sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Albérico Costa e os dias de Setúbal (1)

 


Com a obra Setúbal sob o Estado Novo - A Resistência a Salazar e a Caetano - 1950-1974, acabado de publicar (Estuário, 2023), Albérico Costa encerra o ciclo da cronologia setubalense que se propôs elaborar, constituída por diversos tomos: História e Cronologia de Setúbal - 1248-1926 (em 2011), Setúbal sob a Ditadura Militar - 1926-1933 (em 2014), Setúbal sob o Estado Novo - A Resistência a Salazar - 1933-1949 (em 2021) e Setúbal Cidade Vermelha - 1974-1975 (em 2017), volumes com a mesma chancela editora. Conjunto que integra momentos de cronologia e de ensaio, este projecto de Albérico Costa tem uma história longa, pelo menos desde que, em 1988, publicou um pequeno livro intitulado Cronologia Geral da História de Setúbal - 1249-1910 (editado pela Escola Superior de Educação de Setúbal). Sem qualquer dúvida, está o leitor perante uma obra indispensável para a história local sadina, de consulta obrigatória, que sugere, inclusivamente, múltiplas possibilidades de investigação, além de caucionar a importância da história local, em que o interveniente é, também, o cidadão comum.

Na nota introdutória ao volume agora publicado, o autor salienta dois aspectos que, em conjunto, justificam a sua motivação e valorizam a perspectiva da história setubalense: por um lado, no que respeita especificamente ao período em apreço (o tempo do Estado Novo), a necessidade de “fazer a História de uma cidade que nunca se conformou com o destino que lhe era imposto”; por outro, porque é importante notar que “o passado urbano do espaço setubalense não é apenas um espaço físico, mas também um espaço idiossincrático com características exclusivas”.

A obra, construída sobre fontes como estudos já realizados, imprensa local e nacional, testemunhos e entrevistas e aturada busca em arquivos (entre os quais, a Torre do Tombo), organiza-se em três planos - um conjunto de cinco capítulos, de cunho ensaístico, que relata, relaciona e interpreta os acontecimentos do período em apreço (os quase 25 anos que antecederam o 25 de Abril); um lote de sínteses biográficas, que compreende registos de 139 presos políticos setubalenses e de 165 nomes referenciados nos relatórios da PIDE de Setúbal; cronologia de acontecimentos em Setúbal no período entre 23 de Janeiro de 1950 e 24 de Abril de 1974.

O espaço dedicado à década de 1950, deixa transparecer um ambiente de crise económica e social em Setúbal (haja em vista a mono-indústria da área conserveira com baixos salários ou os períodos de defeso da pesca), por vezes minimizada com paliativos que mais visavam preservar a paz social do que resolver os problemas, com os vários quadrantes políticos da oposição distantes entre si, sem construírem conjuntamente uma alternativa. A forte repressão exercida na década anterior e o desaire em torno dos resultados do candidato Norton de Matos em 1949 terão conseguido uma quase neutralização da oposição, fortemente dividida. Mesmo a candidatura presidencial de Humberto Delgado em 1958 dificilmente congregou os vários movimentos da oposição - se a unidade em torno deste nome “esteve longe de ser linear” no plano nacional, também em Setúbal, só em 27 de Maio, a cerca de dez dias do acto eleitoral (8 de Junho) foi criada a Comissão Distrital de apoio a esta candidatura e só a uma semana das eleições (30 de Maio) foi celebrado o conhecido “Pacto de Cacilhas”, com a desistência da candidatura de Arlindo Vicente em favor da de Delgado. A situação vivida politicamente ao longo desta década leva Albérico Costa a considerar os anos de 1950 “como a década de todas as derrotas”.

Nos registos cronológicos para este tempo, não deixa de ser curioso que a primeira nota da década, de 23 de Janeiro de 1950, seja a de um apelo público saído na imprensa, convidando as senhoras que costumavam fazer compras em Lisboa a preferirem o comércio de Setúbal: “Se fizessem as suas compras na cidade, ajudariam os comerciantes setubalenses que investiram nas lojas e na mercadoria, e contribuíam para o desenvolvimento da sua cidade e ainda poupavam dinheiro.” Assim se misturava o apelo ao consumo com o benefício local como contributo para ultrapassar a crise. Por outro lado, a cronologia da década fecha com a notícia, de 3 de Novembro de 1959, sobre a instalação da indústria da celulose na cidade de Setúbal, “unanimemente aprovada pela vereação, considerando-se que a referida indústria não ia causar problemas ambientais.” A esperança surgia, a anteceder os anos de 1960, alicerçada na indústria...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1202, 2023-12-07, pg. 7.

 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Urbano Tavares Rodrigues: 100 anos


Urbano Tavares Rodrigues nasceu há 100 anos e faleceu há 10 anos. O último encontro que  tive com ele foi justamente na Feira do Livro de 2013, em 2 de Junho. Faleceria no Agosto seguinte. Mantenho forte lembrança e saudade de Urbano Tavares Rodrigues, de quem fui aluno e que me concedeu o prazer de sermos amigos. Em jeito de homenagem, republico o texto que li na livraria Culsete, num dia de Janeiro de 2003, quando a livraria setubalense quis homenagear o escritor.

"Não sei de quando vem o meu contacto com Urbano Tavares Rodrigues, mas sei que vem de muito longe, desde quando ainda nem pensava que viria a licenciar-me em Letras, muito menos imaginando que o iria ter como professor. Também não sei qual foi o primeiro livro que dele li – talvez A Noite Roxa, que me lembro de me ter sido emprestado por um amigo e que, mais tarde, adquiri para nele reler uma interessantíssima narrativa como “Escombros”, quase retrato de uma geração, e para nele fazer uns sublinhados que me tinham impressionado nessa leitura sobre a vida e a arte... Talvez o primeiro livro que li de Urbano não tenha sido este, mas tenha sido uma recolha literária sobre Estremadura, nessa quase indispensável colecção que é a “Antologia da Terra Portuguesa”, testemunho da indispensabilidade que a literatura se torna para dizer a terra, para dizer o homem, antologia, aliás, onde creio que tive um dos primeiros contactos com Sebastião da Gama, que topou e mostrou a alma arrábida em toda a sua maravilha... Ou talvez a minha primeira leitura de Urbano Tavares Rodrigues tenha sido outra. Recordo, no entanto, estas duas como as mais antigas que dele conheço.

