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quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Quando Romeu Correia escreveu sobre Sebastião da Gama

 


Em 28 de Março de 1949, Romeu Correia (1917-1996) lavrava dedicatória no seu romance Trapo Azul (publicado no ano anterior), uma história em torno da confecção de fatos de ganga feitos em Almada e depois distribuídos nos fanqueiros de Lisboa: “Ao Poeta Sebastião da Gama, com a simpatia e a camaradagem do Romeu Correia”. Nessa mesma Primavera, o escritor almadense recebia de Sebastião da Gama (1924-1952) os dois livros que este publicara — Serra-Mãe, de 1945, com a dedicatória “Ao Romeu, romancista de à beira-Tejo e de à beira-(dizem...)-vida. Sebastião”; e Cabo da Boa Esperança, de 1947, com a inscrição “Ao Romeu Correia amigo, do Sebastião da Gama”.

Entre os dois escritores, houve vários encontros, frequentemente ocorridos a bordo do barco que atravessava o Tejo, de Cacilhas para Lisboa — na capital, localizava-se a entidade bancária em que Romeu Correia trabalhava, assim como a Faculdade de Letras ou a Escola Veiga Beirão, espaços frequentados por Sebastião da Gama, primeiro como aluno, depois como professor.

De tais cruzamentos deu notícia Romeu Correia no artigo “Sebastião”, vindo a público no Jornal de Almada, em 10 de Fevereiro de 1968 (republicado, com algumas alterações e diferente título, cinco anos depois, no Boletim Trimestral do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU, em Abril de 1973). Nesse texto profundamente memorialístico e testemunhal, Romeu Correia lembra o primeiro encontro, que terá ocorrido por 1948, descrevendo o jovem azeitonense: “um rapaz de cara redonda, franco e rude, que falava pelos cotovelos”, que, “quando sorria, os olhos alongavam-se-lhe num traço — e era da maneira mais contagiante que ele sorria”; tinha “estatura meã — cheio, sem ser gordo —, a voz um pouco velada e as mãos muito expressivas”; “usava boina espanhola e trajava modestamente.”

No entanto, o que surpreendeu Romeu Correia foi a apreciação crítica do jovem ao romance Trapo Azul, acabado de publicar: “Não teve papas na língua para alguns defeitos encontrados no livro, embora fosse, na sua opinião, das coisas mais vivas e autênticas que conhecia da gente nova. (...) ‘É espantoso! Você escreve como fala! Não usa nos seus livros a linguagem escrita, mas uma linguagem oral!...’ Naquela altura fiquei confuso. (...) Mas o meu interlocutor, apercebendo-se da minha confusão de autodidacta desprevenido, sossegou-me: ‘Não fique molestado por isto! Pelo contrário, você é autêntico, tudo brota de si como a água pura e fresca da rocha! Não tem parentesco com essa malta que anda por aí a fazer uma literatura da literatura! Você é você! Nada de confusões: é autor dos seus defeitos e das suas qualidades.’ E, apressado, como sempre o encontrei nos poucos anos que lhe restavam para viver, apertou-me a mão, muito risonho, os olhos a fecharem-se-lhe num leve traço, como se a vida fosse uma coisa simples, sem nada que a complicasse.”

A citação é longa, mas vale a pena pelo que transmite da essência do poeta de Azeitão — o louvor da autenticidade, a rejeição do artificial, o sentido humanista, a alegria com a vida. E Romeu Correia acrescenta ainda outros valores, como os da convicção católica e do amor e da amizade nas relações humanas.

Estes atributos permaneceram nos encontros que tiveram e na memória do autor de Trapo Azul, assim como a espontaneidade do jovem da Arrábida, que, onde quer que visse o seu amigo, o chamava: “Nos três anos em que o conheci, os meus ouvidos foram sacudidos por gritos seus. Gritos atrevidos, chocantes, escandalosos. Eu ia numa rua, ou num barco de Cacilhas, ou estava num café — e lá vinha o seu tremendo grito! Quando tal sucedia, era certo que o Sebastião me avistara.”

A última memória de Romeu Correia destas saudações assenta nos finais de 1951, a bordo de um “ferryboat” para Lisboa, entre carros e carroças, um grito relacionado com a literatura e com a mais recente obra do autor almadense, Calamento, sobre a vida dos pescadores da Costa da Caparica, publicado em 1950: “Oiço um tremendo grito, que me sacudiu: ‘Ó Calamentoso! Calamentoso!...’ A voz e o atrevimento eram-me familiares (...). Volto-me e aparece-me, por detrás de uma carroça, o Sebastião”, que fez “uma grande festa” e “riu-se (ele ria-se sempre, muito feliz, quando gritava por um amigo)”.

O valor desta crónica de Romeu Correia advém de dois factores: por um lado, pelo tom testemunhal dado sobre Sebastião da Gama, evidenciando características que muitos dos que o conheceram também presenciaram; por outro, pela capacidade que o escritor de Almada (que, em 1952, quando faleceu Sebastião da Gama, tinha três obras publicadas e, em 1968, data da crónica de que aqui se fala, assinara já mais uma dezena de títulos, entre os quais a peça de teatro Bocage) evidencia numa cuidada construção de personagens.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1443, 2025-01-08, pg. 10.


segunda-feira, 31 de julho de 2023

A proibição do primeiro livro de Romeu Correia



Sábado sem sol em 1.ª edição (1947), em 2.ª edição (1975); recorte de O Setubalense, de 13.Agosto.1975


No número 51 do jornal Mundo Literário, de 26 de Abril de 1947, o crítico Nataniel Costa (1924-1995) escrevia sobre “um jovem auto-didata cuja experiência da arte de escrever era quase nula e cuja cultura tem sido adquirida, em grande parte, nas bibliotecas populares da sua terra”, que tinha publicado “um volume de contos, sob vários aspectos, digno da maior atenção.” O autor apreciado era Romeu Correia (1917-1996), almadense, que acabara de publicar o seu primeiro livro, Sábado sem sol, constituído por oito contos.

