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sábado, 18 de novembro de 2017

Diogo Ferreira e Marquês de Sousa: Lembrar os combatentes setubalenses da Grande Guerra



Num tempo em que se assinala a memória do que foi a Grande Guerra de 1914-1918, aquela que depois se pensou ser a última de todas as guerras (!!!), é bom que essa evocação não passe apenas pelas datas dos feitos militares, mas que relembre sobretudo os homens e as mulheres que nela intervieram de forma directa ou indirecta. Tão importante como saber as causas e as consequências será conhecer quem foram os heróis que por lá passaram, durante anos remetidos para o anonimato, lembrados num culto (importante, mas esquecendo os nomes) ao “soldado desconhecido”, e muito pouco recordados como personagens reais de um não menos real sofrimento, adviesse ele das condições da guerra, das instabilidades causadas nas relações familiares, da dor sentida, fosse ela física ou psicológica.
Setúbal, felizmente, entrou desde cedo no percurso da memória, ao ter, logo em 1924 (ano da criação da Liga dos Combatentes da Grande Guerra), a sua sub-agência desta organização, aqui presidida pelo médico e professor Cipriano Mendes Dórdio, ao conseguir, sete anos depois, em 1931, erigir o monumento de memória aos combatentes e ao ter implantado na toponímia referências a esse acontecimento avassalador, pela surpresa e pelo desgaste, que foi a Grande Guerra.
Diogo Ferreira e Pedro Marquês de Sousa meteram mãos à obra para nos dizer quem foram os combatentes do concelho de Setúbal, por onde andaram, o que sofreram, ao publicarem a obra Os Combatentes do Concelho de Setúbal na Grande Guerra em França (1917-1918), editado em Julho pelo Núcleo de Setúbal da Liga dos Combatentes. Trata-se de uma obra indispensável para a cidadania e para a memória setubalenses, apresentada em quatro importantes grupos: a contextualização do que foi a Grande Guerra e a forma como Portugal nela se integrou; os registos biográficos dos cerca de 210 combatentes de Setúbal e de Azeitão que partiram rumo à Flandres (alguns tendo combatido também em África na primeira fase do conflito); o cenário da hierarquia e organização militar em que os setubalenses intervieram, com indicação das missões que lhes estavam cometidas; a história e o papel da Liga dos Combatentes da Grande Guerra em Setúbal nos seus sete anos iniciais (até à inauguração do monumento aos Combatentes).
Passa o leitor por cerca de duas centenas de páginas em que se desenrola o filme da guerra, com os seus actos em grupo, e em que se convive com cada um dos combatentes naquilo que pode ser dado pelas fichas militares e do arquivo da própria Liga, sendo possível encontrar: irmãos em combate (os Conte-Turpia e os Lápido Lourenço, por exemplo); “um dos setubalenses que mais tempo serviu na Grande Guerra” (Barbosa Cardoso); um combatente que se apaixonou por uma francesa (Morais Teixeira); “um dos setubalenses com maior número de louvores por ocasião da Grande Guerra” (Barros Carmona); outro que integrou a histórica e lendária Brigada do Minho (Centeno Júnior); os vários que combateram La Lys em 9 de Abril de 1918; os vários que foram feitos prisioneiros na sequência de La Lys (indo, sobretudo, para os campos de Friedrichsfeld, Munster II e Dulmen); os muitos que foram punidos (por se apoderarem ilegitimamente de bens alheios, por jogarem a dinheiro, por não cumprimento do regulamento militar, por desrespeito à hierarquia, por falsificação de documentos, etc.); os condecorados pelo estatuto de herói (como foi o caso de Manuel Bernardino de Almeida, por “socorrer a população, tirando dos escombros os mortos e os feridos”); um combatente poeta e fadista, que também divertia os camaradas, como foi o caso de Vicente José da Silva Penim.
Para lá de toda esta diversidade, é o contacto também com a morte, com aqueles que não puderam trazer a memória mas na memória ficaram - o actual concelho de Setúbal perdeu 9 homens durante esse conflito e, se associarmos os 6 do actual concelho de Palmela (que, na altura, integrava o concelho de Setúbal), o número passa para 15, assim ocupando o segundo lugar no número de mortos e desaparecidos dos concelhos que compõem o distrito de Setúbal, depois de Santiago do Cacém, que teve 12 mortos e 5 desaparecidos.
Esta obra de Diogo Ferreira e de Pedro Marquês de Sousa é de leitura obrigatória para um encontro com a história e para vermos os heróis que a História sacrificou, muitos deles ligados a famílias que ainda hoje existem. A memória da Grande Guerra foi durante muito tempo esquecida em Portugal por variadas razões, mas, a partir deste centenário, temos a obrigação moral e cívica de não deixar que esse esquecimento impere, sendo esta obra um bom contributo para isso. Recordo que, há duas décadas, em Novembro de 1998, em França, o jornal “Le Monde” procedeu a um inquérito sobre os acontecimentos mais marcantes do século XX e a Guerra de 1914-1918 aparecia em quarto lugar, depois da 2ª Guerra Mundial, do Maio de 1968 e da queda do regime soviético; no mesmo inquérito, os jovens entre os 15 e os 19 anos punham a Primeira Grande Guerra em segundo lugar. É verdade que não haverá família francesa que não tenha tido familiar a participar nessa guerra, mas isso só não pode justificar essa intensidade de memória...
De Portugal foram mobilizados mais de 105 mil homens para o teatro de operações na Europa e em África; mais de 55 mil integraram a linha de combate na Flandres; tivemos quase 8 mil mortos, outros tantos feridos, outros tantos prisioneiros e cerca de 6 mil desaparecidos. Não serão estes números importantes para a nossa memória colectiva? É também por isso que o livro de Diogo Ferreira e de Pedro Marquês de Sousa, ao assinalar a epopeia de todas estas pessoas e das que lhes estiveram ligadas, em linguagem acessível e sem deixar que a questão das estratégias e da história militar viva sem os homens que lhe deram corpo, merece leitura atenta e lugar importante na história local setubalense.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