Em 1979, entrei para uma licenciatura na Faculdade de Letras, ingresso já tardio porque me era necessário trabalhar, mas atempado porque pôde ser no curso que queria e na Faculdade que me ficava mais à mão, em horário cumprido depois das 17 horas. Lembro-me de várias pessoas que tive como professores e pelas quais senti uma admiração grande desde logo, que, em alguns casos, virou amizade, já em tempos posteriores ao curso (em jeito de aparte ou de excurso, vou apenas referir o António Vilhena, hoje professor em Setúbal [entretanto aposentado], poço de cultura e de disponibilidade, que conheci como professor de Latim na Faculdade e cujas aulas eram autênticos tratados – ainda que sem o peso que os caracteriza – sobre cultura portuguesa, com especial incidência na literatura, e sobre as marcas clássicas que a enformam).

Mas voltemos a Urbano Tavares Rodrigues, que tive como professor de Literatura Francesa. Uma das coisas que me fascinou na minha licenciatura foi o facto de ter conhecido escritores enquanto professores, podendo assim usufruir da sua experiência enquanto artistas e criadores e do seu estatuto enquanto professores, intelectuais e cidadãos intervenientes, que eram vários. O professor Urbano Tavares Rodrigues não fugiu a este quadro. E, se foi apaixonante a forma como nos fez ouvir a solidariedade e o social presentes em Germinal, se foi suave a maneira como nos fez entrar nos domínios do erotismo de La Motocyclette, se foi a tocar o fascínio que nos falou de uma obra como Le Ravissement de Lol V. Stein, certo é que todos estes predicados se construíram como metáforas dele próprio, isto é, a delicadeza do discurso, a singeleza das práticas, a simpatia da disponibilidade, o aprofundar permanente no cruzamento da literatura estudada com as múltiplas e incansáveis referências advindas da sua experiência de escritor, o sorriso disponível numa atitude de quem parecia tudo oferecer fazendo passar o universo literário numa relação constante de tu-cá-tu-lá para um degrau de contínua admiração pela arte... enfim, tudo isto nos foi transmitindo, tudo isto foi partilhando, porque o todo das suas aulas se nos afigurava também como uma partilha de reflexões e de angústias da estética e do sentir.

A permanente abertura do professor Urbano Tavares Rodrigues nunca lhe deixou escorregar um “não”. Recordo que, mesmo perante trabalhos ou observações de qualidade menos desejada, a sua atitude era de tentar dar a volta de forma subtil, não negando a pouca pertinência do resultado (ou, muitas vezes, a sua impertinência) e incluindo no seu comentário as pistas de orientação que o estudante deveria aproveitar ou explorar.

Habituei-me, assim, a olhar o professor Urbano Tavares Rodrigues como uma personagem dedicada, disponível e atenta (mesmo quando parecia que dormitava perante algumas apresentações de trabalhos, fazendo, no final, o seu comentário acertado e límpido), como uma personagem participante (frequentemente trocando opinião connosco sobre posições públicas a propósito de questões culturais e de ensino), como alguém sempre pronto a incentivar os voos de quem quisesse ir mais longe ou de quem precisasse da sua ajuda. Recordo que, no último ano da licenciatura, estudei a autobiografia em José Gomes Ferreira, a propósito do seu livro A Memória das Palavras, para a cadeira de Teoria da Literatura, leccionada por Lucília Gonçalves Pires. Ser-me-ia útil falar com Gomes Ferreira, mas ele estava a passar um mau momento de saúde, pela sua debilidade de 80 anos. Foi, aliás, o professor Urbano que me pôs ao corrente do estado de saúde de Gomes Ferreira, mas, logo que soube das suas melhoras temporárias, falou-lhe e pôs-nos em contacto, assim me tendo sido proporcionado um encontro de cerca de três horas com esse “poeta militante”, na sua casa da rua Rio de Janeiro, em que quase me limitei a ouvi-lo e em que grande parte da sua conversa não foi sobre poesia, mas foi poesia. Passadas cerca de duas semanas, o professor Urbano encontrou-me na Faculdade, perguntou-me pelo andamento do trabalho, tendo-lhe eu dito que o mesmo já tinha sido apresentado e avaliado. Quis vê-lo, porque, argumentou, “acho que tenho alguma responsabilidade nesse trabalho”. Dei-lhe uma cópia e, volvidos uns dias, propôs-me que o texto fosse publicado no “Suplemento Cultural” do Diário. Respondi que sim, meio sem jeito. Soube depois que era sua prática corrente incentivar os alunos à publicação de trabalhos e mesmo à edição.

Concluída a licenciatura, abandonei também o trabalho que tinha e passei para o ensino. Em 1985, estando em Beja – onde confesso que aprendi a gostar do Alentejo –, ao rebuscar numas prateleiras já esquecidas e poeirentas de uma livraria da cidade, encontrei um livro sobre Urbano Tavares Rodrigues, intitulado Escritor da Fraternidade, da autoria de Pires Campaniço. Já não contactava o professor havia cerca de dois anos, depois que saíra da Faculdade. Comprei o exemplar por uma bagatela e li as suas 130 páginas – fortemente ideologizadas – nesse mesmo dia, mais no sentido de ter um ponto de contacto com alguém que me impressionara fortemente. O livro lembrou-me o professor, sobretudo, e pareceu-me que o título escolhido, ao eleger a fraternidade para caracterizar o escritor, tinha acertado no ponto. Fraternidade, como quem diz solidariedade, como quem afirma disponibilidade... são lógicas de atributos que resultam bem se aplicados a Urbano Tavares Rodrigues.

Fui, entretanto, descobrindo também a sua faceta de ensaísta na área da literatura e de escritor de viagens, sempre encostando as obras abordadas a referentes culturais importantes ou as viagens a itinerários não menos sentidos (talvez sentimentais), como descobri num relato seu sobre Santiago de Compostela, publicado em 1949, verdadeira peregrinação no espaço e no eu, na busca de outras artes e do conhecimento do mundo.

