Mostrar mensagens com a etiqueta Azeitão. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Azeitão. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Idalina Veríssimo traz Sebastião da Gama aos mais novos



Começa com dois versos do poema “Madrigal”, escrito em 7 de Outubro de 1946, e conclui com a primeira quintilha do poema “O Sonho”, redigido em 1 de Setembro de 1951. Entre os dois excertos, desenrola-se a história de Sebastião, o Menino que Nasceu Poeta, criada por Idalina Veríssimo e ilustrada por Cristina Arvana (edição da Junta de Freguesia de Azeitão), obra que visa apresentar o poeta aos mais novos quando passa o seu centenário.

Tudo se passa entre três personagens — a avó Idalina e os netos Alice e Afonso —, a que se associa a figura de Sebastião da Gama, que ganha vida a partir de uma escultura, numa criação onde o fantástico espreita: “A Alice, sempre muito irrequieta, quis logo mexer na boina do homem da estátua, que lhe sussurrou: ‘Está quieta, Alice! Estás a fazer-me cócegas!’ A princípio, a Alice pensou que o homem da boina era mágico, que tinha poderes. Nunca tinha ouvido uma estátua a falar!” A partir desta forma de meter conversa, a figura de Sebastião da Gama anima-se e serve de cicerone ao trio familiar, num percurso por Azeitão e Arrábida (Portinho e Convento) e pela sua biografia.

Tem, assim, o leitor a possibilidade de conhecer um quase-roteiro do poeta com início nas casas onde nasceu e onde passou a adolescência, com um olhar para a casa que era a da amiga e depois namorada, invocando o namoro “à janela”. Depois, é o caminho para a Arrábida, com a personagem a recordar que “conhecia todos os segredos da serra” e que transportava sempre consigo um “caderno, onde escrevia o que via e sentia”, em caminhadas que tinham a companhia da cadela Dina.

Perante a vista sobre o Sado, o poeta ensina as crianças, suas companheiras de percurso, a olharem o mar e as flores, numa atitude que também pretende ser pedagógica para os jovens leitores. É no Alto do Formosinho que surge o contacto mais sentido com a Natureza — o olhar para as cores do céu, do mar e da serra; o som das aves; o aroma proveniente das flores; o toque do ar inspirador —, ambiente propício à criação poética. A conversa ruma, depois, para a aprendizagem da identificação das plantas e para o relembrar do episódio do ramo de noiva feito com alecrim apanhado na serra que aconteceu no casamento de Sebastião com Joana.

Uma passagem rápida pelo Convento é o ponto que antecede a chegada dos quatro protagonistas ao Forte de Santa Maria, espaço histórico e local afectivo para o poeta, que explica também a razão de ser do título do seu primeiro livro, Serra-Mãe.

A caracterização do poeta vai ganhando alegria pela aproximação aos jovens que o acompanham, todos sorrindo para a vida e para o momento e tendo as crianças a oportunidade de perceber a necessidade do recolhimento e do silêncio como elementos importantes para o pensar e para a produção de um poema.

O final da história acontece com o regresso a Azeitão e com o retomar do tempo, momento em que Sebastião volta a ser estátua. Nas mentes de Afonso e de Alice fica a intensidade da experiência que ambos vão partilhar com a família e, no dia seguinte, na escola — e é o momento para o final: “A Alice e o Afonso gostaram muito de aprender a história a história deste poeta azeitonense e convidam-te a ti, aos teus amigos, aos teus pais e professores, a conhecerem quem foi Sebastião da Gama. Que nunca fique esquecido, nem a sua história de vida, nem a sua poesia, e muito menos o seu Amor à nossa Serra da Arrábida.”

Dar a conhecer a história local aos mais jovens tinha sido pretexto para outro livro de Idalina Veríssimo, Afonso à Descoberta de Azeitão, de 2015, aí aparecendo já a referência a Sebastião da Gama, mas de forma muito sumária. Com a obra agora publicada, enriquecida com finas cores e traços de aguarela, em retratos que bem captam a paisagem e os lugares, o público juvenil tem ao seu dispor a biografia da mais importante personalidade azeitonense ligada à cultura portuguesa, num relato leve e muito ligado à identidade local, que consegue também ensinar a olhar o mundo e a transformar a vida em motivo de poesia.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1283, 2024-04-18, pg. 10.