O Mundo Literário, em cuja direcção pontificaram nomes como Jaime Cortesão Casimiro e Adolfo Casais Monteiro, iniciado em Maio de 1946, teria apenas mais dois números na sua vida - um, em Maio de 1947, e outro em Maio de 1948. A publicação acabou devido a pressões várias, a que não foi estranha a influência do poder político. E, coincidência das coincidências, o livro, publicado cerca de dois meses antes desta crítica (em 5 de Fevereiro), seria proibido em 10 de Maio (duas semanas depois do escrito de Nataniel Costa) pela Direcção dos Serviços de Censura.

Na crítica saída neste periódico cultural, eram avançadas algumas linhas que podem ajudar a compreender o destino desta obra, considerada “prova clara de que estamos perante um jovem escritor que soube encontrar na vida do povo os motivos e a razão dos seus contos; que conhece e sente os ambientes que descreve”, sendo perceptível “uma identificação do autor com essas vidas - o sentir seus, também, os dramas e as esperanças dessa gente - o que nos parece constituir uma das mais importantes condições para a realização de uma literatura sincera e humana.” Apesar de indicar algumas fragilidades na construção das narrativas e no “poder artístico”, a avaliação de Nataniel Costa deixou-se cativar por aspectos como a vivacidade e naturalidade dos diálogos, o poder de observação e o conhecimento da realidade, factores que levaram o crítico a concluir que aquelas histórias eram mais “coisa vista do que imaginada”. Obviamente, uma escrita que ia ao encontro da estética neo-realista e que, como tal, mereceria a desconfiança da censura...

 

Os “critérios” do censor

Quando o capitão José da Silva Pais, em 10 de Maio de 1947, se dirigiu ao director da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), rogando-lhe que mandasse “proceder à apreensão do livro intitulado Sábado sem sol da autoria de Romeu Correia”, fê-lo com base no relatório subscrito pelo capitão Borges Ferreira, em que eram apontadas as faltas cometidas pelo autor: “este livro de contos é, de um modo geral, bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social.” O desprezo a que a obra era votada neste relatório não tem qualquer relação com a estética ou com a criação, antes se preocupa com o retrato social traçado, chegando ao ponto de pôr condições para que “talvez o livro possa ser publicado”: a primeira, no sentido de os contos “Chegou o carvoeiro”, “Sempre Menino” e “Novela interrompida” (na sua terceira e quinta partes) serem suprimidos; a segunda, exigindo que fossem eliminadas “várias frases mal sonantes, de uma moral bastante duvidosa”, encontradas em dezena e meia de páginas do livro, devidamente indicadas. Curiosamente, o crítico Nataniel Costa considerara que os contos “Chegou o carvoeiro” e “Novela interrompida” eram experiências que provavam que “o seu autor pode, se souber superar-se por um trabalho sério e constante, vir a escrever obra de valor”...

O espírito de censor de Borges Ferreira permitia-se concluir o relatório de uma maneira que aviltava a obra apreciada: “São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.” No entanto, o leitor perceberá o porquê das palavras de Borges Ferreira, se ler os textos punidos, que fizeram com que este título de Romeu Correia entrasse para o rol dos títulos proibidos, tal como consta referido nas obras Livros proibidos no regime fascista (1981) ou em Obras proibidas e censuradas no Estado Novo (2023).

 

Os pruridos do censor

“Chegou o carvoeiro” é o conto que abre a obra, contando o momento da descarga de um cargueiro inglês que transportava carvão, acção passada em Almada, “onde está a Companhia de Pesca”, e deixando perpassar as condições sub-humanas, as dificuldades e a dureza da vida dos descarregadores, pessoas contratadas para aquele serviço, de escassos dias, que levam uma personagem, o Ruivo, a combinar um acidente que o atinge e lhe deixa o pé “em pasta de sangue” para assim obter “sessenta dias de reforma”, enquanto os seus companheiros finalizavam a tarefa e deixavam de ter outra subsistência. A imagem do tratamento dado aos homens ou das condições de vida perpassam por excertos como: “o encarregado percorre com o olhar zeloso os homens perfilados, como marchante a ver bois de carga em feira aberta” ou “a luta do trabalho recomeça, violenta, brusca, raivosa, contra o destino inelutável dos que mourejam” ou ainda “há três dias que dura a descarga - três dias de pesadelo!”

“Sempre menino” relata o encontro de um jovem de 18 anos, Paulo, que vive com uns tios que lhe garantem o quotidiano mais ou menos aburguesado, com a namorada, Lídia, costureira, filha de um casal em que o pai alcoólico exercia a violência doméstica. A barraca em que viviam a mãe de Lídia e os quatro filhos (tinham fugido da casa de família) é pretexto para a descrição das condições de vida - uma cama servia para os cinco e, perante as dificuldades, Paulo levara mesmo um cobertor de sua casa para deixar com a família. Pelo conto perpassam ainda algumas situações de fantasia sexual do rapaz, que, chegado a casa, adormece, sonhando com uma tia, em imagem que sobrepõe com a da irmã da namorada.

