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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

De 2020 o que ficou do que passou

 

            

Do ano de 2020 todos temos a recordação amarga da pandemia e das suas consequências, que domina(ra)m a nossa emotividade, nos isola(ra)m e nos encaminha(ra)m para a fragilidade da angústia. E, no entanto, o ano de 2020 teve isso e muito mais. Uma edição especial da National Geographic foi-lhe dedicada, mostrando em cerca de 70 fotografias algo do que foi esse “ano inesquecível”.

Logo na capa, um cenário conhecido, que podia ser em qualquer hospital de Portugal, tantos têm sido os testemunhos falados e visuais do esgotamento e da dor de quem está na primeira linha contra a pandemia - mas a foto vem de outras latitudes, de Mons, na Bélgica, onde as enfermeiras Quinet e Cheroual, pela lente de Cédric Gerbehaye, num breve intervalo da sua luta, se apoiam uma à outra, na angústia da espera. De Cheroual, o desabafo: “Nunca imaginei ter uma experiência desta magnitude na minha carreira.”

O tempo de 2020 é mostrado por 58 fotógrafos em 25 países, em quatro partes - o ano “que nos pôs à prova”, “que nos isolou”, “que nos capacitou” e “que não nos roubou a esperança” -, um percurso entre o desafio, o massacre e a luta e vontade de vencer, sempre envolvendo a dose de sofrimento. Tema dominante é a pandemia nos seus efeitos (o vazio físico, práticas da “nova normalidade” - como os eventos no formato digital - e a ausência humana, aqui se incluindo duas imagens de Lisboa despovoada, captadas por Miguel Valle de Figueiredo em Abril) e nas suas lições (a solidariedade e a generosidade, a vizinhança e a amizade, a família). Mas também por aqui passam o ambiente vivido em torno da violência policial (a morte do afro-americano Floyd tem vários reflexos), as migrações em massa e os refugiados, os desastres ambientais, as eleições americanas, o policiamento e a justiça social, as exigências “maori” na Nova Zelândia, as descobertas científicas, a atenção à Natureza (de Portugal, aparece imagem devida a Hugo Marques sobre a nidificação do abutre-preto na região do Douro) ou a luta pelos sonhos (como o da jovem de Madagáscar que quer ser professora e música, apesar da dura vida que tem de enfrentar para poder ir à escola).

A selecção das imagens partiu de um banco de mais de um milhão e meio de registos que os fotógrafos da National Geographic captaram em 2020, quantidade impressionante, é verdade, sobretudo se pensarmos na afirmação de um deles, o americano David Guttenfelder - “a nossa missão é captar toda a energia, todo o caos, toda a emoção, e fornecer ao espectador a sensação de que ele está connosco no meio do turbilhão.” As emoções acompanha(ra)m estes autores que foram capazes de se sensibilizar perante a simplicidade, como foi o caso de Hannah Reyes-Morales ao captar imagens de refugiados e emigrantes na fronteira turco-síria no momento em que nas famílias se cantavam canções de embalar - “eram um pedaço de casa que podiam levar consigo, quase como um santuário portátil”, testemunha.

Os olhos do leitor perpassam por este conjunto de retratos (que não representa o “todo” de um ano, mas uma parte e um olhar sobre esse “todo”) e não podem ficar indiferentes, apesar de já se saber que era assim que o ano tinha acontecido - estas fotos vivem muito mais pela emoção do que pela carga informativa que possam ter, pois, como diz Siddartha Mitter, no ensaio “Um ano no limite”, que abre a revista, “um ano tão bruto não precisava de imagens complicadas”. 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 551, 2021-02-03, pg. 10.