Encontrámo-nos depois em diversas situações mais ligadas à literatura (por exemplo, na sua defesa da tese de doutoramento sobre Teixeira-Gomes, ou na apresentação de Violeta e a Noite aqui neste mesmo espaço da Culsete), sempre relembrando tempos da minha vida de estudante. Mas, quando andei ocupado com um mestrado sobre a revista portuguesa dos anos 50, Távola Redonda, em que Urbano Tavares Rodrigues colaborou com uma tradução a partir do italiano – coisa que não é novidade, depois de se ter visto a tradução por si feita do Decameron, de Bocaccio, que também terá sido um dos meus contactos antigos com ele –, voltei a poder certificar a disponibilidade, a atenção, o saber, o testemunho, a delicadeza... Na noite de um dia 22 de Abril, passantes que eram já as dez da noite, Urbano Tavares Rodrigues recebeu-me em casa, ali na Tomás Ribeiro, para uma conversa sobre a revista, que acabou por ser também sobre a literatura portuguesa dos anos 50, que acabou por ser também sobre a sua obra, que acabou por ser o prolongamento de um fio de disponibilidade sempre demonstrada.

A mais recente vez em que nos encontrámos foi há bem pouco tempo, no mês passado, na apresentação do último livro de poesia de Teresa Rita Lopes. E o que nos uniu? Para lá de tudo, o professor Urbano Tavares Rodrigues falou-me, de imediato, do tempo da Faculdade e da lembrança das suas aulas. Ao fim e ao cabo, um tempo marcante, de aprendizagem e também de conhecimento, lados ambos de uma mesma estrada. Mantenho o gosto por Urbano Tavares Rodrigues enquanto escritor múltiplo e multifacetado, mas quero preservar também esta recordação feliz de um Urbano Tavares Rodrigues professor e mestre, dedicado, sabedor, atento, delicado e prestável, fazendo da literatura uma forma de criação e do ensino uma via de reflexão... ou talvez, e sobretudo, conjugando os dois percursos no rumo da disponibilidade para uma vivência de transformar a arte em cidadania. Não resisto sem ler quatro linhas de um seu escrito de cunho autobiográfico, publicado sob o título de “Apontamentos e Confissões”, no livro de ensaios sobre O Tema da Morte: “Já na minha adolescência desejava ser escritor, embora outras profissões me seduzissem, tais a de médico e a de professor: no fundo, aquelas que me permitissem ancorar e sentir-me útil.” É uma justificação simples, claro. Mas testemunho que, na sua simplicidade, a senti. E vivo bem com essa lembrança e exemplo."


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

D. Manuel Martins: mensagens para todos os tempos

 


A imprensa foi um dos canais por onde passou a mensagem de D. Manuel Martins (1927-2017), o primeiro bispo de Setúbal, em artigos de opinião curtos, de leitura acessível, abordando causas pertinentes, relacionadas com a forma de ser cristão e de ser cidadão, tal como aconteceu em Setúbal com a sua colaboração nos jornais A Seara (da Fábrica da Igreja de S. Julião) e Notícias de Setúbal (órgão diocesano). Várias dessas crónicas foram reunidas em livro, tendo dado origem a títulos como Pregões de Esperança (em 1997, com nova edição em 2014) e Posso entrar? (2012), ambos recolhendo colaboração nos jornais sadinos, e Nascemos Livres (2018), crónicas vindas a lume no Jornal de Matosinhos.

A palavra do primeiro prelado sadino voltou a ecoar, através de um título como Crescendo com cheiro a Primavera (Paulinas Editora, 2023), conjunto de 52 crónicas originalmente publicadas no mensário Crescendo, jornal paroquial de Santa Cruz do Bispo, entre Fevereiro de 2013 e Setembro de 2017 (mês em que faleceu), num trabalho de recolha devido ao setubalense Eugénio Fonseca (que já em 2020 publicara a obra Testemunho de duas vidas compartilhadas, memória do trabalho e da amizade desenvolvidos com D. Manuel Martins). Estamos perante um livro que ganha também sentido quando D. Américo Aguiar chega à diocese de Setúbal e assume D. Manuel Martins, seu conterrâneo, como referência.

A crónica de Fevereiro de 2013, a primeira, reflecte sobre o sucessor de Bento XVI, que nesse mês apresentara a resignação, e, se bem que elogioso para o seu desempenho, D. Manuel Martins acalentava uma esperança: “que o novo Papa, com todas as experiências acumuladas dos antecessores, tenha, pelo menos, a força de arrumar a sua Casa. Todos vêem que isso se impõe.” No mês seguinte, o regozijo com a escolha saída dos cardeais era notório: “Exultemos de alegria e demos graças ao nosso Deus, porque deu à sua Igreja um novo Papa”. Enquanto leitores, desconfiamos mesmo de que D. Manuel Martins sorria de satisfação - referindo-se a Francisco, aponta várias características que hoje sabemos terem marcado o seu papado: veio de um “continente jovem”, “aparece ao mundo com simplicidade”, “assume o nome de Francisco, do Irmão Universal”, trocou hábitos palacianos por uma vida comum e “conhece o mundo”. Para D. Manuel Martins, era clara a mudança: “Ninguém falava dele como sucessor de Bento XVI, enquanto que dois ou três andavam na boca dos fabricadores de prognósticos. Foi mesmo o Espírito Santo que o tomou pelas mãos e o deu à Igreja.”

Por estas reflexões de D. Manuel passa o valor das palavras e dos gestos de humanidade (o sentido de expressões como “obrigado” ou “desculpa”, por exemplo), circula a ideia de família como referência de proximidade e de aprendizagem (que se pode estender até à ideia de paróquia), é valorizado o património e a paisagem, vinga a ideia de modernidade da Igreja (com as referências a D. António Ferreira Gomes, seu mestre, ao Concílio Vaticano II ou a Paulo VI), são interpretados momentos do calendário litúrgico (os tempos da Quaresma e do Natal, as celebrações dos Fiéis Defuntos ou do Corpo de Deus, as festividades religiosas), é olhado o mundo nos seus cataclismos (atentados na Turquia, a acção do “Brexit”, o terramoto no Nepal), surge uma perspectiva sobre a actualidade em Portugal (reflexões sobre os incêndios ou sobre os interesses daqueles que “se nos propõem governar” nas autárquicas). Se, por um lado, é sempre acalentada uma esperança, há também receios - em Julho de 2017, escrevia: “A vida não vai bem em Portugal. Estabeleceu-se um clima de desordem e de medo (...), preocupa-nos a sorte do país.”

