o seu perfil na terceira pessoa e concluindo com a afirmação da identidade da actualidade: “Anos depois, cansado da bruma, optou pelo sol e dedicou-se exclusivamente à escrita, a sua vocação de sempre.” Um terminar que justifica o rasgo literário posto neste texto de memórias!
Mas até onde se projectava o horizonte de todos estes intervenientes e autores e actores dos seus percursos? Esse horizonte, que a utopia prometia e que a luta pela vida caldeou, foi comum a todos eles, cristalizado numa data repleta de promessas e de esperança: o 25 de Abril de 1974. Fernando Gandra refere que esse dia fez com que tivesse “terminado o Portugal teologal”; José de Matos não consegue descrever o que sentiu, apenas “uma alegria, uma coisa grande”; outros revelam que acreditaram com reservas; outros viveram o dia normal de trabalho, porque tinha de ser e talvez porque fosse preciso ver... Mas aquela quinta-feira acabou por tocar todos, uns com a ânsia de regressarem, outros observando a distância, uns a querem descobrir a diferença possível relativamente àquilo que tinham deixado, outros a assumirem a continuidade em Bruxelas... no entanto, sempre com a ideia de que o horizonte tinha sido conquistado.
Enfim, O que muitos andaram para aqui chegarmos. é um repositório intenso de emoções e de humanidade, um bom retrato do exílio na literatura, um contributo para mapear as distâncias entre o país triste que foi abandonado e o país reencontrado. Vale por isso este livro, mas vale ainda, e sobretudo, para percebermos que o “aqui” que se afirma no título é o sinónimo do “hoje” e do nosso estado, possível pelo que outros, muitos, andaram e lutaram, registo que a memória deve ajudar a ser incorporado na nossa identidade para que o presente valha sempre a pena, não apenas porque estamos cá, mas porque ele foi construído também por aquilo que muitos andaram.

(Na apresentação do livro, em 30 de Maio de 2019, na Fundação José Saramago, em Lisboa)

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Contar o exílio em "O que muitos andaram para aqui chegarmos"


O que muitos andaram para aqui chegarmos (ed. Poemar) é um livro colectivo em que se testemunha o exílio, a vida de recusa de injustiças impostas como a guerra colonial ou a prisão pela PIDE; em que se partilha a experiência dos riscos, dos medos, das solidões; em que se inventaria o tempo desse sofrimento. São dez autores, todos eles tendo sido exilados: Fernando Gandra, José de Matos, Vítor Ascensão, Carlos Melro, José Matias, Maria Augusta Seixas, Diogo Pires Aurélio, Carlos Marum, Manuel Jorge Gonçalves e José Coelho. Em comum, têm o facto de terem desaguado em Bruxelas, o espaço que lhes abria a sua utopia.
A apresentação será na Casa dos Bicos (Fundação José Saramago), em 30 de Maio, pelas 18h30.
Convidados.