quinta-feira, 28 de abril de 2022

Maria Antónia Palla: as causas e a felicidade



O livro começa com uma evocação dos avós paternos - “Em casa dos meus avós paternos havia um relógio de cuco de madeira preta, que chamava a minha atenção.” A curiosidade despertada pela avezita associava-se ao mistério daquela utilidade até ao momento em que “o avô ensinou a ver as horas”, tempo de deslumbramento “por ter adquirido um conhecimento que já não pertencia só aos adultos”. Aprender a noção de tempo, a mais difícil de se dominar, fez ecoar uma outra, vinda também por intervenção dos avós - “Os avós ensinaram-me muitas coisas. A mais importante, que traçaria o caminho da minha vida, foi a palavra liberdade.” Cerca de uma centena de páginas adiante, a narrativa é rematada, ainda lembrando os avós, com uma alusão a Abril de 2005, quando a autora-narradora tinha já 72 anos, depois de receber a Ordem da Liberdade das mãos de Jorge Sampaio - “Nesse dia, fui ao nosso jazigo, no Alto de S. João, e levei aos meus avós um ramo de rosas vermelhas.”

Quem assim traça o seu auto-retrato é Maria Antónia Palla, no livro O relógio de cuco (Edições Húmus, 2021), coligindo memórias de um tempo compreendido entre a infância e Maio de 2018, quando a Sociedade Portuguesa de Autores lhe atribuiu a Medalha de Honra.

Ao longo da narrativa, que segue o rumo cronológico, a escrita é predominantemente substantiva, resguardando a adjectivação para o essencial, consequência da prática jornalística - “O jornalismo foi a minha única profissão. É um trabalho exigente, física e intelectualmente, que exerci com prazer e paixão.” -,  característica que assinalará ao comentar a frase “ela escreve como um homem”, proferida pelo director do “Século Ilustrado”, Francisco Mata, aquando da sua entrada para colaboradora desta publicação - “Penso que ele queria dizer que eu escrevia sem manifestações de estados de alma.”

Se a infância e a juventude, os casamentos, a morte da filha e a chegada do filho se cruzam nesta retrospectiva, dois outros aspectos determinam o conteúdo essencial desta narrativa - a profissão e as causas abraçadas.

O percurso de jornalista lembra momentos tensos - como a proibição sofrida para não publicar trabalhos sobre pedofilia ou fazendo o balanço do Maio de 68, a confusão surgida em 1976 a partir de uma reportagem para a televisão sobre o aborto (que a levaria até ao banco dos réus) ou ainda a descoberta de que as notícias sobre os movimentos de libertação de Angola em 1974 eram “cozinhadas” para favorecimento do partido que chegou ao poder -, embora também por lá passem momentos de fulgor - como o da reportagem de 1970 sobre o carnaval brasileiro enquanto fenómeno social e cultural ou o encontro com Jonas Savimbi na Jamba, entre outros.

Linha forte neste O relógio de cuco é também o envolvimento que liga Maria Antónia Palla às causas que assumiu, rememorando-as com entusiasmo - desde logo, a construção da sua autonomia em jovem, reagindo a uma certa “ditadura em casa”, passando depois por marcos como o feminismo, o sindicalismo, a formação da Liga dos Direitos das Mulheres e do Forum Paz e Democracia em Angola, a Caixa de Previdência dos Jornalistas, a biblioteca feminista Ana de Castro Osório, entre outras.

Quase no final, em jeito de balanço, assume: “Tenho 88 anos. Este autorretrato custou-me a desenhar. É difícil olhar para dentro de nós e seleccionar o que achamos mais importante e pode, eventualmente, interessar a outros.” E, inspirada por Maria Lamas, remata: “A felicidade não existe. O que felizmente existem são momentos de felicidade. Nós, mulheres, devemo-nos preparar para isso.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 835, 2022-04-27, p. 8.


terça-feira, 26 de abril de 2022

A data d’A Garota Não - 2 de Abril



Saiu da maternidade do Hospital de S. Bernardo, em Setúbal, no outono de 1983, para o Bairro 2 de Abril, residência da família. Relembra: “Cresci sem saber o que representava esse nome. Sem saber que oito anos antes, em 1976, a 2 de Abril, se decretava a ‘Constituição Portuguesa’ (...). Fiz-me gente, portanto, num bairro com Nome e circunstância.” É Cátia Oliveira, “A Garota Não”, quem assim recorda o início da sua relação com o bairro que a acolheu, na “New in”, em Janeiro de 2021, sob o título “Carta para o Bairro 2 de Abril, com amor”.

Essa declaração de afecto foi agora retomada, sendo 2 de Abril o título do segundo cd de “A Garota Não”, a correr nos ouvidos desde há dias, obra primorosa pela apresentação delicada, numa embalagem que transforma cada cd num objecto único, invólucro original com um toque artesanal. Peça bonita e cativante, resguarda um lote de vinte canções, embrulhadas em fotografias do bairro, com dupla dedicatória incluída: à mãe, “porque foi com ela que aprendi o que é força e o que é o amor, e que o simples é quase sempre o mais bonito”, e “a todas as pessoas do Bairro 2 de Abril e de todos os Bairros 2 de Abril deste país”.