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Azeitão nos poemas de Sebastião da Gama


 

Sebastião da Gama tinha o hábito de, no final de cada poema, localizar e datar o momento da sua escrita - em 695 poemas conhecidos (não considerando as 239 quadras), há 137 em que não surge a referência ao local de criação e 53 que não estão datados -, prática que parece associada à diarística, tanto mais que, em alguns casos, menciona o local quase exacto do sítio em que escreveu - uma larga maioria dos poemas surge a partir da “Arrábida” (aparecendo referências mais precisas a Alto da Mata, Convento, Lapa de Santa Margarida e Cruzeiro, Jardim de S. Pedro de Alcântara, Pocinho da Torre, Estelita, Olivalinho, Bom Jesus, Alpertuche), mas também os há produzidos em Lisboa, Parede, Azeitão, Paris, Estremoz, Coimbra, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Castelo de Vide, mencionando uns poucos terem sido escritos “Algures” e outros durante um trajecto, como “de Cacilhas a Azeitão”, “em frente a Coimbra”, “comboio do Douro”, “entre Azeitão e Setúbal”, “trajecto Azeitão - Cacilhas”. Apenas um menciona o espaço caseiro - “nossa casa”, no poema “Largo do Espírito Santo, 2 - 2.º”, escrito em Estremoz, trazendo para título a morada onde Sebastião da Gama e a esposa, Joana Luísa da Gama, viviam.

Embora a Arrábida integre a freguesia de Azeitão, a verdade é que os dois espaços acabam por funcionar como comunidades próprias, tendo a ida do jovem poeta para a Arrábida por razões de saúde sido a responsável pela localização de escrita dos poemas maioritariamente no território arrábido, onde a família vivia. Azeitão, incluindo Vendas, Vila Nogueira e Aldeia Rica, são locais que aparecem como espaços de escrita de cerca de uma trintena de poemas, ainda que a temática ou as referências locais não perpassem por todos eles.

Entre as mais de duzentas quadras que Sebastião da Gama escreveu, há três que referem Azeitão - uma, dedicada à beleza das azeitonenses, “tão belas, tão airosas” que fazem “chorar ‘té as próprias rosas”; outra, dando a ideia de que a terra é um jardim, onde é “cada moçoila, uma flor”; finalmente, a terceira apela às jovens de S. Simão para terem cuidado com o seu coração. Estas quadras, enaltecendo a juventude, cruzam-se com os viras de Vila Nogueira e de S. Simão, datados de Dezembro de 1941 e de Março de 1942, respectivamente: no primeiro, são evocados os encontros de namorados junto da Fonte dos Pasmados, as promessas não cumpridas, as separações por ida do rapaz para a tropa ou por haver troca de par; no segundo, a pretexto de um casamento, há o repicar dos sinos e a garantia de fidelidade dada pelo Menino da Senhora da Saúde, cuja festa é desejada pelo ambiente festivo (missa, sermão, foguetes, procissão, vinho e arraial). A propósito do vinho, é comovente o soneto de Dezembro de 1942, que remata — aquando da distribuição de prendas pelo Menino Jesus —  elogiosamente para os néctares azeitonenses: antes de se retirar dali, depois de cumprida a sua tarefa, o Menino decide “pra Seu divino pai, mai-los anjinhos, / levar o saco cheio de bons vinhos / moscatéis lá das cepas de Azeitão.”

A dimensão da religiosidade torna-se evidente nas Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946), que acompanham a peregrinação desde Azeitão até ao Convento e volta, demonstrando as quadras desta composição a manifestação da fé dos devotos azeitonenses e narrando o contentamento do regresso, em comunhão com a imagem da Virgem a quem imploram protecção.

