domingo, 23 de dezembro de 2018

D. Manuel Martins: “Nascemos Livres”, uma mensagem com Direitos Humanos



São cinquenta as crónicas que se albergam sob o título Nascemos Livres (Porto: Fundação SPES, 2018), livro póstumo do primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins (1927-2017), inicialmente publicadas no Jornal de Matosinhos, entre Setembro de 2016 e Setembro de 2017, com abertura de José Ferreira Gomes (presidente da Fundação SPES) e prefácio de Eugénio da Fonseca (professor setubalense, presidente da Caritas e uma das pessoas que mais dialogou com D. Manuel Martins).
O título do livro não é inócuo: num tempo como o nosso, em que à liberdade são impostas muitas fronteiras que pouco têm a ver com a justiça, em que se assinalam os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (assinada em 10 de Dezembro de 1948), em que continuamente ouvimos falar sobre limitações sociais, a voz de D. Manuel Martins encontra registo neste título, que era uma das suas frases de catequização e de intervenção.
As crónicas são curtas e também neste aspecto jogam a sua eficácia porque os textos vão ao encontro do essencial, partindo de situações concretas e sem rodeios. Logo na primeira intervenção, “Cidadãos abaixo do nível da pobreza”, o dedo é apontado aos responsáveis da “causa primeira desta lamentável situação” que “é a Filosofia Económica que guia o mundo”. A intervenção vai mais longe quando comenta, dando conta do ridículo de situações a que todos assistimos: “Quantas vezes apetece perguntar: mas, afinal, o que é isso de cidadania, de democracia, de direitos humanos? Aqueles (não todos, felizmente) que no-lo propõem ensinar-nos nem imaginam o espectáculo que oferecem a quem o ouve.” E a questão dos direitos humanos vai saltitando, espreitando-nos em quase todas as crónicas, às vezes explicitamente, às vezes implicitamente, suportada em frases tão límpidas quanto estas: “Ser feliz é o mesmo que ter acesso a todos os Direitos Humanos”; “é urgente levar os nossos cidadãos a conhecerem e a apaixonarem-se pela Declaração Universal dos Direitos Humanos”; “é no mundo que a Igreja se move e vive para cantar, promover e defender a dignidade do Homem, os Direitos Humanos são a sua profissão”; “a Declaração consta de trinta artigos e ficamos com a impressão de que são o Evangelho traduzido em linguagem do nosso tempo”.
A confessada adesão ao espírito do Papa Francisco (a quem chama “o Papa com o relógio acertado” ou o “Papa Profeta”) leva-o aos desafios que se põem à nossa relação com a Natureza ou com o dinheiro ou à mudança necessária dentro da própria Igreja - “Queremos padres no mundo, que se enterrem no mundo, para aí iluminarem e ajudarem a descobrir e a testemunhar os verdadeiros valores.”
Assunto das suas crónicas vão sendo os acontecimentos, o real com que as pessoas se confrontaram durante aquele tempo dos textos-encontro publicados ao ritmo semanal: as eleições em Portugal, em França ou nos Estados Unidos; as controvérsias em torno da Caixa Geral de Depósitos; a colocação de professores; as ameaças à paz; as dificuldades do cidadão comum; os falecimentos de Mário Soares e de Daniel Serrão; os exemplos de Abel Varzim, de Sebastião Soares de Resende e de António Ferreira Gomes; a celebração dos dias (do Doente, dos Namorados, do Natal, da Páscoa, do Carnaval, do Trabalhador, da Mulher, do 25 de Abril, da Mãe); a solidariedade como prática do quotidiano; o centenário das Aparições em Fátima ou a Semana das Vocações; os incêndios. A interpretação que D. Manuel Martins apresenta da vida tem, numa das mãos, os factos e na outra, a palavra bíblica, seja por referência directa ao livro sagrado, seja através de testemunhos relacionados com o mesmo livro.
Mesmo para os seus leitores matosinhenses, o primeiro bispo sadino não esqueceu nestas crónicas a referência à sua “querida diocese de Setúbal”, ao contar, com data de 26 de Setembro de 2016, um caso de “testemunho coerente e corajoso da nossa fé”, assente na Doutrina Social da Igreja - a criação do restaurante social e do consultório dentário social levada a cabo na paróquia de Nossa Senhora da Conceição pelo padre Constantino Alves, um gesto que dá alento ao slogan “todo o homem tem direito a sorrir” e que D. Manuel assim comenta, enaltecendo esta iniciativa da paróquia: “Eu vejo neste slogan o melhor compêndio do respeito pelos Direitos Humanos.”
Uma outra referência à margem do Sado surge pela poesia de Sebastião da Gama, quando, ao evocar as palavras do Papa na recepção que fez aos sem-abrigo, aconselhando-os a nunca deixarem de sonhar, D. Manuel Martins remata: “Pelo sonho é que vamos! Apetece acrescentar.”
A última crónica, “O nosso querido Bispo”, surge datada de 16 de Setembro de 2017, a evocar o prelado portuense D. António Francisco dos Santos (1948-2017), que falecera cinco dias antes. Logo no parágrafo inicial, é dito que este bispo conquistou o Porto em três anos, “em pouco tempo tornou-se alma do Porto”. Depois, são lembrados outros importantes prelados da diocese - D. António Augusto Castro Meireles (1885-1942), D. António Ferreira Gomes (1906-1989), D. Júlio Tavares Rebimbas (1922-2010) e D. Armindo Lopes Coelho (1931-2010) -, todos por razões diversas, mas com uma marca forte no cronista. A concluir, o texto questiona: “D. António Francisco como nos marcará, como marcará o Porto?” E a resposta fecha o artigo: “Para mim, como o nosso querido Bispo.”Não podemos ler esta última crónica sem pensar que, por vezes, a vida nos surpreende. Com efeito, D. Manuel testemunhava sobre prelados que conheceu, tendo como pretexto a morte repentina do “seu” bispo.
Uns dias depois de ter produzido esta crónica - oito, em 24 desse Setembro -, D. Manuel Martins partia também. A forma como fechou a sua derradeira crónica bem podia aplicar-se ao final que poderíamos escolher para um testemunho sobre D. Manuel Martins! Nascemos Livres, este livro, bem pode integrar um testamento espiritual legado pelo “nosso” primeiro bispo!