Por este conjunto de poemas passam: o tom de manifesto (“podem decretar mandar calar-te / (...) / podem decretar o fim da arte / e a gente faz uma canção sobre isso”), o apelo à paz (“que venha quem vier por bem / mas não se trate com desdém / quem tratou deste lugar”), o sonho (“vou pelo sonho, que a vida é poética / quanto me acende este amor / quanto me anima, este amor, quanto me anima”), a liberdade (“o melhor lugar / de qualquer cidade / 1+1 são 3 / quando há liberdade”), a solidão (“esse amor não bate certo / dói que mata a céu aberto / já não sei como tocar-te / tudo em nós agora parte / e eu já não sei...”), a indignação (“não, não vale tudo aqui / a vergonha tem limite / e o status não permite / que nos tratem assim”), o amor (“quand’o amor é bom / tem asas bem compridas, e tão coloridas como baton / seja alti-falado ou só sussurrado e até sem som”), a imagem feminina (“que mulher é essa / que eu vejo na telenovela / as mulheres à minha volta / não se parecem nada com ela”).

Além destes temas, da tradição literária e musical, outros há, dominados pelas circunstâncias vividas na contemporaneidade, como a habitação ou a moda dos alojamentos locais (“eu moro em casa de mãe / casa de mãe é bom / mas é casa de mãe” ou “Começam as obras, que casa bonita! / Começam os guests, fome é infinita / Mais um AL, orgulho nacional, / corrida sem lei, onde vais Portugal?”), os refugiados (“E se voltar a renascer aqui neste lugar / quero ser flor, que a guerra, amor, um dia há-de acabar”) ou a contestação ideológica (como é o caso do poema “Sede do Xega”).

Pelas visitações feitas - a Eugénio de Andrade, Criolo, Fausto, Francisca Camelo ou José Mário Branco, homenageado na última composição -, pela vida que nele perpassa, pela dose de vivências sugeridas, pelos sentimentos que povoam os seus 70 minutos de música, canto (em que também entram as vozes de Xullaji e Ohmonizcente) e poemas, este 2 de Abril de “A Garota Não” é experiência cuja intensidade se sente contra o conformismo e em prol do compromisso.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 831, 2022-04-20, pg. 6.


terça-feira, 12 de abril de 2022

Centésima crónica - Dos livros



De livros, e do que deles fica, se tem falado por aqui. Na centésima crónica, algumas justificações para a leitura e para os livros. Diversificadas, mas sempre com o prazer da leitura e do livro em fundo, por alguns dos que escrevem.
Afonso Cruz: “Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.” - O vício dos livros (2021).
Alice Brito: “Pode-se frequentar um livro, um verso, uma página. Há livros que têm melhor vida que outros. Em carícias, sublinhados, empréstimos, conversas e paráfrases. Há livros que têm mesmo uma vidinha de lordes. Emprestam imaginários, personagens e vistas largas. São referidos, referenciados, estudados com deleite. São lidos por muitos olhos. À noite, de dia, às escâncaras ou clandestinamente. É a vida. Também há alguns que não valem nem o papel que gastam. Só dizem parvoíces.” - As mulheres da Fonte Nova (2012).
Aquilino Ribeiro: “Para uma criança, livraria que ela possa revolver e folhear à vontade é divertida como um presépio e mais instrutiva que uma escola. Frontispícios, gravuras, cul-de-lampes, vinhetas, que curso de humanidades!” - Anatole France (1923).
Dulce Maria Cardoso: "Os livros oferecem-se sem escolha a todos os que os quiserem ler. E, se redimem, fazem-no de forma tão caótica e tão insondável que ninguém poderá ter nisso qualquer esperança. Talvez os livros escrevam direito por linhas tortas. Como Deus." - na antologia O Prazer da Leitura (2011).
Eduardo Lourenço: “O relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas.” - em entrevista a Carlos Vaz Marques, em Os escritores (também) têm coisas a dizer (2013).
Eugénio Lisboa: “Quando um livro nos impressiona e marca profundamente, a seguir a ele, nenhum outro livro nos parece apetecível.” - Vamos ler - Um cânone para o leitor relutante (2021).
João Bigotte Chorão: “Os livros podem fazer um erudito, mas é duvidoso que tornem civilizado quem o não seja.” - Diário 2000-2015 (2017).
José Régio: “Como eu gosto, espapaçado na cadeira, de olhar os meus livros alinhados na estante! São como soldados em fila. E às vezes, caem sobre mim, esmagando-me de visões. Não vejo quase nada. As frases saem-me aos solavancos.” - Páginas do diário íntimo (1994).
José Tolentino Mendonça: “Em tantos momentos da história, os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada.” - O que é amar um país - O poder da esperança (2020).
Maria Judite de Carvalho: “Quem não lê não sabe o que perde. Os livros são os nossos melhores amigos, é uma frase feita mas é uma frase certa. Amigos que nos ajudam, que nos acompanham, que nos enriquecem com o seu saber, que nos dão momentos agradáveis de fuga ao quotidiano ou momentos pouco agradáveis mas necessários de chamamento à pedra da vida.” - Diários de Emília Bravo (2018).
Rita Ferro: “Livros são bússolas que me guiam nos momentos sem Deus, substitutos de um misticismo que não me foi destinado, ou que a vida, com os anos, foi dissolvendo.” - Veneza pode esperar - Diário 1 (2014).
Serafim Ferreira: “O livro será o melhor instrumento para decifrar todos os códigos e desvendar os paraísos artificiais (ou não) que pela eternidade hão de alimentar a aventura do homem.” - Olhar de Editor (1999).
Valter Hugo Mãe: “Nenhum livro se faz sem essa rendição à maravilha em detrimento da verdade.” - Contra Mim (2020).
* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 826, 2022-04-12, p. 11.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (4)