Prova do afecto a Azeitão é um poema que tem o nome da terra, constituído por quatro quadras, havendo a separar os versos a palavra “Azeitão”, quase como se de um eco se tratasse. “Terra santa ond’ eu nasci” é a primeira afirmação dedicada a Azeitão, nomeada “beleza sem igual” ou “brilhante refulgente”, havendo ainda espaço para a evocação do romance de Pedro e Inês e para afirmar o orgulho de, ali, ter visto o dia pela primeira vez, concluindo o poema com uma declaração de amor: “Só quem não te conhecer / Azeitão / não te ama, não t’ elogia.”

Não menos poética imagem é trazida pelo soneto “Lenda de Azeitão”, de Janeiro de 1942, em que o leitor contempla “a bela deusa Arrábida”, filha de Zeus, a mirar a luz do dia. Num momento de afago dos cabelos, algo acontece que a leva a gritar de aflição, “pois lhe caíra aos pés, tão linda, a Azeitão / - da sua cabeleira a jóia mais brilhante.” O recurso à mitologia para enaltecer a importância do local, usa-o também Sebastião da Gama para mostrar o Portinho da Arrábida, prenda que teria sido ofertada a Vénus, no seu aniversário, por seu pai, Jove, a conselho de Apolo. Mas o território da Arrábida, distinto do de Azeitão, é outro peculiar terreno do poeta no caminho da “Serra-Mãe”...

Vivendo na zona do Portinho, Sebastião da Gama exprimiu fortemente o seu apego a Azeitão, tomando como pretexto não só a beleza natural, mas também o facto de ali estar a sua raiz e de ali, como confessa no soneto escrito a propósito da escola primária, de Novembro de 1941, ter bebido “o leite do Saber”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1277, 2024-04-10, pg. 7.


OBS.: Os poemas referidos ao longo do texto são, na sua maioria, inéditos. Serão brevemente publicados na obra O Inquieto Verbo do Mar, título que reúne a obra poética de Sebastião da Gama, incluindo a publicada em livro, 70 poemas dispersos e 290 poemas inéditos (Assírio & Alvim / Porto Editora).

 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (4)

 


A motivação principal das colectâneas de rimas de Miguel Caleiro eram as Festas da Arrábida, também ocasião para que fosse editado um opúsculo com os seus versos, cuja temática principal era a ida ao Convento da Arrábida para essa celebração, havendo também cantigas, que diferiam de ano para ano, motivadas por razões autobiográficas ou por questões sociais - por exemplo, na edição de 1916 dos Versos em honra das antigas Festas d’ Arrábida, Miguel Caleiro escolheu para a linha autobiográfica duas cantigas dedicadas aos pais e duas cantigas que tomam o poetar como tema, particularmente uma em que esboça o seu auto-retrato; já a imagem da época, questão importante pelas implicações sociais, políticas e históricas, foi ocupada com duas cantigas sob o título “Despedida para a Guerra”, relatando o momento da separação familiar dos que eram recrutados para ir “auxiliar o francês”.Retomando a edição do início da década de 1920 que nos tem servido de base, vale a pena olhar para umas loas à Senhora da Arrábida, vinte e oito quadras organizadas em quatro partes - “Saída de Azeitão”, “Chegada ao Convento”, “A despedida da Serra” e “Chegada a Azeitão”. Nelas, o leitor acompanha, no momento da saída, a ansiedade dos romeiros pela partida para a festa, o trajecto da berlinda que acompanha a Senhora, a despedida que o povo faz da imagem, o sinal de partida dado pelo sino da igreja; já no Convento, assiste-se aos momentos de devoção perante a “Rainha do Céu”, à contemplação da grandiosidade do cenário natural, à reza a pedir a bênção e protecção para os romeiros; o momento da despedida é feito sob o signo da oração, pesando também a emoção “de tão triste apartamento”, pois era chegada a hora de regressar à vila; no último quadro, da chegada a Azeitão, a comoção envolve os peregrinos, no meio dos repiques sineiros, com aqueles que ficaram a manifestarem o contentamento, pois era “chegada a santa Imagem / cheia de graça e louvor”, com um momento intenso de oração no final.