Na sua relação de afecto com Setúbal, D. Manuel Martins relata dois episódios que constituíram aprendizagens para si mesmo: o primeiro, o encontro com o sem-abrigo à entrada da catedral sadina antes de uma celebração natalícia; o segundo, a recusa das irmãs da congregação de Teresa de Calcutá em terem televisão, sofá e frigorífico em casa. Ambos os momentos deixaram o bispo emocionado pelo que simbolizaram na necessidade de despojamento e de autenticidade.

No texto introdutório, João Matias Azevedo, pároco e responsável pelo periódico, testemunha a generosidade do colaborador, um “luzeiro no tempo” que ajudou a “cultivar a autoestima” do próprio jornal. A diversidade dos temas tratados é grande, sempre na linguagem simples e comprometedora que caracterizou D. Manuel, prevalecendo como destinatário das suas mensagens um “nós”, em que ele próprio se integrava.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1197, 2023-11-29, pg. 10


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

José Gardeazabal e a literatura como porquê (2)



A personagem central de A mãe e o crocodilo, de José Gardeazabal, este operário da fábrica de reciclagem, fica. Mas fica transformado, assim como a sua vida. Vai havendo um progressivo apagamento da mãe, no caminho do esquecimento (“esquecer é uma viagem de adeus”), até chegar o seu último momento ou despedida, num tempo em que já não há segredos de família que alimentem Vladimir. Neste caminho, há também a descoberta da identidade do pai e da razão da separação, revelação que coincide com o final de vida da mãe. Há também a despedida do crocodilo, largado num rio que chegará à Alemanha - o animal de companhia silencioso, pesadelo sempre descrito, de presença obrigatória mas alheio, que Vladimir acreditara ter sido trazido por um missionário (mas que a mãe corrigia, dizendo ter sido um mercenário, mais tarde vindo a perceber-se o porquê desta designação antipática), e que, no final do livro, surge anulado - “Ao Benito, nunca mais o vi, desapareceu. Naufragou, afogou-se? O crocodilo pode não ter existido.” A perda desta companhia é ainda responsável pela incerteza de Vladimir no termo da história, oscilando entre a probabilidade de reencontrar Noor e rumar para Paris e o sonho em que se vê impossibilitado de entrar na Alemanha “por coxear da perna esquerda”...

Esta segregação (ou momento impeditivo) colide com a perfeição e com a história dos tempos, com a construção da identidade e com o sentimento de humanidade. Se, por um lado, “os países não passam de variações de uma mesma coisa”, por outro, a Alemanha, o território desejado, significa a diferença, uma distância que não é apresentada como positiva - “A Alemanha devia poupar nas surpresas, algumas das piores surpresas foram alemãs, é da história”. Poderá Vladimir sonhar com um tempo melhor?

No último capítulo, ao olhar os outros, os que com ele trabalharam e que ele foi descobrindo, não nota que o tempo lhes tenha dado melhores condições ou suficientes alterações, antes parecendo que cristalizaram naquilo que já se adivinhava sobre o destino de todos. Nesse mesmo capítulo, uma das derradeiras revelações da mãe mostra-lhe a violência exercida sobre a sociedade a que pertencia a família, numa história que circulava na família, desde a avó de Vladimir: “Os soldados estavam de pé, de cada um dos lados da fila de homens. Tinham já acontecido muitos mortos quando a minha avó viu dois prisioneiros a avançar, sem estrelas ao peito. Toda a gente os viu. (...) Trouxeram dois triângulos cor-de-rosa e penduraram os triângulos ao peito dos homens, mas por pouco tempo, porque os homens iam morrer. Mandaram-nos tirar a roupa e descer para o fundo da vala e eles desceram de mãos dadas e depois morreram. Foram mortos. Warum?” E a passagem deste testemunho pela mãe continua: “O que a tua avó viu nesse dia fê-la prometer não ter um filho. Até ao meu nascimento. Eu nasci menina, sou a tua mãe. Até eu nascer, a tua avó teve a vida prisioneira daqueles dois homens nus a desaparecerem.”

Esta revelação não é absoluta novidade, pois Vladimir crescera a ouvir uma história que se repetia nas gerações. Ainda antes da chegada de Noor, ele reflecte sobre a vida, qualificando-a com um adjetivo forte - “parada”. Uma vida parada, portanto. E, depois, retrospectiva: “Histórias de família. Bisavó: a vida não era fácil em 1942, nem em 1946. Avó: a vida não era fácil em 1968. Mãe: a vida não foi fácil em 1995 nem em 2001. Apesar disso, eu nasci. Ouço isto desde criança. A vida foi sempre difícil, as datas são aproximadas.” A dificuldade repetida, repisada, de geração para geração, e o resultado a ser sempre o mesmo. E rapidamente associamos os tempos de crise (para usar uma palavra eufemística) em que a morte campeou pela Europa (com particular incidência na Europa de Vladimir) e pelo mundo, em que o medo se implantou, em que as incertezas tiveram livre circulação.

Este romance não apresenta nada de ingénuo, como se tem visto. Poderemos ainda falar das remissões sugeridas pelos nomes - Vladimir torna-se evidente, tal como Benito, o crocodilo (para quem ainda chegam a ser sugeridos sobrenomes como Adolfo ou Iosef, também eles plenos de referência) ou o de Lazarus (o patrão da fábrica que chegou a parecer morto e foi salvo por uma refugiada que sabia de enfermagem). Com que linhas se cose a diversidade europeia, que identidade europeia é possível, qual a relação de forças entre aproximações e dissemelhanças, que formas há para que a história não se repita nos seus aspectos mais perniciosos - eis um leque de desafios que por aqui passam, fazendo deste um romance forte nas vias que vai traçando para eventuais descobertas ou reflexões em torno dos quotidianos e das diferenças, dos direitos e do sofrimento. Se a literatura não pode mudar o mundo, pode, pelo menos, pensá-lo e inquietá-lo, porque, como pensa Vladimir na sua última conversa com a mãe, “a vida precisa de porquês”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1192, 2023-11-22, pg. 5.