David Magno, um português em La Lys, em 9 e 10 de Abril de 1918



[9 de Abril] “O bombardeamento aberto às 4h15 vai alastrando, crescendo e aproximando-se como um imenso incêndio numa seara. (…)
Estou (…) assistindo (…) ao bombardeamento, ao despejo contínuo dessa cornucópia infernal, que em volta de nós vasa projécteis espantosos, muitos dos quais de trajectória mais curva se ouvem vir, uivando e dando a impressão da morte, a chegar de instante a instante!
A terra treme, o ar vibra, o arvoredo geme e a minha caserna oscila até aos alicerces. Nos seus subterrâneos, como os antigos cristãos que esperam a hora de serem lançados às feras, um punhado de almas rezam a oração do amor da Pátria e um punhado de corações batem uníssono de amor à vida. A igualdade da adversidade os une. Só eu não rezo, com medo de ter medo, mas em compensação alguém o faz por mim!
A ferme vai-se desconjuntando até que por fim vem a ser devorada pelo incêndio. Por aqui e por ali os tectos voam, as paredes fendem e os adobes despenham. A padieira e os umbrais a que me encosto esmagar-me-ão, mas… este é o lugar que o meu brio me determina! (…)
Chamo os poucos homens que me restavam, formo-os e parto mas, entretanto, a deslocação de ar produzida por uma granada de grande calibre sacode-nos. Os meus soldados lançam-se por terra para escaparem aos estilhaços e alguns até correm a procurar abrigos detrás das paredes de lona de uns anexos ao alojamento como se fossem paredes de aço! Depois erguem os olhos espavoridos para mim que, levantado, tenho rebuço de curvar a cabeça à morte que passa e continua a passar, assobiando árias macabras…
O espectáculo é como os nossos sentidos, habituados a bombardeamentos, jamais tinham visto. Campos de esmeralda a serem pontuados pelas explosões. Altos choupos decepados como vidas que desaparecem. O nevoeiro a envolver tudo em mais escura tragédia, porque o sol se recusa a iluminá-la. (…)”