“Novela interrompida”, narrativa em vários capítulos, aborda as condições de vida das mulheres no mundo fabril (corticeiras) e a reivindicação que apresentaram para um aumento de salário, situação que originou uma manifestação e o confronto com a força policial. Aspectos fortes são o momento em que um elemento da força de segurança esbofeteia a sua mulher, que era uma das manifestantes, ou o da dactilógrafa que goza com os aumentos que as trabalhadoras da fábrica pretendiam ou as insinuações e ameaças feitas a Valério, o ajudante de guarda-livros, que, por se ter solidarizado com um jovem trabalhador exausto, foi acusado de ser “homem de ideias perigosas”, conspirador e “inimigo da civilização cristã”.

Das dezasseis referências a páginas em que fragmentos do texto deveriam ser alterados, uma dúzia diz respeito ao conto “Mestra”, por aí passando as tensões sociais entre a empregadora dona da casa de costura e as costureiras (“os olhos das operárias cobiçam todo aquele recheio” do mobiliário da casa da Mestra; a desconfiança da mestra, que marcava tudo em casa para impedir a tentação de desvio das coisas pelas empregadas, considerações da ex-operária sobre a “exploração infame” na casa da Mestra, o trabalho em série e sem direitos, o canto das raparigas durante a ausência da mestra - “se somos pela igualdade, / temos direitos iguais” -, as visões sobre a sexualidade - a “sorte” da rapariga com casa posta pelo amante, o consentimento do pai quanto aos devaneios do filho porque este estava “na idade de gozar”, a gravidez clandestina escondida). Referência também importante é a que consta em página do conto “Rumo”, em que o leitor assiste ao cansaço de Ernesto, personagem que se sente explorada “a alombar e a ouvir ralhos” e que, no final do conto, se escapa, deitando-se num canavial de onde vê os operários que vão chegando e ouve os apitos da fábrica e decide que lhe “não hão de comer os ossos”, tendo em mente a fuga para a América...

 

28 anos passados, a 2.ª edição

Só em 1975 surgiu a segunda edição de Sábado sem sol (aumentada com dois contos), altura em que Romeu Correia revelou que a venda dos exemplares da edição inaugural dera um lucro de 3900$00, verba que foi canalizada para “as bibliotecas da Incrível e da Academia Almadense”, conforme era referido na contracapa de 1947. Na introdução feita para a edição de 1975, o autor explicava: “Testemunhar os problemas sociais, os conflitos de classe, os dramas humanos, revelando e condenando o mundo injusto e contraditório que nos rodeia e oprime, é a função primeira do contador de histórias.” E o leitor percebe que as observações feitas por Nataniel Costa em 1947 tinham toda a razão de ser - estas histórias eram mais fiéis ao “ver” do que ao “imaginar”.

Nesse mesmo ano de 1975, na sua edição de 13 de Agosto, o jornal O Setubalense publicava excertos do conto “Chegou o carvoeiro” e, assinado por M. Gonçalves Martins, havia um rápido texto de apresentação sobre o livro: “são pedaços sangrentos arrancados à vida dura dos homens humildes que labutavam duramente na região de Almada.”

A pressão que a censura exerceu sobre a criação literária, como o escritor almadense recordava no Diário do Alentejo, em 20 de janeiro de 1987, levou a que os autores se autocensurassem e não tivessem liberdade criativa: “Aqui há uns anos, estávamos a escrever e às tantas dizíamos: isto não passa na Censura. E eliminávamos grandes passagens do que escrevíamos. Em vez de um livro fazíamos abortos. (...) O pior censor não era o que estava lá fora à nossa espera. O pior censor era o censor que cada escritor tinha dentro de si. Era um acto de coragem escrever um livro.” Quanto à proibição de “Sábado sem sol”, reconhecia não ser “um grande livro”, ao mesmo tempo que explicava: “um livro para ser apreendido pela PIDE não precisava de ser grande coisa, podia não valer nada; a PIDE é que tornou esse livro conhecido.”

Recentemente, o livro teve direito a edição fac-similada sobre a primeira edição, incluído na colecção “Biblioteca da Censura”, forma interessante de trazer este autor para a actualidade depois de anos de esquecimento para lá dos limites do local. Por estes contos perpassam os momentos de fragilidade e exploração, de miséria e exclusão, mas também marcas de ironia e de uma certa atitude de denúncia, aspectos que conferem a esta obra, como Maria Graciete Besse referiu no diário Público (23 de junho de 2023), o estatuto de “interessante documento histórico-social sobre a Outra Banda na primeira metade do séc. XX.”

João Reis Ribeiro. "500 (e mais) palavras". O Setubalense: nº 1127, 2023-07-31, pp. 174-175.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Livros amordaçados (1)



Em 26 de Abril de 1974, o edifício-sede dos Serviços de Censura, na Rua da Misericórdia, em Lisboa, foi invadido e parte significativa dos haveres em arquivo foi atirada pelas janelas ou furtada. Salvaram-se, no entanto, cerca de mil e duzentos títulos, graças ao pedido que A. H. Oliveira Marques (1933-2007) fez  a um seu colaborador no sentido de ser feita a recuperação dos livros que ainda estariam naquele serviço, acervo que passou a integrar a Biblioteca Nacional.