 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

José Gardeazabal e a literatura como porquê (1)

 

José Gardeazabal, na apresentação de A mãe e o crocodilo,
em Setúbal, na Culsete, em 20 de Outubro (Foto: Raul Reis)

A narrativa que passa neste A mãe e o crocodilo, de José Gardeazabal (Companhia das Letras, 2023), surge de sobreposição de histórias, nem sempre precisas, de associações de ideias que levam a um contínuo questionar (não por acaso, a pergunta “porquê”, em alemão “warum”, vai surgindo ao leitor com frequência), num jogo entre personagens que nem sempre convergem mas que se conhecem, em espaços em que se evidencia a transição histórica - “A minha cidade descansa a um canto da Europa, indecisa entre três países diferentes. Os edifícios públicos já pertenceram a quatro ou cinco nações inimigas. Nem eu nem ninguém fala a língua dos nossos avós. (...) Não somos do Leste, o Leste já não existe, somos do ex-Leste. Somos ex-fascistas e ex-comunistas, por esta ordem, somos a Europa dos ex. Pena não sermos um país surrealista, divertíamo-nos mais. Estamos no meio da Europa, há Europa por toda a parte, não temos saída. Deviam chamar-nos O Meio, O Meio da Europa.”

Com tal definição geográfica, histórica e social, percebe-se a pertinência da questão da identidade, linha maior deste percurso da personagem Vladimir, que busca permanentemente a sua identidade, descoberta que se vai construindo como se de um jogo se tratasse - na Europa Central, com a família reduzida à mãe, que apaga deliberadamente a história do pai, trabalhando na reciclagem, vivendo na rota de refugiados, abrigando-se numa subcave partilhada com um crocodilo...

Vladimir é um eu questionador, pouco conformado com a sua situação, alimentando sonhos de poder entrar na Alemanha, de poder melhorar a vida, de poder esquecer pesadelos do desconhecido, de poder amar, agindo numa história que poderia assentar em três momentos - a vida antes da chegada de Noor, a relação com Noor, a ausência de Noor.

Na primeira parte, a personagem fala de si e dos outros, num mundo amargo, refugiando-se em si e no seu divagar - “As minhas melhores amigas são palavras no vazio, digo-as de vez em quando, ninguém as ouve.” A vida reveste-se de crueza - “À minha volta, o aspeto do mundo diz-me que aqui se aprofundou uma maldade. (...) A vida arrastou o melhor de nós para o fundo, como num enterro, devagar.” O presente não se reconcilia com o passado - “Este era um lugar bonito no tempo da indústria e da tortura. Eram empregos, percebem?, com empregos não se brinca. Quem nos roubou a mina roubou-nos tudo. Sobram os edifícios fabris, altos e feios ao sol, foi o que ficou do materialismo histórico.” A quase totalidade das referências às personagens que convivem no mundo de Vladimir é constituída por pequenos apontamentos, relacionados com momentos e com o conhecimento resultante da convivência na fábrica de reciclagem, espaço de degradação, mais do que de transformação - “Muita coisa nos tem abandonado, mas não a reciclagem, a reciclagem chegou sem avisar e desde aí nunca mais parou. É uma coisa moral, a reciclagem, é coisa do lixo. (...) A reciclagem mudou-se para aqui fugida de um país rico onde poluía imenso, isso e a mão de obra. O preço da mão de obra, para sermos exatos. Para funcionar, a reciclagem precisa de salários baixos em quantidades insuportáveis para um país rico. Sem salários baixos nem subsídios, a reciclagem são só boas intenções.”

O segundo momento acontece com a chegada de Noor, refugiada vinda de Nazaré, sofrida no seu convívio com a morte, personagem por quem Vladimir se apaixona, num trajecto que quer partir do zero. Ambos a trabalharem na reciclagem, na primeira conversa, ambos assumem que não têm um passado - para Vladimir, “um passado é objeto pesado. O passado é casa roubada, é pai incógnito. Uma casa judia, depois fascista, finalmente comunista. A mesma casa a passar de mão em mão. O passado pode ser um assassino na família, pode ser uma vítima, as pessoas não precisam da verdade.” Noor, que deseja chegar a Paris para estudar, intervém na fábrica, levando à paragem do trabalho, na tentativa da existência de melhores condições, como intervém na vida de Vladimir.

Na terceira fase da história, Noor está presente apenas na lembrança do apaixonado - “Tocar, curar, transformar, assim lembrarei Noor, não esqueço”, afirmação que resume o papel daquela mulher, num segmento que prossegue com reminiscências que ecoam do poema “E depois do adeus”, de José Niza. Noor partilhou a sua história, o seu tempo, o seu ser, com Vladimir e partiu rumo ao cumprimento do sonho que alimentava. Desabafará ele consigo: “Obrigado, Al-Nazri. Pelo caminhar e pelo estarmos de pé, pelo abrir de olhos e o começar a ver. Teria sido divino cair, teria sido divino voar. Obrigado, Noor, pelo amor e pela verdade. Obrigado pela vida.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1188, 2023-11-16, pg. 9.

 

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Conhecer D. Américo Aguiar, o quarto Bispo sadino



Uns dias antes da tomada de posse do cardeal D. Américo Aguiar (n. 1973) como quarto bispo de Setúbal, João Francisco Gomes (n. 1995), jornalista do Observador, publicou a obra Américo Aguiar (Paulinas Editora, 2023), em cuja capa, além da fotografia do biografado (ordenado bispo em 2019 e nomeado cardeal em 2023), consta apelativa frase que, ao mesmo tempo que promove, resume o essencial do livro - “Quem é e o que pensa o organizador da JMJ, que o Papa elevou a cardeal”.