O terceiro folheto de temática bocagiana composto por António Maria Eusébio, o “Calafate”, intitula-se Cantigas para Guitarra dedicadas ao aniversário do grande poeta Elmano, o Bocage, publicação de quatro páginas, surgida em 1911, ligada ao primeiro aniversário bocagiano celebrado no regime republicano.

Em 9 de Agosto desse ano, a Câmara de Setúbal decidira instituir o dia 15 de Setembro, data de aniversário de Bocage, como feriado municipal, tendo a primeira celebração ocorrido durante três dias, entre 15 e 17 de Setembro.

As décimas do “Calafate” relatam o entusiasmo vivido na cidade - “Muita gente madrugou / P’ra ver nascer esse dia, / Até alguém cuidaria / Que não vinha, mas chegou. / N’Avenida se juntou / Nobre, rico e pobre artista, / Todos empregavam a vista / Para as bandas do Oriente, / P’ra ver, em aurora luzente, / O dia quinze setembrista.” A adesão popular, a quantidade de visitantes e o ambiente festivo merecem pinceladas fortes do poeta repórter - “Todo o Povo está contente, / Tem muita razão p’ra estar, / Muitos vivas há de dar / Aos autores desta festa, / Porque outra igual a esta / Só Setembro a pode dar.”

A apologia de Bocage, a sua fama, a necessidade de testemunhar e de dar continuidade à memória são acentuadas neste folheto, constando também algum espírito crítico e adesão à decisão republicana de celebração do nascimento de Bocage, pois os grandes eventos bocagianos anteriores tinham ocorrido sempre na data do falecimento - “Foi festa de luzimento / Que se fez pelo centenário, / Só o seu aniversário / Estava no esquecimento. / No dia do seu nascimento / ‘Stava a praça despovoada, / Estando a memória guardada / Por galegos andarilhos; / Setúbal, p’rós seus filhos, / Tinha uma dívida atrasada.” No meio de tal entusiasmo, António Maria Eusébio tem ainda uma palavra para um dos setubalenses que mais pugnaram pela memória bocagiana, Manuel Maria Portela, falecido em 1906 - “Que glória não teria / Portela, se fosse vivo, / Ele que era tão activo / Nos dotes da poesia.”

Se as outras celebrações bocagianas (inauguração da estátua em 1871 e festa do centenário do falecimento em 1905) tinham sido pontuais, ao ter sido feita a opção pela festa do aniversário estava garantida a continuidade da memória bocagiana e a sua celebração anual, aspectos que o “Calafate” antecipa - “Esta festa tão vistosa / Far-se-á para o futuro, / Para não ficar no escuro / Uma data gloriosa. / Bocage é que já não goza / Do seu alto monumento, / Nem vê o acompanhamento, / Melhor que o seu centenário. / Pobre, rico e operário / Festejam o seu nascimento.”

O folheto conclui com uma ideia que o “Calafate” já expusera nos versos de 1905 - a memória bocagiana ficará incompleta sem que se saiba dos restos mortais do poeta: “Tem aqui sua memória, / Seu corpo onde estará?”

Numa associação feliz, o nome de Bocage seria ainda usado em décimas de cunho publicitário que o “Calafate” redigiu para alguns dos seus patrocinadores, como o Mendes Chapeleiro - “Bocage é bom que apareça / (...) / No dia do seu aniversário, / com algum chapéu na cabeça. / (...) / Vão até ao chapeleiro Duarte, / Que tem lá para escolher.”

Não conhecendo a obra bocagiana pela leitura, António Maria Eusébio conseguiu ser um divulgador da memória bocagiana pela história que lhe foi contada, pelo respeito pela memória e pelo empenho nas coisas e nos acontecimentos da terra que o viu nascer.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 822, 2022-04-06, p. 8.