A coincidir com a publicação da colecção “Biblioteca da Censura” (que o jornal Público tem vindo a distribuir nos dias 25, num projecto que irá até Abril de 2024), a Biblioteca Nacional de Portugal acaba de publicar o seu catálogo Obras proibidas e censuradas no Estado Novo, com estudos introdutórios de Álvaro Seiça e de José Pedro Castanheira, compreendendo a descrição dos títulos da Biblioteca dos Serviços de Censura e a lista das obras proibidas que existiam na Biblioteca Nacional e não podiam vir a público, além de excertos de relatórios dos leitores que serviam para fundamentar a autorização ou a proibição das obras.

Sobre as origens dos títulos proibidos pouco se sabe - oriundos de bibliotecas particulares ou de associações recreativas, de livrarias, de editoras, por certo, mas sem haver indicação precisa desse ponto de recolha. Livros em português ou noutras línguas, provenientes de diversos países, muitos deles proibidos, outros autorizados apenas em língua estrangeira ou porque a proibição poderia dar nas vistas - enfim, um  mundo de decisões onde parece campear a arbitrariedade ou o gosto discutível. Proibidos eram temas como a Rússia ou URSS (chegando-se ao ponto de proibir títulos como uma Histoire de la Littérature Russe, de Hofmann, ou guias linguísticos como Le Russe: Manuel de langue russe pour les français, de Potapova, ou Elementary Russian Conversation, de Kany e Kaun), a China, a sexualidade, o retrato de questões sociais delicadas, o pensamento contra a religião. Fosse como fosse, está o leitor perante aquilo que Maria Inês Cordeiro, na apresentação desta obra, escreveu: “a memória de uma biblioteca  para não ser lida, um testemunho do que é contrário à própria ideia de Biblioteca.”

As justificações para as propostas de interdição assentam sempre em argumentos que pretendem ser moralizadores - por exemplo quem leu um título como Harmonia e  desarmonia conjugais, de A. César Anjo (colecção “Saber”, 1950), opinou: “Trata-se de uma porcaria desmoralizadora e desmoralizante, encapada no disfarce dum pseudo cientismo técnico que só pode enganar primários ou muito incautos. Julgo de proibir rigorosa e urgentissimamente, por se estar a vender na Feira do Livro com toda a força, numa sementeira maléfica de  todas as horas.”

O almadense Romeu Correia (1917-1996) viu o seu livro Sábado sem sol proibido em 1947, decisão assim justificada pelo censor: “Este livro de contos é, de um modo geral bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social. (...) São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.”

A hesitação da censura quanto à proibição ou não de um livro surge a propósito de um título como La peau, de Curzio Malaparte (1898-1957), proibido em 1960 com o seguinte argumento: “um livro (...) que apesar de bem escrito, o é por um comunista”. Uma década depois, outro relatório dizia para o mesmo título: “Autorizado o original e qualquer versão em língua estrangeira, mas vedada a autorização para qualquer tradução para língua portuguesa, seja qual for a sua origem.” Assim, a leitura era permitida ao grupo restrito dos que soubessem falar outra língua...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1004, 2023-02-01, pg. 9.


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O Bocage que Romeu Correia legou

 


Na sua obra, Romeu Correia (1917-1996) não deixou de se preocupar com Bocage, tornando-o tema e personagem central de uma peça, usando como título o nome do poeta (Lisboa: Editora Ulisseia, 1965). Bocage é, de resto, personalidade que se tem prestado a ser personagem de vários textos dramáticos, assinados por Herlander Machado (1966), Luzia Maria Martins (1967), José Sinde Filipe (1974), Fernando Cardoso (1999) ou Fernando Gomes (2005).

A obra de Romeu Correia (que mereceu segunda edição em 1978), aparecida quando passava o segundo centenário do nascimento de Bocage, só estreou em palco cinco anos depois, em iniciativa do Grupo de Teatro do Instituto Comercial do Porto, no Teatro Sá da Bandeira. O leitor ainda hoje pode ver um vigor moderno pela interpretação da obra e do percurso bocagiano, pela estrutura da peça, com muitas intromissões do autor no que poderiam ser recomendações de encenação, pela vontade de levar uma época e um país para dentro de um palco. Nesta peça representa-se também o teatro, com figuras da arte dramática como Arlequim, Pierrot, o Histrião, os Saltimbancos ou as Máscaras (sugerindo o papel do coro), numa espécie de “espectáculo de feira”, uma “representação dentro de outra representação”, como o pretendeu o autor.

Bocage foi apresentado como “crónica dramática e grotesca” para destacar, mais do que a imagem que do poeta ficou, o percurso que ele teve e as circunstâncias que o fizeram. A abrir a obra, ficou a observação: “Inconstante e volúvel como o momento histórico que testemunhou, o poeta, entrando na Lenda como um incorrigível trocista e desfrutador de prazeres, confunde-se com a agonia do próprio século, o XVIII, – e os anseios anónimos, a irreverência e o escárnio de um mundo novo que nasce…”

A história começa com a evocação de uma anedota protagonizada por um Bocage mítico, lembrada por “uma voz”, ainda com o pano descido, ao mesmo tempo que no palco se vai delineando a personagem José Pedro da Silva (das Luminárias), amigo e protector do poeta (que, em cena, zela pela sua memória, insurgindo-se contra o anedotário), e conclui com a morte do mesmo Bocage, numa encenação que o projecta para a memória, tal como é acentuado na didascália que orienta a encenação: “Súbito, mil mãos caem sobre o leito, rasgam o lençol e trucidam o morto, dividindo-o entre si, como relíquia. Este com um pé, aquele com um braço, aqueloutro com a cabeça, etc., e somem-se, felizes, no horizonte.”