O pendor biográfico da obra surge manifesto no texto introdutório - “Editado, justamente a pretexto da sua nomeação cardinalícia, este pequeno livro pretende dar a conhecer alguns traços do percurso de vida de D. Américo Aguiar, desde a infância até à JMJ de Lisboa.” O período delimitado não chega à nomeação de D. Américo para prelado de Setúbal, região que apenas aparece mencionada no livro a propósito da data de 9 de Julho de 2023, quando estava “num armazém na zona de Setúbal onde uma equipa de voluntários da JMJ se dedicava, a grande velocidade, à montagem dos quase meio milhão de kits que seriam entregues aos participantes da Jornada” e sentiu a vibração do telemóvel - uma mensagem do comandante da Gendarmaria do Vaticano a felicitá-lo pela nomeação cardinalícia, notícia que já estava a correr, mas que o próprio desconhecia. Acaso interessante, pois: D. Américo soube que foi escolhido para cardeal na região que, volvidos três meses, viria a ser a sua diocese.

As fontes usadas por João Francisco Gomes são sobretudo jornalísticas (principalmente do Observador e das várias peças que assinou neste órgão), além de conversas com o biografado e com algumas pessoas que com ele privaram. O leitor assiste àquele que foi o percurso de um matosinhense nascido em Leça do Balio (onde também nasceu o primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, que D. Américo considera “uma figura importante na minha vida”), jovem que queria ser palhaço (sonho que caldearia o seu sentido de humor), oriundo de família modesta, activo no escutismo, com experiência autárquica (deputado municipal na Assembleia Municipal de Matosinhos) e trabalho desenvolvido na área do ambiente (foi um dos fundadores de uma associação de defesa do rio Leça e trabalhou como técnico de educação ambiental na Câmara Municipal da Maia), só ingressando no seminário em 1995 (depois de uma curta frequência seminarista em 1993). Na vida pastoral, iniciou-se como pároco em Azevedo de Campanhã (2001), tendo, depois, assumido cargos vários na diocese do Porto (a partir de 2002) - vigário-geral, chefe de gabinete do bispo D. Armindo Coelho, organização da visita de Bento XVI ao Porto, responsável pela Irmandade dos Clérigos (em cujo mandato aconteceu a manutenção da Torre dos Clérigos) -, a que sucederam funções em Lisboa, como direcção do Secretariado Nacional das Comunicações da Igreja e presidência do grupo Renascença Multimédia (2016) e nomeação para a organização da Jornada Mundial da Juventude e para coordenador da Comissão de Protecção de Menores do Patriarcado de Lisboa (2019).

Ao longo do livro, vai-se percebendo que as questões mais faladas sobre a Igreja Católica portuguesa têm tido a presença de D. Américo Aguiar, seja por um persistente trabalho de bastidores, seja pela sua relação com os meios de comunicação social (situação que muito bem conhece, mesmo pelo seu estudo intitulado Um padre na aldeia global - Evangelização e o desafio das novas tecnologias, de 2014, trabalho a que esta biografia poderia dar mais relevante nota), seja pela maneira como encara a relação da Igreja com a sociedade. Sucintamente, o autor liga a acção de D. Américo Aguiar às mudanças, quando escreve: “O novo cardeal português incorpora uma das características fundamentais da ‘era Francisco’: a consciência de que a Igreja Católica não existe numa bolha isolada do mundo; fala para pessoas concretas num mundo concreto e, se quer ser compreendida pelo mundo, terá de saber falar a linguagem do mundo.”

Quase metade do livro debruça-se sobre os dois acontecimentos mais conhecidos, que catapultaram o bispo para as primeiras páginas - a questão do abuso de menores por elementos da Igreja e a organização da JMJ -, espaço que contextualiza e historia os vários episódios envolvidos. O derradeiro capítulo faz um apanhado de várias citações de D. Américo sobre questões importantes para o debate da Igreja - aborto, eutanásia, celibato obrigatório dos padres, ordenação sacerdotal de mulheres, o papel dos leigos na Igreja, abusos sexuais de menores, quebra do segredo de confissão, participação dos cristãos na política, os “media” e o digital, a Igreja de hoje e o Papa.

Esta obra de João Francisco Gomes torna-se importante para se perceber o grau de aproximação e de compromisso com os problemas que D. Américo tem utilizado e, simultaneamente, para se percepcionar o nível de empenho que ele pode vir a desempenhar no cargo em que agora foi investido.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1182, 2023-11-08, pg. 9.


sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Teresa Meireles e contos para levar no bolso (2)

 


Ideias importantes que perpassam pelas temáticas destes 101 Contos de Bolso, de Maria Teresa Meireles, relacionam-se com o comum que todos somos, num desafio à nossa forma de estar e de viver o mundo e à construção social em que estamos inseridos: convivem cenas de tédio de algumas vidas com os pequenos infernos que os outros acabam por criar ao minimizarem os efeitos provocados sobre a vida dos vizinhos (a situação da gaiola de periquitos que alimenta um dos contos é paradigmática deste abuso); há instantes em que surge a necessidade de degustar o tempo interior e de olhar o mundo (em torno de um chá, por exemplo) e outros que são ocupados por uma epifania contributiva da descoberta da nossa identidade; conflituam a forma plural de sermos, em que um sujeito se compõe de diversificados e antagónicos eus, com a culpa sempre atribuída aos outros, fruto de uma raiva e de um olhar de desprezo sobre o que nos cerca; viaja-se até à infância, em que se cruzam as crianças “adoráveis” (mas formatadas e intimamente pobres) com a ternura resultante de momentos tão memorizados como o acto de ter aprendido a contar pelos dedos da mãe; revisita-se a escola como espaço de convívio e de estranheza, resultante de fenómenos tão excêntricos quanto as aulas à distância no período da pandemia (e o que elas possibilitaram que se visse do desconhecido que todos mantemos) ou quanto a estranheza dos pais perante as atitudes dos filhos na comunidade escolar; ridicularizam-se as mitologias do quotidiano, expressas nas datas comemorativas que nada alteram quanto ao rumo ou ritmo das vidas e num duvidoso poder argumentativo em torno de um “achismo” desmesurado; ironiza-se sobre o absurdo, a superficialidade e as manias de algumas vidas e sobre os “homens das cavernas” que, por vezes, invadem os nossos espaços. Enfim, um leque vasto de quotidianos, retratos de um olhar sobre o mundo de forma crítica.