sábado, 22 de dezembro de 2018

Bruno Elias - Fotos da biografia de um rio, o Sado



Abre-se o livro, em formato álbum, e lê-se a explicação do autor: “Este trabalho surgiu de uma memória de infância”. Logo a seguir, insiste-se nesse período de vida: “com 6 ou 7 anos é-se capaz do deslumbramento nas pequenas descobertas”. Pelo meio dos três parágrafos (o livro não tem mais escrita do que esta), percebe-se que Rio de Moinhos, na margem do Sado, foi o paraíso infantil, a terra das “férias de Verão”, e que a vida se encarregou de mostrar que o que era ali um pequeno rio se tornava em Setúbal na baía que é. Está-se perante Sado (Setúbal: Visor / Krrastzepy Verlag, 2018), obra surgida nas livrarias no início deste Dezembro.
Depois, são 45 fotografias do trajecto do Sado, desde Ourique (onde nasce) até Setúbal (onde mergulha no oceano), a preto e branco, falando por si, mostrando, acompanhadas de uma legenda objectiva e lacónica que refere apenas o sítio e as coordenadas geográficas. No final do conjunto, há um mapa com o itinerário do rio, que refere também os poisos que permitiram ver, contemplar e fotografar o Sado.
Faça-se então o roteiro: Ourique (onde o percurso inicia, com a latitude norte de 37°37’43.0’’ e com a longitude oeste 8°14’13.9’’), Albufeira e Barragem do Monte da Rocha, São Romão de Panóias, Alvalade do Sado, Azinheira dos Barros, Santa Margarida do Sado, Monte da Quinta de Cima, Rio de Moinhos do Sado, São Romão do Sado, Casa Branca, Vale de Guizo, Alcácer do Sal, Carrasqueira, Setúbal (zona industrial, Parque Urbano de Albarquel e Outão, onde a latitude é de 38°29’15.8’’N e a longitude se cifra em 8°56’11.7’’W).
Quando o rio começa, manifesta-se na sua quase insignificância, um pouco na procura de destino, cabendo depois às fotografias mostrar o encorpar que vai construindo a identidade do Sado, harmonizando-se e construindo a Natureza, por vezes artificialmente domado, por momentos selvagem e revolto, em alguns pontos idílico e remansoso. Em Santa Margarida do Sado, parece rir-se da obra inacabada com os pegões de betão que suportariam a estrada; em Rio de Moinhos, parece segurar a tosca passagem de madeira que o atravessa; em Alcácer, espelha a cidade e alimenta o arrozal; em Setúbal, molda a paisagem urbana; frente ao Outão, o Sado despede-se.
A fotografia que Bruno Elias nos apresenta a preto e branco permite-nos colorir a paisagem, sabendo-se que o rio vai matizando o seu trajecto, ao mesmo tempo que vai adquirindo aquelas cores com que os seus admiradores o firmaram - ora o rio dourado que o padre Jerónimo Botelho requeria por 1758 ao dizer “não sei que de suas areias se tirasse ouro, mas não duvido que o tenham, se algum poeta quiser dar às águas do Sado o epíteto de douradas, aprovarei, porque, em muitos lugares, resplandecem como ouro”, ora o rio azul que o poeta e médico transmontano Cabral Adão trouxe para os versos no início da década de 1950.
Um Sado a revelar-se lentamente em cada fragmento da sua biografia e a desafiar o olhar que o contempla é o que a lente de Bruno Elias nos propõe.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Sebastião da Gama e o Natal