Pela história passam momentos vários da vida e do tempo do poeta sadino – a viagem à Índia, o balão de Lunardi, a boémia, o café “Nicola”, a tertúlia, a censura, a prisão, a reeducação no mosteiro, as relações de amizade (Morgado de Assentis, Bingre, Santos Silva, os padres do mosteiro) e de desavença (Pina Manique, José Agostinho de Macedo) –, num trajecto em que a sua figura se vai impondo para, depois, começar a declinar, ao mesmo tempo que o ambiente vai ficando impregnado da poesia bocagiana.

A intenção desta peça passa por corrigir um pouco a memória que de Bocage se fez. Argumentava o Histrião, ao falar sobre o teatro, que “um homem sobre as tábuas dum palco é rei, é tudo o que ele sonha ser (…), é imperador, sendo um pobre de Cristo”, talvez um pouco como foi o trajecto de Bocage no palco da vida, apresentado como valor seguro e superior.

 * J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 466, 2020-09-16, p. 3


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Bocage no seu mês - 250 anos depois (17)



Uma obra teatral sobre Bocage
Romeu Correia. Bocage. Col. "Vária" (2). Lisboa: Editora Ulisseia, 1965

sábado, 6 de novembro de 2010

Estudos Locais de Setúbal (1) – Luís Souta e a escola dos escritores ligados a Setúbal

No II Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal, que decorreu ontem e hoje, assisti à conferência de Luís Souta (acontecida ontem), de que gostei, pelo cruzamento com identidades e com a cultural local, sem esquecer o mais vasto âmbito da cultura portuguesa.
Intitulada “Na escola da dor e do sofrimento, segundo cinco escritores do distrito”, Souta acentuou tratar-se de um conjunto de retratos feitos a partir de obras literárias, passando por obras de Mário Ventura, Maria Rosa Colaço, Romeu Correia, Manuel da Fonseca e Sebastião da Gama (tendo ainda havido remissões para Carlos Ceia e para Matilde Rosa Araújo), pretendendo mostrar “o olhar da literatura sobre o universo escolar”.
A originalidade da leitura de Luís Souta foi interessante, bem para lá da discussão do autobiografismo na literatura, mostrando que a ficção nasce de realidades, aí incluindo realidades vividas. A evocação de Manuel da Fonseca veio bem a propósito ou não tivesse sido ele a figura destacada (e presente) no I Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal que se realizou há 22 anos; também Romeu Correia, outro contador de histórias, mereceu ser lembrado, ele que tem tido a sua obra quase esquecida; igualmente a recordação de Rosa Colaço e desse mítico (e quase fundador) livro que foi A criança e a vida fez recuar no tempo, chamando a atenção para a sensibilidade que, desde cedo, pode invadir a escrita; Mário Ventura foi mencionado a propósito da história de Miguel Zuzarte e, não sendo de Setúbal, por aqui viveu e empurrou o nome da cidade para a história do cinema em Portugal – haja em vista a realização do Festroia –, motivo que levou Souta a sugerir que o nome de Mário Ventura deveria ser atribuído ao Auditório Charlot, espaço municipal sadino de encontros e de cinema (proposta certeira, diga-se, e a merecer ser levada avante); Sebastião da Gama foi chamado pelo seu Diário, obra de referência para a pedagogia e para o pensamento do professor, sobre ela afirmando Luís Souta que “é suposto num estágio o professor aprender”, mas Sebastião da Gama foi “um professor em formação que produziu um texto formador que veio a marcar a pedagogia”, outra forma de dizer que o Diário do poeta da Arrábida, registo do que foi o seu ano de estágio na Escola Veiga Beirão, é a marca de “um professor reflexivo”.
Luís Souta proporcionou, desta forma, um outro olhar sobre a escola. De outros tempos e igual para todos, é certo, mas valorizando a experiência e a literatura, chamando a atenção para a pluralidade de leituras que a arte pode conter.