[10 de Abril] – “Neste segundo dia, o fogo passou a ser mais renhido, incluindo granadas de gás, e as perdas sensíveis , principalmente entre os escoceses.
Com efeito, adiante de nós todos, nas primeiras e segundas linhas, já não existe desde ontem senão um extenso sepulcro português. Tantos corpos desfeitos na lama flamenga, embora com suas almas nimbadas de glória, devem sentir o peso das tropas e viaturas de um exército imperial. Os que não se renderam morreram. Sem dúvida, os mais heróis são estes. Os mais habitual e ingratamente esquecidos os mesmos. Mártires todos, sem deixar de contar os mutilados, feridos e gaseados. A aumentar o horroroso quadro, cadáveres inimigos em número muito superior se misturam com aqueles. Bandos de corvos, como águias negras, prussianas, vão assinalando a marcha vitoriosa.”
David Magno. Livro da guerra de Portugal na Flandres (vol. 1).
Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1921

quinta-feira, 16 de maio de 2013

A batalha do 9 de Abril de 1918 vista por Ferreira do Amaral



A batalha do Lys, conhecido feito militar em que os portugueses participaram em Abril de 1918, no decurso da Primeira Grande Guerra, quando estavam em campanha na Flandres, nem sempre reuniu o consenso na interpretação, sobretudo dentro de Portugal. Prova disso é a obra de João Maria Ferreira do Amaral (1876-1931) intitulada A batalha do Lys, a batalha de Armentières ou o 9 de Abril (Lisboa: Tipografia do Comércio, 1923), escrita quando o autor estava em Benguela, por 1920, inicialmente publicada “em folhetim no Jornal de Benguela”, depois em separata de um milhar de exemplares pelo mesmo periódico e, posteriormente, em volume autónomo, em Lisboa.
As razões para tal publicação, surgida no jornal logo dois anos depois do acontecimento da La Lys (e em livro cinco anos depois), refere-as o autor em “Explicação prévia”: “nunca será demais marcar factos que tão deturpados têm sido pela confusão política, que sobre tudo o que respeito diz à nossa participação na Guerra, se tem dito e escrito”. Assim, pisando um caminho em que é dada a voz justamente ao homem que coordenou o ataque à frente portuguesa, o general Erik Ludendorff (1865-1937, através da sua obra Souvenirs de guerre, de 1920), e ao general Gomes da Costa (1863-1929), que estivera nas funções de comando do Corpo Expedicionário Português na Flandres (através do seu escrito Batalha do Lys), Ferreira do Amaral insiste nas preocupações que o orientaram: elaborar “um vulgaríssimo trabalho de compilação e sobretudo um relato de pessoas, lugares, factos e datas, que a actual geração portuguesa não pode nem deve ignorar” e “apresentar os factos sem paixão, colocando-me tanto quanto possível como árbitro”. Assinalar essa ausência de paixão esbarra com o percurso do próprio autor, que esteve na Flandres e que, num outro livro, A mentira da Flandres e… o medo! (Lisboa: Editores J. Rodrigues & Cª, 1922), redigiu curta nota biográfica logo na página de rosto, dizendo que, enquanto esteve em França, “nunca quis vir de licença a Portugal” e que “marchou para França sem lhe competir por escala ou por escolha, mas simplesmente coagido por motivos de ordem pessoal e razões de ordem puramente militar”… No entanto, Ferreira do Amaral mostra-se coerente, pois não fala da ausência de paixão sem reconhecer também que desempenhará o papel de árbitro “tanto quanto possível”.
A primeira frase da sua monografia retoma o que vem da “explicação”: “Como é do conhecimento de todos, ninguém em Portugal chegou até hoje a ter uma noção aproximada do que foi o 9 de Abril”. Mas não é apenas esta ignorância que preocupa o autor, porque, umas linhas adiante, a acusação tem destinatário: “Toda a política do meu país, dos últimos seis anos, caiu [itálico do autor] sobre os soldados de Portugal, que na Flandres receberam um dos muitos e vários ataques com que os alemães procuraram vencer os aliados”. Uns parágrafos depois, o humor e a ironia de Ferreira do Amaral não perdoam as diferentes interpretações atribuídas aos democráticos e aos sidonistas, uns e outros culpando-se quanto à responsabilidade do que se passou na Flandres: por um lado, esqueceram-se ambas as ideologias “de que o general alemão Ludendorff não consultou nenhum dos partidos políticos de Portugal para tomar a deliberação de forçar o caminho de Calais nesse dia”; por outro lado, “ambos os adversários chamam desastre ao que se passou nesse dia com os portugueses, que procuraram evitar o avanço alemão até onde o seu máximo esforço o permitia”, sendo “caso para notar uma falta que ambos os partidos cometeram para se poderem acusar mutuamente – foi a de não terem enviado a tempo delegados especiais para assistirem ao desastre!”