Fragmento do manuscrito do poema "Presépio", de Sebastião da Gama

Nas férias escolares de Natal de 1949, Sebastião da Gama (com 25 anos, exercendo funções docentes nesse ano lectivo na Escola Veiga Beirão, em Lisboa) registava no seu “Diário”: “O maior calor do meu Natal vem-me das Boas-Festas dos meus rapazes. Não foram os seus cartões — alguns tão belos!, todos, para o meu coração, tão belos! — quase não sentia o Natal; ou sentia mas era uma dor, um vazio, um sonho a desfazer-se.” Razões apontadas para este desconforto ultrapassado pelas mensagens chegadas dos seus alunos eram várias: a vida dos pais muito ocupada nessa altura (o trabalho que tinham na Estalagem de Santa Maria da Arrábida, no Portinho da Arrábida, muito movimentada nesta quadra do ano), a dedicação do irmão Sérgio à sua nova família e o facto de Joana Luísa, sua namorada, ainda não estar com ele. E comenta Sebastião: “tudo isto dispersa as brasas da lareira que eu neste dia queria ver todas unidas, todas uma”. Um pouco adiante, há ainda lugar para uma referência à quantidade de missivas chegadas: “tive, em todos os correios de férias, os cartões das raparigas e dos rapazes. E a alegria é maior quando, como agora, se lembram de mim os que eu menos contava que se lembrassem — e quando são os alunos que o já foram os mais presentes. De alunos velhos, tive até hoje 21 cartões; de alunos de agora três apenas. Com que amor os guardo! — são as minhas comendas, as minhas grã-cruzes.”
O Natal foi para Sebastião da Gama uma quadra com tudo o que de mais espiritual, fraterno, familiar e partilhável se possa imaginar, a acreditarmos nos registos que deixou. É de 13 de Dezembro de 1941 um poema de três quadras, ainda inédito, que intitulou “Carta de Boas Festas”, por onde perpassa o ambiente histórico, económico e social que se vivia (estávamos em tempo da Segunda Grande Guerra), ao mesmo tempo que nos deixamos deslumbrar com o sentido de humor e de oportunidade que animava o jovem Sebastião, então com 17 anos: “Natal à porta. E eu, minhas amigas, / doces espigas deste meu trigal, / qu’ria dar-vos, sim, ofertar-vos broas, / que são tão boas cá em Portugal. // Mas, como sabeis, a maldita Guerra / lavra na terra, tudo leva após. / Açúcar levou, levou a canela... / Broa qu’é dela? Qu’é dela a filhós? // No Porto busquei, busquei em Lisboa; / não vi ‘ma broa, sequer rasto destas. / Desculpai-me pois se eu dou, neste dia, / não que devia, mas só boas festas.”
Uns dias depois, em 24 de Dezembro, o Natal voltava a ser motivo de poema, que, dedicado a Júlia de Carvalho, assim dizia, em jeito de quem conta uma história: “Falta só um dia, meninos, ouvi, / para fazer anos que, na Nazaré, / a doce ovelhinha fazia mé-mé, / Jesus, nas palhinhas, fazia chi-chi, / sorria, encantado, o bom S. José. // Jesus foi crescendo: no chão foi dispor / um’árvore bela chamada Verdade, / que tinha por frutos a santa Bondade, / rosados quais peros, de estranho dulçor, / que sempre comê-los só dava vontade. // À sombra tão larga se vinham sentar / os bons caminheiros da estrada da Vida. / E, debaixo de si, a paz tão pedida, / os frutos gostosos, os vinha encontrar / quem perto passava e a via florida. // Vieram as chuvas, vieram os ventos / que, feros, quiseram abaixo deitá-la. / Nem ventos nem chuvas, não vinham quebrá-la / que, sempre aprumada no meio dos rebentos, / só vinham movê-la, mui pouco vergá-la. // E os frutos gostosos são cada vez mais; / e as folhas de esp’rança voando mais vão; / e alguma pernada queimada ao fogão / produz luz tão forte, produz chamas tais / que são claro dia nesta escuridão. // Falta só um dia: Jesus, nas palhinhas, / sorria aos reis magos, sorria a José. / A doce ovelhinha fazia mé-mé / e Deus, a Maria, maior das rainhas, / olhava e sorria lá na Nazaré.”
Três anos passariam para, em carta a Joana Luísa (ainda sua namorada), escrever: “Hoje é dia de Natal! Hoje é dia de Natal! Nas capelas todas, os sinos todos toquem! Cantem a minha Alegria por ser dia de Natal! Porque será que a minha Alegria é assim suavezinha como uma saudade, como um cair de Tarde?” Um pouco adiante, na mesma carta, transcrevia um poema feito nesse dia: “Eu não tenho razão pra estar triste... / Eu hoje sou a Estrela e os Reis Magos / e sou a ovelhinha do Presépio... // Mas vou triste, Menino de Belém. / Não me lembra que faltam / trinta e três longos anos pra que eu seja / a dor que há de matar a Tua Mãe.” A concluir a carta, despedia-se: “Pois adeus, Luísa. Eu não venho desejar-te, como toda a gente, um Natal muito feliz e um ano novo cheio de prosperidades. Venho desejar-te um Natal igual ao meu: um Natal que é uma brasa na lareira; que é uma espécie de perdão.” Haverá melhor mensagem natalícia a transmitir?
O mais conhecido poema de Sebastião da Gama sobre o Natal será, porventura, “Presépio”, datado de 24 de Dezembro de 1950, inserido no livro póstumo Pelo Sonho é que Vamos. Escrito na “véspera de Natal de 1950”, nesse mesmo dia integrou um postal que de Azeitão foi endereçado ao seu amigo, também poeta, Cristovam Pavia. Além de indicar quando partiria para Estremoz e de transcrever o poema, o importante da mensagem era: “Hoje quero só mandar-lhe um grande abraço de Ano Bom”. O poema, conterá, talvez, o mais franciscano retrato do que é o Natal, em busca de uma autenticidade que era apanágio do jovem azeitonense: “Nuzinho sobre as palhas, / nuzinho - e em Dezembro! / Que pintores tão cruéis, / Menino, te pintaram? // O calor do seu corpo, / pra que o quer tua Mãe? / Tão cruéis os pintores! / (Tão injustos contigo,  / Senhora!) // Só a vaca e a mula / com seu bafo te aquecem... // - Quem as pôs na pintura?”
Este poema, além de ter sido gravado por Victor de Sousa no cd “Pelo sonho é que Vamos” (Setúbal: Ruquisom, 2000), consta em três antologias, duas delas sendo referência literária sobre a época natalícia: em O Natal na Poesia Portuguesa, organizada por Luís Forjaz Trigueiros (Lisboa: Dinalivro, 1987); em Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, organizada por António Salvado (Lisboa: Polis, 1969); em Antologia de la Nueva Poesia Portuguesa, devida a Angel Crespo (Col. “Adonais”. Madrid: Ediciones Rialp, 1961), onde recebeu o título “Nacimiento”.
in Jornal de Azeitão: nº 267, 2018-12, pg. 15

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Frei António das Chagas, o frade de Brancanes


Frei António das Chagas (Biblioteca Nacional de Portugal); Cartas Espirituais (1957) 

António de Sousa Soares (1631-1682), alentejano da Vidigueira, teve vida aventurosa e repartida e passou várias vezes por Setúbal, onde foi comandante do terço de cavalaria. Um dia, sugestionado pela leitura de Frei Luís de Granada, decidiu enveredar pela vida eclesiástica, ingressando na Ordem Franciscana. Contudo, em função do seu percurso, foram-lhe levantadas dificuldades várias. Apesar dessas adversidades, a persistência não o abandonou e, em 1663, tomava o hábito no convento de Évora, passando a usar o nome de Frei António das Chagas. Tornou-se pregador e guia espiritual e passou por Setúbal (onde está consagrado na toponímia, na zona de Montalvão) em ocasiões diversas, estando o seu nome ligado à criação do convento de Brancanes.
Na colecção “Clássicos da Sá da Costa”, publicou Manuel Rodrigues Lapa um volume de correspondência de Frei António das Chagas, aí reunindo uma centena de cartas (das inúmeras que escreveu e distribuiu por um vasto leque de correspondentes), em que duas são redigidas a partir de Setúbal e numa outra há referência a uma sua vinda a Setúbal para acompanhar a fundação do seminário de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes.
Lê-se este volume das Cartas Espirituais (2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1957) e contacta-se com um espírito sábio e delicado, feito pelas agruras da vida, usando a ironia e a objectividade, defendendo a humildade, por vezes de forma dura, e assumindo a vida como acção e caminho. Deixo alguns sublinhados por serem ensinamentos importantes.