sábado, 19 de setembro de 2009

A propósito de "Bocage", de Romeu Correia

Na sua extensa bibliografia, Romeu Correia, autor que cultivou o conto, a biografia, o romance e o teatro, não deixou de se preocupar com Bocage, tornando-o tema e personagem central de uma peça constituída por um prólogo e duas partes, usando como título o nome do poeta (Lisboa: Editora Ulisseia, 1965). Bocage é, de resto, personalidade que, ao longo dos tempos, se tem prestado a ser personagem de inúmeras ficções, de biografias e de outros textos dramáticos – lembro, de repente, obras mais recentes, na área do teatro, como Bocage, de José Sinde Filipe (Lisboa: Prelo, 1974), Bocage, Ele Mesmo!, de Fernando Cardoso (Lisboa: Portugalmundo, 1999) e Bocage e as ninfas, de Fernando Gomes (produção do Teatro Animação de Setúbal, em 2005, sem texto publicado).
A obra de Romeu Correia, aparecida quando passava o segundo centenário sobre o nascimento de Bocage, mantém ainda hoje um vigor moderno, seja pela leitura que apresenta da obra e do percurso bocagiano, seja pela estrutura da peça, com muitas intromissões do autor no que poderiam ser recomendações de encenação, seja pela vontade de levar uma época e um país para dentro de um palco. Nesta peça representa-se também o teatro, com figuras da arte dramática como Arlequim, Pierrot, o Histrião, os Saltimbancos ou as Máscaras (sugerindo o papel do coro), numa espécie de “espectáculo de feira”, uma “representação dentro de outra representação”, como o pretendeu o autor.
Se, como subtítulo, Bocage foi apresentado como uma “crónica dramática e grotesca”, não foi para facilitar o entendimento ou a leitura, antes terá sido para destacar, mais do que a imagem que do poeta ficou, o percurso que ele teve e as circunstâncias que o fizeram. Na verdade, a anteceder a lista de personagens que entram em cena, a abrir a obra, ficou a observação: “Esta é a crónica dramática e grotesca de uma época, centralizada na figura singular do poeta maldito que foi Bocage. Inconstante e volúvel como o momento histórico que testemunhou, o poeta, entrando na Lenda como um incorrigível trocista e desfrutador de prazeres, confunde-se com a agonia do próprio século, o XVIII, – e os anseios anónimos, a irreverência e o escárnio de um mundo novo que nasce…”
A história começa com a evocação de uma anedota protagonizada por um Bocage mítico, lembrada por “uma voz”, ainda com o pano descido, ao mesmo tempo que no palco se vai delineando a personagem José Pedro da Silva (das Luminárias), amigo e protector do poeta, e conclui com a morte do mesmo Bocage, associada a uma encenação que o projecta para a memória, tal como é acentuado na didascália que orienta a encenação: “Súbito, mil mãos caem sobre o leito, rasgam o lençol e trucidam o morto, dividindo-o entre si, como relíquia. Este com um pé, aquele com um braço, aqueloutro com a cabeça, etc., e somem-se, felizes, no horizonte.”
Pela história passam momentos vários da vida e do tempo do poeta sadino – a viagem à Índia, o balão de Lunardi, a boémia, o café “Nicola”, a tertúlia, a censura, a prisão, a reeducação no mosteiro, as relações de amizade (Morgado de Assentis, Bingre, Santos Silva, os padres do mosteiro) e de desavença (Pina Manique, José Agostinho de Macedo) –, num trajecto em que a sua figura se vai impondo para, depois, começar a declinar, ao mesmo tempo que o ambiente vai ficando impregnado da poesia bocagiana.
O que vai zelando pela (boa) memória de Bocage é a presença em cena de uma figura como a de José Pedro. No início da peça, em tempo localizado na Lisboa de meados do século XIX, é ele quem se insurge contra o Bocage das anedotas e das pilhérias – “Não dêem ouvidos! É falso! Tudo o que dizem do sr. Manuel Maria são mentiras! As anedotas, as indecências… são quase todas inventadas!...” Esta indignação vivida em palco acentua a reacção ao anúncio de um cego que apregoava “as anedotas do Bocage… e mais versos deste grande brejeiro!...” No final, é o mesmo José Pedro quem anda a vender os versos de Bocage para o ajudar, apregoando os folhetos, num paralelo (de sinal contrário) com o cego do início da história: “Para o grande poeta Bocage! Ajudem o grande Bocage! (…) Socorram Bocage! Bocage está muito mal!... Os últimos versos do grande poeta Bocage!...”
A intenção desta peça passa, pois, por corrigir um pouco a memória que de Bocage se fez. Argumentava o Histrião, ao falar sobre o teatro, que “um homem sobre as tábuas dum palco é rei, é tudo o que ele sonha ser (…), é imperador, sendo um pobre de Cristo”, talvez um pouco como foi o trajecto de Bocage no palco da vida, apresentado como valor seguro e superior – “Os mecenas matam a fome aos poetas, mas não lhes dão talento”, diz uma personagem (a 6ª Máscara) a dada altura, tentando aliviar o juízo de ingratidão que de Bocage estava ser dado.
Esta peça de Romeu Correia só teve estreia em palco cinco anos depois da sua publicação, em iniciativa do Grupo de Teatro do Instituto Comercial do Porto, no Teatro Sá da Bandeira. Em 1978, mereceu nova edição em livro (Lisboa: Ed. Maria da Fonte). Pouco mais de quatro décadas volvidas sobre o seu nascimento, este Bocage bem merecia a reedição, assim como justificava a sua apresentação no sítio que mais vida lhe daria – o palco.

domingo, 23 de agosto de 2009

Romeu Correia, "Desporto Rei" - reler uma obra de 1955 em tempo de início da época futebolística