As histórias rápidas, depuradas, por vezes com final abrupto, inesperado, deixam o leitor a pensar, algumas a terminarem com uma pergunta retórica que incomoda ou com afirmações que avivam o sentido crítico das narrativas, pois, como é dito no conto em que se pretende pôr em causa os preconceitos dos olhares sobre geografias que nos são estranhas, “o contrário da realidade não é a irrealidade nem tão-pouco a ficção”.

Por estes contos passam duas fundamentais verdades que tecem os percursos de cada um: por um lado, a comodidade que vamos construindo num mundo muito próprio, pois “só vemos o que queremos ou podemos (que é uma maneira de dizer que todos vemos desequilibradamente, por excesso ou por omissão)”; por outro lado, a necessidade da reflexão e do olhar crítico sobre o nosso universo, pois “pensar agita por dentro e derrama para fora como leite em fervedor”.

Destes movimentos de oscilação, sai uma aprendizagem para que uma das narrativas nos convida: “a realidade é mais misteriosa e imaginativa do que qualquer estória que eu pudesse inventar.” Por isso, é que o derradeiro conto, “Parapeitos”, termina de forma peremptória: de peito assente no parapeito, a tia não se apercebeu dos factos que envolveram um pequeno pardal, mas a narradora relembra o sucedido, embora não o tendo compreendido - “Não sei o que aconteceu, ainda hoje não percebo, mas o pardal foi pulando, pulando, pulando até se acercar do vestido florido da minha tia e desaparecer por entre os seus seios para nunca mais ser visto - e a minha tia Graça nem deu conta do sucedido. Juro!” Este compromisso com a autenticidade, expresso numa exclamativa de juramento, serve para fechar o livro e para o leitor ser chamado a respeitar o pacto do narrador com a realidade.

Livro intenso, este, que mereceu o Prémio do Conto Manuel da Fonseca de 2022 e que nos desnuda perante as formatações e nos protege dos mecanismos que abalam e pautam a forma de se ser na nossa contemporaneidade, frequentemente desmontando convenções, outras vezes valorizando pequenos gestos do quotidiano, outras ainda levando-nos ao riso sobre nós próprios. Um bom convívio com o mundo que todos os leitores podem guardar no bolso...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1178, 2023-11-02, pg. 9

 

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Teresa Meireles e contos para levar no bolso (1)

           

O título diz tudo - 101 Contos de Bolso. A quantidade de textos e a extensão dos mesmos pode ser um convite para a leitura desta obra de Maria Teresa Meireles (a que foi atribuído o Prémio do Conto Manuel da Fonseca no ano passado, agora publicada pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém), onde quer que estejamos, cultivando o aproveitamento do tempo. Assim, nunca o leitor será defraudado pelas interrupções, salvo se elas decorrerem das corridas da imaginação, porque, como refere a epígrafe escolhida, de Lídia Jorge (no seu conto A instrumentalina), “um conto breve faz um sonho longo”. E este é o primeiro desafio que Teresa Meireles apresenta, ainda que através de palavras emprestadas - cada um destes “contos-de-bolso” cumpre-se com a conivência do leitor, levado a participar na história pela imaginação que o texto suscita. Se isto é verdade para qualquer obra literária, muito mais importante se torna quando os elementos fornecidos pelo narrador se pautam pelo minimalismo e pela rapidez narrativa...

Podemos assentar logo na primeira história que nos é apresentada, “Gostava de miniaturas”, uma quase-teoria da micro-narrativa, em que tudo o que rodeia e suscita a vida da personagem tem a ver com o minúsculo - dos brinquedos ao vestir, da alimentação aos livros preferidos, das memórias de infância até à vontade de imitar personagens diminutas, da profissão escolhida até ao objecto da sua investigação, do trabalho em torno de uma tese até à sua perda entre grãos de areia... Mas este conto é ainda importante pelas remissões que faz para o mundo da literatura, não só pelo entusiasmo e conhecimento que a personagem revela quanto a nomes que construíram a tradição literária do universo das pequenas coisas (Jonathan Swift, com Gulliver; Alexis Carroll, com Alice; Charles Perrault, com os seus contos), mas também porque deixa a porta aberta para a eventualidade de outras possíveis referências literárias a surgirem - e, de facto, elas visitam-nos a cada passo, chamadas a propósito de estabelecimento de relações ou de lembranças, vindas de variadíssimos universos - Pablo Neruda, Jane Austen, Karen Blixen, Rousseau, os irmãos Grimm, Simone de Beauvoir, Colette e também o referencial da Bíblia.

A entrada nos sucessivos contos abre as portas ao leitor daquilo que podem ser cenas dos quotidianos - casos da vida, em que interferem as nossas inseguranças, as nossas desistências, as nossas des-ternuras; histórias da vida, em que sobressai o valor do momento, o ímpeto da decisão ou as suas consequências, o convívio com os hábitos que nos vão fazendo, a inacessibilidade ao que o outro sente, a insistência na não-violação da privacidade e da intimidade.

A relação das personagens com o narrador vai variando ao longo dos textos, sendo mais frequente o distanciamento para a terceira pessoa, embora haja também muitos exemplos de narração na primeira pessoa, seja ela masculina ou feminina, por vezes mera testemunha do visto. O ambiente que rodeia as personagens decorre frequentemente da família, dando espaço para uma presença muito marcante dos avós e, por vezes, dos pais e do namorado ou marido.