Apetite- “Calar os apetites é conhecida ganância da alma, porque é dura violência da natureza.”
Árvore- “Árvore que com pequena tempestade cai ou tem poucas raízes ou é muito tenra ainda.”
Caminho- “O negócio de quem caminha consiste em não parar e ir por diante, ou seja por serras ásperas ou por vales aprazíveis ou por flores de consolação ou por espinhas de tribulação, apesar de que picam e magoam.” 
Conduzir- “Destreza é dos pilotos saber mudar as velas, de modo que se não perca o caminho na tempestade e que os mesmos ventos contrários nos metam no porto.”
Dizer- “Umas coisas se dizem porque se sabem dizer sem se chegar a sentir; outras, porque de senti-las nasce o dizê-las.”
Espelho- “Quem se vê muitas vezes ao espelho disforme, de algumas se deseja compor.” 
Excesso- “Tanta ruína padecemos às vezes por acendidos como por areados, tantas pelo fogo que nos abrasa, como por um mar que nos cerca; porque, se naquele o ardor é o maior perigo, neste a frieza não vem a ser menor dano.”
Fogo- “O fogo sempre deita faíscas que nos ferem quando não haja chama que nos queime.”
Governar- “Quase todos os que governam sabem por onde esta nau se vai ao fundo, e por onde entrou o mar da relaxação e distraimento, que especialmente é por ambições de mando, séquito e governo; e por carear votos e séquito se não repara na insuficiência e incapacidade dos sujeitos, e ficando nestes as prelazias imprimem em seus súbditos as suas semelhanças, dando cargos e vivendo para passar a subir e merecer ao humano, com pouca atenção ao divino.”
Herói- “A Hércules convidaram-no os conflitos e fizeram-no Hércules os trabalhos.”
História- “O fim principal da história é fazer presentes para a nossa doutrina os séculos passados e estender na duração das memórias aquelas posteridades da fama a quem faz ordinariamente injúria o esquecimento dos tempos.”
Mal- “As coisas más não se podem tratar sem medo.”
Mundo- “Não é o mundo lugar para o descanso.”
Nada- “O nada não faz ruído.”
Notícia- “A verdade é alma das notícias.”
Prémio- “Quem vai buscar o tesouro na mina vai por baixo da terra às escuras, não só com escuridades, mas com fadiga, abaixando sempre a cabeça. Depois dessas trevas, há-de vir a luz e, em dando na mina, veremos que todo o trabalho é pouco e toda a fadiga leve para o prémio que se acha e para o bem que se logra, que excede a toda a comparação.” 
Queda- “A queda, que para o vidro é ruína, para a pedra é descanso e sossego: os fracos como o vidro quebram, em caindo perdem-se, quebrando-se-lhe o coração, o ânimo e a confiança; e maior dano lhe faz a sua fragilidade que a sua queda. A pedra, como é forte, na sua queda descansa; e quanto é maior o baixo a que se despenhou, maior segurança adquiriu, porque no mesmo precipício achou fundamento para maior fortaleza.”
Rio- “Um rio, por pequenino que nasça, por fonte que comece, rio continua e mar acaba, se persevera.”
Santidade- “A santidade não consiste em muito contemplar, senão em muito obrar. Mais vale um dia, em que andais fazendo obras de caridade ou de humildade ou de obediência ou de paciência, que estar um mês em contemplação, êxtases e em raptos. Porque isto é comer a iguaria sem a merecer e aquilo é merecê-la, ainda que a não chegueis a comer.” 

domingo, 11 de novembro de 2018

Sebastião da Gama: O mais antigo (e mais jovem) poema (em que se fala de reis e de Portugal)




Sebastião da Gama tinha 10 anos quando escreveu aquele que é hoje o seu mais antigo poema de que existe prova escrita. Trabalho escolar, sobre os reis de Portugal, a ele se referiria no Diário para datar um episódio da sua vida. Vale relembrar o poema; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Novembro (n.º 266, 2018-11, pg. 15).
A acompanhar o texto, uma fotografia de parte do manuscrito do poema.

Valle-Inclán: As ruínas das coisas e das vidas que a guerra alimentou



“Era meu propósito condensar num livro os vários e diversos lances de um dia de guerra em França.” Assim começa Ramón del Valle-Inclán o seu livro A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra recentemente editado em versão portuguesa (Porto Editora / Assírio & Alvim, 2018). Era, pois, intenção do autor relatar a guerra, a partir de diversas latitudes e a um tempo, de forma a haver uma visão de conjunto. Coisa impossível, como se imagina - e como o próprio autor admitiu no mesmo texto prefacial, ao dizer que “todos os relatos estão limitados pela posição geométrica do narrador.”
Valle-Inclán (1866-1936), galego, pertencente a um país que manteve a sua neutralidade aquando da Primeira Grande Guerra, cedo assumiu uma posição a favor dos Aliados, ao subscrever, em 1915, o “Manifiesto de los Intelectuales Españoles”. No ano seguinte, em Abril, por indicação do seu amigo Jacques Chaumié, tradutor, visitaria França, andando, pelos finais de Maio e início de Junho, pela “Frente”, na zona das trincheiras. Passados uns meses, entre Outubro de 1916 e Fevereiro de 1917, o periódico madrileno El Imparcial publicaria as crónicas resultantes dessa viagem, que Valle-Inclán reuniria em livro ainda em 1917, apresentando visões de uma guerra que só viria a acabar em Novembro de 1918.
Ainda na nota introdutória, Valle-Inclán refere já indicações do que viria a ser o sofrimento por causa da guerra, antecipando um quadro que foi real e dramático: “Quando os soldados de França voltarem às suas aldeias, e os cegos caminharem pelas veredas com os seus cães, e os que não têm pernas pedirem esmola à porta das igrejas, e os mancos correrem de um lado para o outro com alegre ofício de recebedores do dízimo; quando no fundo dos lares se nomearem os mortos e se rezar por eles, cada boca terá um relato distinto, e serão centenas de milhares os relatos, expressão de outras tantas visões, que acabarão por resumir-se numa visão, cômputo de todas. Desaparecerá então o pobre olhar do soldado, para criar a visão colectiva.” De facto, todas as marcas que ficaram da guerra, físicas ou psicológicas, assemelharam-se a um estado de ruína humana, povoado pela dor, pelo sofrimento, pelo desgaste e pela descrença. Depois de um século cheio de guerras como foi a época oitocentista, o menos desejado era o ciclo da guerra - mas foi exactamente o que aconteceu.
Nas trincheiras visitadas por Valle-Inclán, fedia “a morto como na jaula das hienas”, não se calando “o estrondo do canhão rolante pelo seu céu”. O desprezo pelo humano era intenso - “os ratos correm vivazes pelos taludes, as ratazanas aguadeiras pelo fundo lamacento, e rajadas de vento trazem frias pestilências de cadáver”. O repórter vai passando e o que vê são marcas dessa ruína que dos edifícios passa para os humanos e para as relações pessoais - se, de um e de outro lado, “as casas mostram os seus esqueletos vermelhos e fumegantes”, noutro ponto, são “cadáveres de alguns soldados alemães” que “flutuam nas águas” apresentando um aspecto de horror, “inflados e tumefactos”, uns sem cabeça, outros com marcas de flagelo nos corpos.
Os cenários descritos são infernais - aldeias a arder, personagens trágicas, bombas que cavam a terra. E, enquanto a tempestade de ferro atroa os ares na sua função destruidora, “os mortos ficam para trás, esmagados sobre a terra, seminus, com as roupas desfeitas pelas explosões” e os feridos “arrastam-se pelas esgaivas, procuram onde esconder-se, e, encontrando um local seguro, levantam os seus clamores pedindo socorro”. Para onde o olhar se dirija, “a névoa está cheia de vozes perdidas, empenhadas de dor”.
Foi Aquilino Ribeiro que, em Alemanha Ensanguentada (1935), registou sobre os bombardeamentos da cidade de Arras que “nesta linha se escreveu uma epopeia de sangue e de bravura que escurece a Ilíada”. Nessa viagem aos campos de batalha que Aquilino fez em 1928, embora assistindo-se já à reconstrução ensaiada pelos franceses, vai havendo sempre margem para registar as “árvores decapitadas”, a paisagem que “trasborda de melancolia” ou o chão em que “os mortos escutam”. Dez anos eram passados sobre o final da Grande Guerra e as marcas da dor e do sofrimento permaneciam, mesmo que sob as luzes da reconstrução. A mesma cidade de Arras foi apresentada, depois de destruída, por Valle-Inclán como “o espectro de uma cidade bombardeada”.
Na sua missão de observador, o cronista vai também contando histórias ouvidas, dramáticas de dor, pungentes no sofrimento que transmitem, como a da rapariga francesa grávida que se volta para o médico e clama: “Doutor, eu não quero ter um filho dos bárbaros!... Não quero carregar com este! Se não me liberta desta cadeia, mato-me!”
Valle-Inclán participou também numa viagem aérea de observação e sentiu como os soldados a tensão do assalto às trincheiras, ora classificado com qualitativos como “magnífico” e “pujante”, ora anulado o heroísmo perante um “cego impulso de vida sobre o fundo de dor e de morte”.
As crónicas são curtas (pouco mais de uma centena de páginas para quarenta capítulos), não ultrapassando o absolutamente necessário quanto a narração ou a descrição, mexendo sobretudo com a forma de sentir. O parágrafo final apresenta uma ideia premonitória do que será o final da guerra, trazida pelo nascer do dia que permite ver o que aconteceu durante a noite: “Nos átrios das velhas cidades estalam as granadas, caem as pedras das catedrais, os pórticos corados de santos tremem nos seus cimentos, rompem-se as rosáceas, e as andorinhas voam assustadas pelas naves desertas. À luz do dia que começa, a terra mutilada pela guerra tem uma expressão dolorosa, reconcentrada e terrível.”
Os textos deste A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra encontram unidade no cenário catastrófico que se vai tornando visível, espécie de caos, num mundo povoado de destruição, construído de ruínas. As personagens que entram nas histórias são fugazes, ajudando a compor o sentido da dor, quase tendo necessidade de desaparecerem, não vá a ruína tomar conta delas...
Não sendo esta uma obra dominada pelo cunho autobiográfico de um combatente - que Valle-Inclán não foi -, é preenchida pelo traço autobiográfico do testemunho, questionando a guerra e todos os seus efeitos, confrontando o heroísmo humano com a morte, afinal o que mais hipóteses tem de acontecer numa situação de guerra. Rapidez, leveza e emoção, associadas a uma quase prosa poética, em que o ser humano se confronta com o inimaginável, são aspectos fortes deste livro, que ajuda o leitor a conhecer o cenário que os combatentes usaram, já que são eles, colectivamente, que agem em todas as histórias e que, pensando na vitória, semeiam a tempestade bélica.
Esta obra de Valle-Inclán é uma proposta de leitura para este tempo em que passa o centenário do armistício, uma proposta de leitura para que o mundo seja construtor de paz e não espaço de guerra.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Para a agenda - Leituras da Grande Guerra: o último fuzilado, as memórias, o impacto social e político