Depois de acompanhar as leituras apresentadas por Ludendorff e Gomes da Costa, Ferreira do Amaral tenta desfazer os equívocos, apresentando os acontecimentos do 9 de Abril de 1918 como um episódio de um projecto mais vasto, ligado à estratégia militar e bélica germânica, de uma ofensiva que se iniciara em 21 de Março e teve conclusão em 18 de Julho (quando os franceses passaram a “muralha” dos alemães, assim se iniciando uma ofensiva dos aliados): “Não se julgue que o 9 de Abril se resumiu a um ataque isolado contra os portugueses, que estavam nesse dia a defender 12 quilómetros de frente. Até 25 de Abril, houve todos os dias… um 9 de Abril para ingleses e franceses, isto é, a batalha começou em 9 de Abril e acabou em 25 de Abril. (…) A anterior batalha [de Amiens] começara a 21 de Março e terminara a 4 de Abril. À batalha começada a 21 de Março chamaram os alemães a batalha da França. À que começou em 9 de Abril chamaram aliados e alemães a batalha de Armentières. Nós tomámos parte em um dia dessa batalha, o começo, e o general Gomes da Costa chama-lhe a batalha do Lys reservando assim um justo título para o nosso esforço entre os aliados, pois que nós não defendíamos Armentières, mas sim parte da bacia da ribeira de La Lys.” Se ainda assim se mantivessem os detractores da coragem portuguesa, Ferreira do Amaral deixava a lembrança: “de 18 de Julho em diante, tivera Ludendorff muitos 9 de Abril, tal qual ingleses e franceses os tiveram de 21 de Março até essa data”. E, para que dúvidas não restassem, uma citação do amigo e camarada Gomes da Costa enaltecia a participação lusa: “a 2ª Divisão Portuguesa com os seus 7500 homens perdidos, dos quais 327 oficiais, demonstrou à evidência que se bateu com bravura e com honra e que, se mais não fez, foi porque era humanamente impossível”.
O plano alemão de, através desta ofensiva, conseguir chegar a Calais e assim dominar o Norte de França não começou favoravelmente para os seus autores e, em Julho, teria o seu termo. Pelo caminho, muitos momentos semelhantes aos do sofrimento e luta dos portugueses ficaram: “que a ninguém fiquem dúvidas sobre o destino que uma divisão francesa, inglesa ou americana teria no dia 9 de Abril se estivesse onde esteve a 2ª Divisão Portuguesa – quem lá estivesse seria esmagado, atropelado e… varrido.”
Para atestar o feito português, o autor não hesita em convocar excertos de reconhecidíssimos órgãos de informação (Reuter, Times, Daily Mail, Matin) que foram elogiosos na classificação da atitude lusa. Mas o humor de Ferreira do Amaral avança, questionando os maldizentes: “Que situação resta agora aos mortos, feridos e sobreviventes da batalha do Lys?” A resposta é longa, sugerindo que talvez todos tenham de “pedir desculpa ao cidadão português”, uns porque não resistiram “à caqueirada de ferro”, outros por “não lhes ter sido possível morrer” e outros “por não terem fugido logo de manhã”…
O próprio comandante do CEP, o general Tamagnini de Abreu (1856-1924), não é poupado, sendo invectivado de forma contundente: “O que diz do 9 de Abril o general português Tamagnini de Abreu, comandante do CEP? Até agora não disse nada nem dirá nunca, porque as maçadas estão proibidas”. E os políticos também não escapam a acusações e ironias: “Ludendorff nesse dia atacou os soldados de Portugal que encontrou pela frente e deixou em paz todos os nossos políticos”.
É, pois, sugerido ao leitor que aqueles que foram heróis estão isolados e desprezados, mesmo quando o valor lhes é reconhecido por alguns. No entanto, este livro quer repudiar essa ideia transmitida pela depreciação e conclui com uma lição sobre o mérito, depois de mais um libelo contra quem desprestigia uma condecoração como a Cruz de Guerra Portuguesa, contra os comentários depreciativos movidos pela inveja e pela mesquinhez: “em qualquer dos países que se bateu nesta guerra, vencido ou vencedor, [o soldado português] sentiria que era duas vezes cidadão: primeiro porque tinha uma bandeira que representava para todos (…) um símbolo de tradições honrosas (…); segundo, porque os seus compatriotas se sentiram honrados por Eles e pelo Seu Esforço Particular e Pessoal no campo aberto aos maiores sacrifícios”.
Em pouco mais de sessenta páginas, Ferreira do Amaral pretendeu chamar a atenção para o estado do CEP, para as dificuldades que lhe tinham sido criadas e para a singularidade do combatente português. Foi uma maneira de dar azo a que a verdade saltasse e a que a história fosse reconstruída.
[Esta obra está disponível no formato e-book]