Concluído no segundo semestre de 1954, Desporto Rei seria editado no ano seguinte (Lisboa: Livraria Clássica Editora). Hoje, passado mais de meio século sobre essa primeira edição, a história narrada mantém actualidade, ainda que devendo caber ao leitor a explicação para os saltos no tempo e a compreensão das mudanças.
Como o título do livro indica, o mundo é o do futebol. A história passa-se “numa pacata vila de província, onde só dois conterrâneos jogavam o futebol, mas com o qual vários especulavam – e a que quase todos assistiam.” Esta informação consta em epígrafe, a abrir a obra, mas encontra ecos em vários pontos da narrativa, como no dia em que a equipa joga com um visitante do Norte, disputando a passagem à divisão principal, e Campos Mota comenta para o director Olímpio Nunes “Hoje, é possível que vendas dez mil garrafas de refrescos… mas, em contrapartida, só dois conterrâneos nossos praticam desporto num concelho de vinte mil habitantes” ou no momento da Assembleia Geral que discutia o futuro do clube e alguém, contestando as políticas seguidas pela Direcção, grita “Queremos desporto! Não queremos negócio!...”
A trama passa-se em torno do Vila Clara Futebol Clube durante o mês de Junho, com uma Direcção que apostara a passagem da equipa para a 1ª Divisão, sobretudo pelo que isso significava em termos de reputação para o clube e para o concelho. É esse lugar que almejam Carvalhinho da Moagem, Joaquim Campino, Soares do hotel, Olímpio Nunes, Valentim da Silva ou Procópio Cabral, directores que pretendiam defender mais a sua posição (e ascensão) social do que o desporto, razões que levam a forte contestação local, com ameaças e maledicência à mistura. Pelos relvados, em representação do Vila Clara, passam nomes como Caralinda, Raposo, Juju (angolano), Horácio, Belarmino, Justo, Torres, Guilherme, Amílcar (o mais disputado) e Gomez e Alonso (ambos argentinos), em torno dos quais há o litígio com base no ordenado a receber, há as questões de origem, há as diferenças de qualidade na prática do jogo e há as relações com a direcção. O fenómeno do futebol faz saltar episódios em torno dos seus menos interessantes aspectos, como a tentativa de suborno de guarda-redes ou de jogador, as negociatas à volta da hipotética transferência de atletas (envolvendo mesmo um simulado rapto de jogador), o vínculo existente entre a permanência dos directores e o dinheiro que cada um foi pondo no clube em prol de uma grandiosidade difícil de atingir.
Mas a história passa também pela vida de vários dos directores, nem todos com um percurso absolutamente correcto ou socialmente aceitável. Por aqui vão passando também as tensões sociais; as relações empregador-empregados; as vidas duplas; o viver para lá das posses; a incapacidade de adaptação de empresários à mudança dos tempos, que vão vendo seus ex-empregados (depois empresários, também) com mais sucesso do que eles próprios, chegando a criar-se uma relação de dependência económica dos primeiros em relação aos segundos pelo recurso ao crédito e às letras.
A caracterização das personagens por parte do narrador é reduzida ao mínimo e abrange sobretudo a função social. O resto fica por conta do leitor, que pode traçar os retratos a partir das atitudes tomadas por cada um dos intervenientes, todos eles constituindo personagens-tipo, todos eles constituindo um panegírico da sociedade de um pequeno meio provinciano (com pretensões à ascensão e ao reconhecimento), em que se cruza a familiaridade e a proximidade com os ódios de estimação ou com as paixões e com os favores.
A escrita é, muitas vezes, teatral, com indicações precisas do tom de voz ou dos gestos das personagens quando intervêm, quase em jeito de didascálias. É sempre uma acção rápida, na tentativa de não ser o narrador ultrapassado pelos acontecimentos. Mesmo quando parece que vai surgir um capítulo longo como o que relata o tão falado encontro futebolístico em tarde domingueira e festivaleira, a verdade é que a notícia do jogo é circunstanciada até à expulsão de jogo de Amílcar (ocorrida algures na segunda parte), ficando o leitor e o narrador sem saber o resultado final, pormenor que só é dado a conhecer no capítulo seguinte, no momento em que uma personagem, que não tinha assistido ao desafio por desprezo, pergunta a transeuntes qual fora o desfecho… e o resultado motiva ainda mais o seu gáudio, da mesma forma que motivará o triste espectáculo vivido nas ruas da vila – cenas de pancadaria entre os adeptos visitados e visitantes, autêntica “batalha campal”, em que até o árbitro teve de receber assistência médica que lhe garantiu “treze costuras no coiro cabeludo” e “metade da cabeça rapada”, além de terem recebido curativos “para cima de trinta pessoas”…
No final, a necessidade de conciliação na vila entre todos os adversários e as diferentes linhas de pensamento para a vida do clube: finalmente, ia ser possível que o desporto voltasse para a prática de todos os interessados, com aulas de educação física e a promessa de construção de uma piscina, a fazer lembrar os “bons tempos da ginástica aplicada, da volta ao concelho em bicicleta, da corrida da légua pelo S. Pedro e dos torneios de basquetebol”.
O romance relata esse tempo de intervalo na prática desportiva para todos, equivalente a cerca de seis meses, desde que a Direcção estabelecera como objectivo olhar apenas para o futebol e com ele querer subir ao grupo de elite que era a divisão magna, recorrendo a jogadores estrangeiros e a treinador estrangeiro também (situações que estimularam algum trato racista). No entanto, a história é cheia de dissabores, o que leva mesmo o narrador, no momento em que é conhecido o caso do rapto de Amílcar, a exclamar: “Enfim! Estava-se perante uma nova tragicomédia!...” A frase, além de nos remeter para o mundo do teatro, justifica-se: ao trágico alia-se o riso e, na verdade, as situações contêm tanto de dramático quanto de hilariante – as cartas anónimas, a derrota no jogo, o rapto do jogador, a luta campal, a disputa entre as amantes de Carvalhinho… e, a finalizar a história, o roubo dos tijolos e sacos de cimento para a construção da nova piscina.
Do início ao fim, Desporto Rei é essa história de situações tragicómicas, retrato de um tempo, mas também de uma sociedade. No que à cultura desportiva e ao papel dos dirigentes respeita, não sei se as coisas mudaram muito neste meio século passado desde a publicação do livro. Mas continua a ser verdadeiro o princípio estabelecido na abertura da obra: “O Desporto só é escola de perene juventude e felicidade quando, através dele, se atinge o perfeito equilíbrio entre o músculo e o pensamento – síntese ideal que a velha Grécia nos legou no imorredoiro Discóbolo.” E Romeu Correia, ele mesmo desportista e biógrafo de desportistas, sabia do que falava…