A Biblioteca Pública Municipal de Setúbal recebe no sábado, 27 de outubro, a apresentação da obra “João Almeida, o último Fuzilado, e outras leituras da Grande Guerra”, da autoria de Albérico Afonso Costa e João Reis Ribeiro.
A obra, apoiada pelo Instituto Politécnico de Setúbal, será apresentada por Viriato Soromenho-Marques, em sessão marcada para as 18h00.
Quase a completar-se o ciclo de memória do centenário da Grande Guerra, este livro é constituído por seis abordagens relacionadas com esse momento histórico: “A receção do antimilitarismo no movimento operário português”, “Os partidos políticos face à Guerra”, “Jaime Cortesão: um intelectual perante a Guerra”, “Aquilino Ribeiro – diário do início da Guerra”, “O impacto social e político da I Grande Guerra no movimento operário” e “O fuzilamento do soldado João Almeida – Da farsa de um julgamento à tragédia de uma execução”. As fontes principais para a organização desta obra foram a imprensa da época, os testemunhos memorialísticos sobre esse tempo histórico e documentação preservada em alguns arquivos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Sebastião da Gama e Luís Amaro: Uma amizade para sempre



Por meados da década de 1990, estava com alunos numa visita de estudo em Monsaraz. A dada altura, três pessoas aproximavam-se do restaurante. Uma dessas pessoas era Luís Amaro. Reconheci-o por uma fotografia que vira pouco antes, sabia do seu trabalho em favor da literatura portuguesa, tinha alguma informação sobre a sua amizade com Sebastião da Gama. Tendo ao alcance a oportunidade de o conhecer, meti conversa. Ficou admirado por o ter reconhecido, pois não era dado a publicitações e cultivava a sua discrição. Lá contei como o conhecia e falei-lhe de Sebastião da Gama, da “Colóquio-Letras” e de literatura. Mantivemos um bom bocado de conversa. E, à despedida, voltou a manifestar a sua admiração por o ter reconhecido...
Passaram uns anos e, por 2007, voltei a contactá-lo, agora por carta. Fomos mantendo diálogo, ora por telefone, ora epistolarmente. Deu-me informações sobre Sebastião da Gama, fez-me chegar indicações bibliográficas, enviou-me anotações sobre a edição do “Diário” de Sebastião da Gama que preparei no sentido de melhorar uma próxima edição, ofereceu-me o seu livro com dedicatória a propósito, usando sempre uma afabilidade e disponibilidade que me impressionaram. Em duas das cartas referiu a lembrança daquele encontro em que nos conhecemos em Monsaraz, num gesto de memória extraordinário.
Senti perder um amigo e uma grande oportunidade de mais saber quando fui informado do seu falecimento em finais de Agosto.
Inevitavelmente, na rubrica “Evocar Sebastião da Gama”, teria de lembrar a extraordinária relação de amizade e essa aproximação fraternal que envolveu Luís Amaro e Sebastião da Gama (Jornal de Azeitão: nº 265, 2018-10, pg. 15).

sábado, 15 de setembro de 2018

Bocage, poeta, português, setubalense, 253 anos



Uma inscrição num canto de Setúbal traz-nos Bocage e uma universal verdade sobre que poetou - esta consta num soneto: "De quantas cores se matiza o Fado! / Nem sempre o homem ri, nem sempre chora, / Mal com bem, bem com mal é temperado."
Parabéns, Bocage!