Interessante é acompanhar o valor dado à expressão através da força da palavra nestes 101 Contos de Bolso, que ocorre através de múltiplas situações: a construção de neologismos (“termo-incompatibilidade” ou “verbotropismo” - fica o desafio para descobrirem os seus significados na tarefa de leitura); o louvor da língua, da fala e da comunicação, presentes, por exemplo, numa narrativa em que o assunto ronda uma contadora de histórias; a criação de situações do fantástico através do jogo de palavras (sugerido, por exemplo, através da imagem de uma hera trepadora e invasora) ou por via da riqueza imagética (como no caso do pardal que desapareceu entre os seios de uma tia de vestido florido); a valorização de uma pequena história como uma anedota; a articulação entre as palavras e a vida, numa interessante associação do que possam ser “conjugações irregulares”, vinda da incompatibilidade entre palavras etimologicamente próximas e semanticamente ligadas, como “cônjuge” e “conjugar”; a descoberta das mensagens constantes em cartas arrecadadas num sótão, enviadas pelo avô combatente da Grande Guerra, como possibilidade de imaginar o romance entre os dois apaixonados que se carteavam; a força de uma palavra no momento oportuno, como acontece no conto “O segredo”, levando a destinatária a vencer o medo e a aprender a crescer... enfim, um mundo de valorização da palavra e dos contextos que ela origina, uma homenagem também à língua que nos aproxima.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1173, 2023-10-25, p. 9

 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O aluno Camus e o professor Germain (2)



Se Camus demorou cerca de um mês a contactar o professor Germain depois de lhe ter sido atribuído o Nobel da Literatura, a verdade é que associou definitivamente o nome do seu mestre ao prémio que recebeu: os textos da prelecção que fez, em 10 de Dezembro de 1957, na Câmara Municipal de Estocolmo, e da conferência “O artista e o seu tempo”, que fez na Universidade de Upsala quatro dias depois, foram reunidos sob o título Discursos da Suécia, publicado no ano seguinte, obra dedicada “a M. Louis Germain”, desta forma ficando para o conhecimento do mundo a referência que o professor foi para o premiado.

A mais antiga carta contida no livro Caro Professor Germain - Cartas e Excertos foi escrita por Louis Germain em Paris, em 15 de Outubro de 1945. Camus era conhecido pela sua intervenção jornalística em prol da Resistência e por chamar a atenção para o estado da Argélia. Depois do vocativo “Meu caro rapaz”, Germain apresenta-se e faz-se lembrar, não sem invocar o seu alistamento como voluntário, aos 58 anos, no Corpo Franco-Africano em Argel, onde militou até à Libertação. Que objectivo tinha a carta? “Estou prestes a partir para Argel e ficaria muito feliz se pudesse ver-te antes de viajar. Como penso ter contribuído, ainda que com uma ínfima parte, para o teu destino, gostaria que me confirmasses se não me enganei ao encaminhar-te para o liceu.” Camus terá recebido esta carta tardiamente, por ter saído do jornal onde trabalhava, e só responde por finais de 1945: “Quero, sem qualquer dúvida, voltar a vê-lo. Não saberei dizer até que ponto a recordação que tenho de si permanece comigo - nem como lhe dar conta da minha gratidão. Mas, pelo menos, podemos falar desse passado, que continua a ser o que tenho de mais querido.”

A correspondência entre os dois manter-se-á até final da vida de Camus, manifestando este sempre a importância que Germain teve na sua vida, como se pode ver em carta de 13 de Fevereiro de 1950 - “O aluno permitir-se-á censurar uma frase ao seu querido mestre. Aquela em que me diz que tenho mais que fazer do que ler as suas cartas. Não tenho e nunca terei nada melhor para fazer do que ler as cartas daquele a quem devo o que sou, e que amo e respeito como ao pai que nunca conheci.”

Na última carta conhecida de Germain para Camus, de 30 de Abril de 1959, o professor revela o princípio que praticou nas aulas a que a criança Albert assistiu: “O pedagogo que quer desempenhar conscientemente a sua profissão não despreza nenhum dos momentos que lhe é oferecido para conhecer os seus alunos, as suas crianças, e expõe-se a eles continuamente.” E, mais adiante, na mesma missiva: “Creio ter respeitado, durante toda a minha carreira, o que há de mais sagrado numa criança: o direito de procurar a sua verdade. Amei-vos a todos, e creio ter feito o possível para não manifestar as minhas ideias e influenciar, assim, a vossa inteligência jovem.” A derradeira carta de Camus, de 20 de Outubro seguinte, reafirma a importância daquele mestre: “Sabe bem que nunca poderei reconhecer completamente aquilo que eu, sim, lhe devo. Vivo com essa dívida, contente por saber que ela é impagável.”

Não fora Germain e Camus não teria prosseguido os estudos no Grand Lycée d’Argel, de tal maneira o rapaz estava destinado a um trabalho manual para ajudar na manutenção da casa de família - ao professor coube mostrar à mãe e à avó do pequeno que ele deveria continuar a estudar, que tinha todas as condições para isso. O episódio é romanceado na primeira parte da narrativa O primeiro homem, intitulada “A procura do pai”, no capítulo dedicado à escola (incluído na obra Caro Professor Germain), onde o leitor pode ver que o sentimento do aluno Jacques pelo professor Bernard outra coisa não será senão o de Camus por Germain - depois de a família aceder ao prosseguimento de estudos e depois de feito o exame de acesso ao liceu, o mestre despede-se do discípulo: “Não terás mais necessidade de mim, vais ter mestres mais sábios. Mas sabes onde estou, vem ver-me se precisares da minha ajuda.” 

Na correspondência reunida em Caro Professor Germain, impressiona a história do relacionamento entre estes dois homens, baseado na relação fraternal entre o professor e os alunos, no facto de o professor reconhecer em cada aluno uma pessoa com pensamento e ideias próprias, numa relação de afecto, cultivando a distância, da parte do professor (sem esquecer as penalizações, de que Camus dá conta no romance inacabado e publicado postumamente). Por outro lado, da parte do aluno, socialmente carenciado, vibra o enaltecimento de uma pessoa, aquele professor, que o marcou e de quem se sente devedor. As cartas que testemunham este sentimento são extraordinárias de emoção e não as podemos sentir sem as associarmos àquilo que foi um professor como Sebastião da Gama, com quem os alunos se cartearam, graças ao mesmo sentido de grandeza humana...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1168, 2023-10-18, pg. 13.