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Em La Lys, na Flandres, há 94 anos

Na obra Notas do Cativeiro – Memórias dum Prisioneiro de Guerra na Alemanha [Lisboa: J. Rodrigues & Cª (depositário), 1919], Adelino Delduque ocupa o primeiro capítulo, intitulado “De Cense de Raux a Salomé-La Bassée”, transmitindo a visão do que ficou do 9 de Abril, dia da batalha de La Lys.
Datado de “Rastatt, Abril de 1918”, este texto é a memória do momento em que o narrador e camaradas seus (entre os quais o então tenente-coronel Craveiro Lopes) foram feitos prisioneiros pelos alemães em 9 de Abril. Depois da descrição do saque produzido pelos soldados inimigos aos souvenirs (“termo extremamente singelo e não sei se quase carinhoso, à sombra do qual fomos ficando sem as coisas que lhes iam apetecendo e que para nós em não sei quantos casos tinham além do seu valor intrínseco o da recordação que representavam”) que eram os objectos de uso pessoal (artigos de toilette, relógio, carteira, casaco e outros), torna-se forte a impressão causada pela destruição, pela ruína – dos homens e dos sítios:
«(…) A barragem de artilharia, essa música ensurdecedora e horrível de nove horas consecutivas, ouve-se já a maior distância. (…) Agora vamos ao longo da rua du Bois, antiga estrada que atravessava as linhas e que entre elas estava quase desaparecida. (…) A todo o longo há um horroroso espectáculo de carnificina. Jazem a um e outro lado numa verdadeira igualdade, nesta que só nestas condições é verdadeiramente igual, soldados nossos e inimigos. Há-os desfigurados, disformes, contorcidos, despedaçados, as mãos crispadas, o rosto profundamente contraído, mostrando bem o horror do sofrimento em que se debateram e em que morreram. Lutaram como soldados e diz-nos o aspecto que nos últimos momentos em que os rostos da lucidez lhe avivaram memórias que não falham, sentimentos que se não perdem, lutaram ainda desesperadamente para viver. (…) Foi por entre este horrível espectáculo que atravessámos as linhas. (…) O efeito do nosso bombardeamento íamo-lo encontrando a cada passo. Havia muitos cavalos mortos, muitas viaturas em destroços. Infelizmente, porém, não fora o bastante. (…)»