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Sebastião da Gama, a Arrábida e a criação da Liga para a Protecção da Natureza (LPN)


Sebastião da Gama tinha 23 anos quando tomou uma atitude de defesa do património da serra da Arrábida, tentando conquistar parceiros para a causa. A protecção desse património natural não foi imediata, mas a LPN (Liga para a Protecção da Natureza), criada um ano depois, foi a primeira consequência do "grito" deste jovem em defesa da "sua" serra.  Vale relembrar aspectos da história; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Setembro (n.º 264, 2018-09, pg. 15).
A acompanhar o texto, uma fotografia de Sebastião da Gama na praia de Galapos, em 1940.criar site


quarta-feira, 5 de setembro de 2018

José Tolentino Mendonça e a biblioteca


D. José Tolentino Mendonça, arcebispo e poeta, no dia em que assumiu o cargo de responsável pela Biblioteca do Vaticano, em entrevista a António Marujo (no Público, de 1 de Setembro), deu uma definição extraordinária de biblioteca - por um lado, pela simplicidade, e, por outro, pela linguagem metafórica. Prova de sabedoria, de facto. A reter, porque para pensar.

“Digo muitas vezes que a minha primeira biblioteca foi a minha avó materna. A minha avó não sabia ler e a única palavra que, com imensa dificuldade, conseguia escrever era o seu próprio nome. Nada mais do que isso. Mas tinha dentro da cabeça um inteiro reportório do cancioneiro oral com os seus contos, os romances tradicionais, as múltiplas formas da lírica popular, que não se cansava de transmitir. Com a minha avó analfabeta aprendi aquilo que depois os meus anos de estudo só confirmaram: que a palavra escrita é inseparável da voz humana. Que todos os textos do mundo têm dentro de si os vestígios de uma voz. Que a literatura outra coisa não é do que uma fantástica concha acústica, onde podemos reencontrar a interminável conversa que os seres humanos mantêm. Que o silêncio das bibliotecas outra coisa, na verdade, não é do que um impressionante coral com milhões de vozes que atravessam os tempos, cuja audição nos avizinha do inesgotável e fascinante mistério da vida...”

sábado, 1 de setembro de 2018

Prémio literário Bocage já tem vencedor: "A Casa do Ser", de António Canteiro



António Canteiro é o vencedor da XX edição do Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, promovido pela LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão) com o trabalho A Casa do Ser, na modalidade de poesia, cujo prémio será entregue na tarde de 15 de Setembro, feriado municipal em Setúbal e dia de Bocage.
António Canteiro, pseudónimo de João Carlos Costa da Cruz, é natural de Cantanhede. Detentor de vários galardões literários, mereceu em 2013 o primeiro lugar no Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama com a obra O Silêncio Solar das Manhãse, em 2015, o primeiro lugar no XVII Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage com a obra Na Luz das Janelas Pestanejam as Sombras.
O júri decidiu não atribuir prémio na modalidade de “Revelação”.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Manuela Tomé: A história de Setúbal pela sua arquitectura



O título Topologia e Tipologia Arquitectónica - Setúbal - Séculos XIV-XIX - Memória e Futuro da Imagem Urbana, de Manuela Maria Justino Tomé (Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2018), é longo, mas conta tudo o que pode ser encontrado dentro do livro, haja em vista as referências ao objecto de estudo, à localização, à periodização e ao exercício de reflexão crítica.
Ao longo das suas mais de duas centenas de páginas, a obra está organizada em sete capítulos, intitulados de acordo com o seu assunto e com a cronologia (“A Cidade - Enquadramento Local e Histórico”, texto introdutório; “A Urbe - Sécs. XIV-XVI”, com a vila delimitada pela muralha medieval; “A Restauração”, abrangendo as alterações do séc. XVII; “Consolidação do Aglomerado Urbano”, sobre os efeitos dos sismos de 1755 e de 1858; “Núcleos entre Muros”, analisando o crescimento de Setúbal para Tróino, Palhais e Fontainhas; “Tipologia Arquitectónica” e “Memória e Futuro da Imagem Urbana”). Aqui, o leitor passeia pela história de Setúbal sob o ponto de vista da imagem urbana, com abundante recurso à cartografia, exemplarmente reproduzida. Os mapas, as cartas e os desenhos da cidade vão sendo os propulsores de uma história que já vem desde a Idade do Bronze final e que a autora, arquitecta de formação, nos faz acompanhar até ao presente.
A viagem permite a visita ao documento cartográfico mais antigo reproduzido, o portulano do genovês Angelino Dulcert (de 1339), ao mapa de Setúbal constante na “Tabula Hidrographica” (de 1594) e àquela que será a “planta mais antiga de Setúbal” atribuída a Filipe Terzio ou ao Capitão Fratino, apresentada por Alexandre Massay (em 1617), entre umas dezenas de representações do espaço designado por Setúbal que entram pelos séculos XV a XX.
Segue o viajante o texto e as imagens e vai-se tornando claro o que é o crescimento de uma cidade, um quase ser vivo que se vai ajustando às pressões do tempo, aos acontecimentos históricos, às necessidades dos moradores, às modas de cada época, ao desenvolvimento económico e também aos caprichos da Natureza. Os tempos explicam a forma da cidade e ajudam a compreender as estruturas do casario ou o traçado das ruas e vai sendo possível haver sobreposições de cartas para o encontro com o que se mantém e com o que foi sendo alterado, para a vista sobre qual foi o percurso que a cidade teve até ser o que é hoje - a povoação saiu das muralhas mas foi mantendo a forma que lhe fora transmitida, o centro urbano já passou pela Praça da Ribeira e pelo Largo de Santa Maria, a Feira de Santiago já assentou no Terreiro de Jesus, obviamente numa cidade que tinha outras geografias, mas cujo crescimento foi sempre acompanhando a janela de ver o rio e só bem mais tarde a mancha alastrando para o interior, numa evolução frequentemente pontuada pelos estabelecimentos públicos e militares e pelas construções religiosas.
Torna-se esta leitura um percurso para o encontro com o património cultural sadino e com aquilo que o define, num quase jogo com os valores que houve e com aqueles que se mantiveram, num cavaquear entre a memória e a singularidade construtora de uma identidade.
Necessariamente, este livro denota também preocupações pedagógicas e não deixa de lado algumas chamadas de atenção, como esta, quase no final: “A sociedade actual é fundamentalmente determinada pelo factor económico, que influencia todas as áreas da cidade, interferindo com os valores identitários da sua comunidade, aqueles que são pertença comum e que fazem com que esse património seja também nosso. É premente pensar e decidir, no presente, o futuro desse património, direccionado para a sua continuidade cultural e vivencial, e não apenas pelo domínio dos factores economicistas, actualmente, tendencialmente muito ligados à indústria do turismo, e em função das suas exigências, pelo crescimento e desenvolvimento económico que representa.” É que o temor advém da necessidade de sensibilidade para que aspectos fundamentais do que tem sido a cidade não sejam adulterados ou desajustados. E, quase a roçar a actualidade (lembremo-nos de que o livro, sendo de 2018, é o texto de dissertação de doutoramento em Arquitectura, apresentada pela autora na Universidade da Beira Interior em 2015), no que respeita às tipologias e às reconstruções ou adaptações, Manuela Tomé adverte: “Em zonas de grande sensibilidade os revestimentos e os pormenores de construção ou a cor assumem um papel muito importante na imagem urbana e autenticidade na arquitectura. A cor é uma referência cultural.” Valerá a pena o leitor questionar-se sobre a paisagem (re)construída que vai vendo e reflectir sobre a coerência dessa paisagem com a função do objecto e com as memórias da cidade...
Lê-seTopologia e Tipologia Arquitectónica - Setúbal - Séculos XIV-XIX - Memória e Futuro da Imagem Urbana e não se pode ficar indiferente à cidade, à sua forma e àquilo que ela nos diz. Será esta uma obra de consulta obrigatória para o conhecimento de Setúbal, aliando história e descrição, pondo ao nosso alcance um extenso, completo e rico acervo iconográfico no âmbito da cartografia e das tipologias, que muito enriquece a bibliografia da história local e da história da arquitectura.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Sebastião da Gama: O Último Texto