sexta-feira, 13 de março de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 96
Internet tem tudo? – O rapaz só gosta de futebol. A propósito de tudo e de nada, o futebol, especialmente o seu clube, é base para todas as sustentações. Com isto, distrai-se do essencial. Ler? Difícil para o que esteja para lá dos jornais desportivos… Recomendei-lhe um livro com uma história passada no universo do futebol: Desporto Rei, de Romeu Correia. Que o procurasse em biblioteca, porque já há muito tempo que não era reeditado. “Não faz mal, vou à net e faço uma cópia…”, disse-me orgulhoso com a solução. E lá está como se generalizou a ideia de que a net é a salvação de todas as almas! Não é, não. Absolutamente. Não tem tudo, não ensina tudo, não informa tudo. Expliquei-lhe e admirou-se. Ficou mesmo decepcionado com a revelação… Paciência!
Solidariedade – Aproximam-se no intervalo, dizendo que me querem falar. Era por causa de um amigo, colega de turma, que, argumentando querer curtir a vida, estava a transitar em caminhos um pouco esconsos: tabaco e outros fumos, agressividade nas respostas, descida na qualidade de trabalhos realizados na escola, um ar estranho e de solidão e álcool à mistura. Era a minha vez de demonstrar estupefacção… ou de comprovar aquilo de que suspeitava… “Mas tem que se fazer alguma coisa por ele, professor!” “Pois é, somos amigos e amigas dele e não gostamos de o ver assim.” “Lembrámo-nos de vir ter consigo, embora muitas coisas se passem fora da escola…” “Os pais dele não sabem, mas era melhor o professor fazer alguma coisa…” “Connosco, ele também já não liga e quer que o deixemos em paz…” E lá se parte para mais uma história em pedaços, engrenando na solidariedade e amizade dos colegas de turma. É o mínimo a fazer.
Língua Portuguesa – O tratamento que lhe foi dado pelo computador “Magalhães” é inacreditável. Não porque fosse impossível (não foi); não porque seja caso único. O semanário Expresso descobriu-lhe, nas instruções de actividades, 80 erros de ortografia, de acentuação, de sintaxe. Estas instruções eram para ser lidas por alunos. Não houve nenhuma tarefa de revisão linguística, que era o mínimo que devia ter sido feito. Incompetência a vários níveis, claro!
Vida – “A vida dos homens, a sua transformação, é rápida, vertiginosa; a da terra, a das coisas, leva séculos e dá-nos por isso uma impressão de eternidade.” (Américo Olavo, Na Grande Guerra, 1919).

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 95
Carnaval – Os festejos carnavalescos deste ano tiveram animações inusitadas, que conseguiram ser uma paródia ao Carnaval ele mesmo: a primeira foi em Torres Vedras, com a proibição de um quadro satírico alusivo ao “Magalhães” em que apareciam sugeridas figuras femininas desnudadas, um pouco à semelhança das janelas que se abrem na busca na net; a segunda foi em Braga, com a apreensão de livros, numa feira de saldos, em cujas capas constava a reprodução do (ainda agora, pelos vistos) polémico quadro L’Origine du Monde, de Courbet, peça de 1866. Uma e outra interdições surgiram em nome da luta contra a pornografia. Momentos depois de uma e outra acontecerem, as decisões voltaram atrás – em Torres Vedras, o “Magalhães” pôde desfilar mostrando as ditas senhoras; em Braga, os livros foram devolvidos aos seus proprietários. Há duas questões que saltam à vista: a primeira relaciona-se com a liberdade de expressão; a segunda, com a vulnerabilidade de actos do género e com a fragilidade das decisões. O sentido de humor português anda pelas ruas da amargura, parece. Mas não faltam candidatos à caricatura. Houve consequências destes dois actos: ao que consta, o Carnaval de Torres teve muito curioso para ver a origem da proibição depois desfeita; o quadro de Courbet foi reproduzido a esmo, sem cintas censórias.
Futebol – Depois de ver algumas cenas em torno do mundo do futebol, tenho que citar Romeu Correia, o autor almadense que, em 1955, abriu o seu livro Desporto Rei com a seguinte afirmação: “Em desporto, o desenvolvimento físico dos indivíduos importa acima de tudo. Mas, se ao aperfeiçoamento do corpo se alia o domínio dos nervos, a decisão e o espírito de equipa, que se forjam na harmonia e no ritmo dos jogos, o Homem atinge o seu apogeu físico e espiritual.” Isto é bonito. Mas também deve servir para as claques e para o público em geral. A propósito: nesse romance de Romeu Correia, perpassa muito do que é hoje o mundo do futebol. Pena não haver edição recente!
Joaquina Soares – Um livro de poemas com a chancela do Centro de Estudos Bocageanos, Corpo de Palavras. Apresentado em Setúbal na noite desta última sexta-feira de Fevereiro. Um pequeno poema intitulado “Milagre com rosas”: “Defronte da ponte de aço, / Isabel / retirou / pão do regaço. / - Flores? / - Não, meu senhor, / panos de linho, / para sarar cansaços.” A ler.