Adelino Delduque da Costa (10.Jun.1889-25.Jun.1953), natural de Viana do Castelo, foi oficial do Exército. Passou à situação de reserva como coronel em 1948. Participou no CEP, tendo sido feito prisioneiro em 9 de Abril; leccionou no Instituto dos Pupilos do Exército e no colégio Militar; foi Chefe do Estado-Maior do Estado da Índia e Governador do distrito de Damão. Pertenceu ao Instituto Vasco da Gama e à Comissão de Arqueologia do Estado da Índia. Foi autor de Notas do Cativeiro – Memórias dum Prisioneiro de Guerra na Alemanha (1919), Diu – Breve notícia histórica e descritiva (1928) e Os Portugueses e os Reis da Índia (1933).

sábado, 9 de abril de 2011

Sobre o 9 de Abril [de 1918], em La Lys, na I Grande Guerra

«França, 11 de Abril de 1918
Minha muito querida Helena
(...) Quando receberes esta carta já saberás decerto que os boches fizeram um grande ataque à frente da nossa divisão da linha e de mais duas divisões inglesas. Executaram-no com 5 divisões sobre 3 divisões aliadas. A nossa estava no meio. Iniciaram-no com um bombardeamento brutal. A nossa gente aguentou-se lindamente, mas os ingleses cederam nos flancos, de um e de outro lado das nossas forças, e a nossa não se podendo aguentar mais teve de retirar. A luta foi épica; os homens portaram-se como leões. O terreno disputado palmo a palmo, a baioneta em luta corpo a corpo. As peças de artilharia disputadas a tiro de espingarda. (...)
Perante a superioridade esmagadora do número, as nossas tropas retiraram e estão agora concentrando-se cá muito à retaguarda. Outras divisões inglesas e escocesas de reserva é que estão agora lá disputando o terreno aos alemães.
As nossas tropas estavam para sair nesse mesmo dia das trincheiras e virem todos descansar à retaguarda. Foi pena que não tivessem saído um dia antes ou o ataque não tivesse sido um dia mais tarde. Todos os nossos batalhões tinham efectivos reduzidíssimos, pois de Portugal não vêm reforços desde o fim de Novembro. Se tivessem vindo, estou certo que não recuaríamos nem um passo e teríamos repelido os alemães. Mas, para protegerem meia dúzia de meninos que não querem vir como é seu dever, sacrificam-se todos os que cá estão. O não mandarem reforços é o maior crime que essa gente tem cometido. (...)»

Quem assim escrevia a partir da Flandres era o então major Manuel Maia Magalhães, em carta dirigida à esposa. No dia seguinte, em nova carta para Helena Bravo Torres, corrigia os números, escrevendo: «Disse-te que eles atacaram com 5 divisões contra uma nossa e duas inglesas, mas não foi: atacaram com 8, isto é, com 80 000 homens de infantaria além de muita artilharia as 3 de cá.»
Estas cartas, bem como as restantes enviadas a sua mulher, tiveram publicação recente, em edição organizada por Vitorino Magalhães Godinho - Manuel Maia Magalhães. Correspondência da Grande Guerra. Col. "Biblioteca de Autores Portugueses". Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2010.

Só um aparte: vi alguns jornais de hoje; nem uma palavra sobre a efeméride. A memória tem destas coisas!...