"Encarcerar a asa" foi o último texto que o poeta azeitonense Sebastião da Gama escreveu. Vale falar sobre a(s) simbologia(s) desse texto e sobre a esperança que o poeta tinha; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Agosto (n.º 263, 2018-08, pg. 15).
A acompanhar o texto, uma fotografia de pintassilgo (a ave que motivou o texto) retirada do blogue de Armando Marques.como montar uma loja virtual


terça-feira, 28 de agosto de 2018

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Rostos (204) - Sebastião da Gama na Escola de que é patrono



Sebastião da Gama
escultura em aço recortado, na Escola Secundária Sebastião da Gama, em Setúbal

domingo, 26 de agosto de 2018

Rostos (203) - Carlos Alberto Ferreira Júnior, uma voz de Azeitão


Monumento a Carlos Alberto Ferreira Júnior
inaugurado em 25 de Abril de 2018, em Azeitão

sábado, 25 de agosto de 2018

Rostos (202) - Música e dança em azulejo, na biblioteca


Música e dança
painel azulejar, Biblioteca Camões, Lisboa

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Rostos (201) - Pescador do Montijo



Monumento ao Pescador Montijense
descerrado em 25 de Junho de 1999, por iniciativa da SCUPA

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Sebastião da Gama: "Pelo sonho é que vamos" - Um verso que vale uma obra



"Pelo sonho é que vamos" é um dos mais conhecidos versos do poeta azeitonense Sebastião da Gama. Vale falar sobre a expressividade desse verso e sobre a adesão que tem merecido; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Julho (n.º 262, 2018-07, pg. 13).
A acompanhar o texto, uma fotografia da pintura mural que pode ser vista/lida na Rua das Oliveiras, no Bairro de Tróino, em Setúbal.


quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Para a agenda: João Almeida, o último fuzilado, e outras histórias da Grande Guerra



Seis abordagens relacionadas com a Primeira Grande Guerra - “A recepção do antimilitarismo no movimento operário português”, “Os partidos políticos face à Guerra”, “Jaime Cortesão: Um intelectual perante a Guerra”, “Aquilino Ribeiro - Diário do início da Guerra”, “O impacto social e político da I Grande Guerra no movimento operário” e “O fuzilamento do soldado João Almeida - Da farsa de um julgamento à tragédia de uma execução” - constituem o conteúdo da obra João Almeida, o Último Fuzilado, e Outras Leituras da Grande Guerra, assinada por Albérico Afonso Costa e por João Reis Ribeiro e apoiada pelo Instituto Politécnico de Setúbal.
Está para breve, as provas já estão em revisão...

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

"Arrábida, em contínuo": Um livro virtual em louvor da serra e dos 40 anos do Parque Natural da Arrábida



Chama-se Arrábida, em contínuo. Não existe em suporte papel, mas está ao alcance no formato virtual. É um livro de uma centena de páginas que pretende assinalar os 40 anos da criação do Parque Natural da Arrábida, passados em 2016, agora editado pelo ICNF, sob a orientação editorial de Eduardo Carqueijeiro e Miguel Henriques.
A Arrábida é perspectivada em diversas áreas - da geografia à literatura, do ambiente à história, da geomorfologia à filosofia -, servindo para todas as áreas de interesse e para múltiplos saberes.
A lista de colaboradores é vasta e diversificada: Viriato Soromenho-Marques, Pedro Castro Henriques, Fernando Santos Pessoa, Robert Manners Moura, Tito Rosa, Francisco Ferreira, Miguel Henriques, Nuno David, Eduardo Carqueijeiro, Ricardo Paiva, João Reis Ribeiro, Anabela Trindade, Jorge Humberto, Pedro Soares Vieira, Pedro Holstein Beck, António Mira, Pedro Arsénio, João Joanaz de Melo, José-António Chocolate e Francisco Borba.
O livro pode ser descarregado aqui.

Helena Buescu e Inger Enkvist: duas opiniões sobre educação a ler hoje


No Público de hoje, dois bons textos sobre educação que merecem uma leitura e um olhar atentos.

   

O primeiro, de Helena Carvalhão Buescu (a ler aqui), sobre as aprendizagens essenciais, sobretudo no domínio do Português do ensino secundário. Um texto de preocupações que, mais do que serem dos professores, deviam ser dos pais, das famílias e da sociedade. Reduzir o ensino secundário ao “essencial”, seja isso o que for, é dar uma machadada no espírito crítico tão necessário, é deixar ao livre arbítrio dos níveis de exigência (não da exigência em si) a preparação e o apoio aos alunos, á ajudar a que se pense e conheça cada vez menos. Os argumentos de Buescu, que subscrevo (para que dúvidas não restem), fazem-me lembrar uma história passada com um colega, professor de Português, há uns anos: uma mãe de um seu aluno de 11º ano encontrou-o e, feliz, contou-lhe que o filho estava a estudar Os Maias. Quando o colega quis saber como era feito esse estudo (que só podia ser através da leitura da obra, obviamente), a progenitora explicou que, todos os dias, à noite, lhe lia um bocadinho do romance até ele adormecer...

O segundo texto é uma entrevista feita por Bárbara Wong à professora universitária sueca Inger Enqvist (que pode ser lido aqui), que, nos seus 71 anos de saber e com uma simplicidade impressionante, diz verdades fundamentais que variadas correntes têm andado a contestar e a alastrar essa oposição, estando a deixar marcas nos sistemas educativos. Marcas que, como sabemos, são fenómenos de moda e que deixarão resquícios de que nos viremos a arrepender, por certo. Vale a pena ler a entrevista na íntegra, independentemente de nos situarmos na sociedade como pais, como professores ou como educadores. Acho que serve para todos, sem excepção. Deixo algumas citações:
“Aprender a aprender”- O “aprender a aprender” dá a ideia de que se aprendeu alguma coisa que se pode usar noutras situações, mas a investigação diz que não. É preciso aprender os factos para se ser capaz de pensar, compreender e chegar a conclusões. É preciso ter muito conhecimento para ser capaz de pensar bem. 
“Em Portugal ou no Reino Unido, ninguém quer ser professor” -É um problema também noutros países. Em comum, têm o facto de terem introduzido a “nova pedagogia” que diz que o estudante tem direitos e não é obrigado a obedecer ao professor. Quando o aluno pode entrar ou sair da sala de aula, quando pode chegar e não trazer os trabalhos feitos, ou pode dirigir-se ao professor de forma desrespeitosa, ninguém quer ser professor.
Perfil de um bom professor- Para ter bons professores é preciso ter um Governo que imponha boas regras. Um bom professor tem de ter uma boa preparação, em termos da língua e do conhecimento, e gostar de aprender. Mas é preciso aceitar que qualquer aluno possa estar em turmas de diferentes níveis. 
Os pais nunca devem falar mal dos professores?- Nunca. Podem dizer: “Se fosse eu, não faria assim, mas aprende tudo o que puderes com essa pessoa.”
Nas férias do Verão, os alunos devem continuar a estudar?-Primeiro, é necessário ir com eles para a rua, depois pô-los a ler. Ler pelo prazer. Até podem oferecer uma recompensa: “Lê dez livros e oferecemos-te uma viagem.” Se não forem bons leitores, não serão bons alunos.

Castelo do Neiva - A comunidade piscatória retratada por Abel Coentrão



Há reportagens que nos surpreendem pela positiva. Aliás, deviam sempre surpreender, pois a reportagem é o caminho entre o jornalismo e a literatura, assim ficando sempre o desejo de que uma reportagem seja uma obra de arte, mesmo se pequena...
Hoje, ao ler uma reportagem do Público, de imediato me veio o nome de Raul Brandão por causa da sua obra Os Pescadores (1923). Estou a referir-me à peça que Abel Coentrão assina no “P2” de hoje, entre as páginas 1 e 3, intitulada “Em Castelo do Neiva há um barco chamado Esperança”.
A delicadeza e o conhecimento com que o repórter entra na peça é inebriante e denota uma boa preparação e sensibilidade. Fala-se das pessoas, dos seus problemas, da pesca, do papel das entidades, dos receios, da vida, daqueles que olham o mar tentando adivinhar-lhe a emoção, oscilando o vocabulário ligado ao mar com o sentimento, a descrição e o discurso reproduzido. Fala-se de um modo de viver, acreditando na esperança, jogando metaforicamente com o nome da embarcação.
É lindo de ler este texto de Abel Coentrão. E assalta logo a vontade de ir até à Pedra Alta, ali em Castelo do Neiva, olhar o rio (Neiva, claro) e o Atlântico, correr a memórias da infância em que, da praia da Amorosa, íamos à do Castelo para ver o movimento dos barcos e dos pescadores.
Creio que Raul Brandão, na sua obra Os Pescadores, não fala de Castelo do Neiva (não posso agora confirmar), muito embora escreva sobre a costa norte entre Caminha e Póvoa de Varzim. Mas, se fosse possível, Brandão iria agora ao Castelo, mesmo que fosse apenas para ver se Coentrão não o teria lido...

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Para a agenda - Fundação Oriente promove exposição sobre Livraria do Convento da Arrábida



Em 1994, foi publicado pela Fundação Oriente o Catálogo da Livraria do Convento da Arrábida, organizado por Ilídio Rocha. Já lá vão 26 anos sobre essa obra e, agora, quando a Fundação Oriente assinala o seu 30º aniversário e a primeira década do Museu do Oriente, a Livraria do Convento da Arrábida volta a estar em destaque.
Uma das acções de aniversário que a Fundação vai levar a cabo é a exposição “Olhares sobre a Livraria do Convento da Arrábida”, no Museu do Oriente, durante três meses, entre 26 de Julho e 28 de Outubro. Haverá visita comentada e conferência de encerramento, conforme informação no “site” da Fundação.
Para a agenda!

Para a agenda: "A Casa Verde" no centenário de Silva Duarte



Silva Duarte, setubalense, nasceu há 100 anos numa casa sita na Avenida Luísa Todi, ainda hoje existente, que ele próprio designou como “casa verde”.
A sua vida foi uma peregrinação pelo mundo, pelo saber e pela cultura. Pintor, escritor, poeta, tradutor, professor, Silva Duarte foi o mais importante andersenista português, sendo o responsável pela maioria das traduções de Hans Christian Andersen disponíveis no mercado português, aí se incluindo a totalidade dos contos e o relato de viagem que o autor dinamarquês fez em Portugal em 1866.
A LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão) e a Câmara Municipal de Setúbal, com o apoio indispensável de Fátima Ribeiro de Medeiros, estudiosa de Silva Duarte, têm um programa para cumprir durante um ano, homenageando este autor setubalense em diversas actividades - a primeira, uma conferência sobre a sua vida e obra, proferida por Fátima Medeiros, teve já lugar em 5 de Junho, o dia dos 100 anos. A segunda vai acontecer no sábado, 30 de Junho, pelas 17h00, na Casa Bocage, com a apresentação do livro A Casa Verde, homenagem do autor à casa em que nasceu.
Para a agenda!

segunda-feira, 25 de junho de 2018

"Ainda que a nuvem passe por cima da luz", uma coreografia contra o "bullying"



"Ainda que a nuvem passe por cima da luz" é um trabalho de mérito, inteligente, sentido, imprescindível. 
Concebido por Sofia Luz, jovem palmelense, e pelo seu grupo de dança, é necessário que seja visto e reflectido. O tema é o bullying, algo que preocupa a sociedade de hoje. A música, a dança e as palavras caracterizam-no, mas também incentivam à coragem. Peça notável! A ver, em cerca de sete minutos que não serão um desperdício...