A ideia das loas para este momento festivo manteve-se pelos tempos. E, se algumas destas quadras se repetiram nas edições de vários anos, em 1946 (tinha Miguel Caleiro falecido há 11 anos), uma inovação surgia ao serem publicadas as Loas a Nossa Senhora da Arrábida, texto conjunto de Miguel Caleiro e de Sebastião da Gama (que tinha 22 anos à época e apenas um livro publicado). Das 28 quadras que constituem esta composição, organizadas nos mesmos quatro quadros, há oito que constam nos Versos de Caleiro do início da década de 1920. Não há a certeza de que todas as outras sejam de Sebastião da Gama, ainda que, em algumas, se consiga perceber a sua marca nas imagens que recorrem à Natureza, não se desconhecendo também o jeito que o jovem poeta tinha para a construção de quadras de gosto popular.

Esta junção dos dois poetas azeitonenses na publicação das Loas (que foram republicadas em 1966 e em 1996) alimenta também a admiração que Sebastião da Gama tinha por Miguel Caleiro - em Março de 1942, tinha Caleiro falecido há sete anos e estava Sebastião prestes a fazer 18 anos, o novel poeta azeitonense compôs um soneto em honra do antecessor, com a nota “para a sua campa”, assim retratando a memória: “Aqui repousam cinzas, pó e nada: / despojo humilde de quem foi alguém / e agora, com certeza, no Além, / maneja a Lira, a Lira bem-fadada. // Não vistes ‘inda a terra descuidada / que a torga, o alecrim, o lírio vêm, / a violeta, o malmequer também / tornar a mais formosa e delicada? // Teu estro foi, ó vate, o campo inculto / aonde foi nascer e tomou vulto / jardim tão perfumado, tão mimoso! // Teu corpo aqui, Miguel! Mas lá nos céus / eu bem te vejo a recitar a Deus / teus versos - flor’s de tom o mais vistoso!”

Que bom gesto de memória seria o de se conseguir uma compilação dos versos que Miguel Caleiro compôs, tendo como abertura este soneto de Sebastião da Gama, que constrói a feliz ideia de transformar o céu num espaço em que os poetas recitam versos para Deus!...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1259, 2024-03-13, pg. 9.


quinta-feira, 7 de março de 2024

Os Versos de Miguel Caleiro (3)

 


Nos Versos de Miguel Caleiro, aparecidos cerca de 1920, passa também o sentimento da amizade, vivido numa festa feita em honra de Armando Barata, um seu amigo, sendo o poeta impressionado pela beleza do evento, tempo em que “nos passa a dor / entre as almas donairosas / que, fiéis e piedosas, / escutam a poesia” que lhes é oferecida pelo cantador. Os poemas são equiparados a “ramalhete de apreço”, constituído por dálias, verbenas e açucenas, imagem que serve também para elogiar a assistência - “são as flores que vejo / doçuras que amam poetas”. A cantiga (com uma quadra como mote e quatro décimas) conclui com a demonstração da alegria festiva e o agradecimento do poeta: “Ao ver tanta animação / nesta festa de amizade, / toda a alegria me invade / de raríssima confusão. / Perante a reunião / que escuta minhas glosas, / com palavras especiosas / são os mais gratos deveres, / elevando os vossos seres / como alfim mágicas rosas.”

Outra cantiga com o mesmo formato da anterior recorda uma assustadora tarde de inverno, em que é registado o ambiente sentido, oscilando entre planos gerais e planos de pormenor - a aflição dos camponeses que não podiam atravessar a ribeira para acudir à família, o tom assustador das trovoadas, os rebanhos assustados em fuga, as árvores partidas e arrancadas pelo vento, os telhados destruídos, o relampejar feroz, as águas a descerem pela montanha, a ponte e a azenha destruídas, a noite avassaladora, a morte do moleiro e do seu filho. A quadra que dá o mote anuncia bem a calamidade que se descreve: “Era uma noite de inverno; o céu parecia um inferno. / Estavam os astros em guerra. / A ribeira mal sustinha a grande cheia que vinha / pelas vertentes da serra”.

Duas cantigas assumem um pendor marcadamente autobiográfico, revelando alguns traços sobre o poeta destes Versos. A primeira, demonstrando a sua origem rural e modesta, o estatuto de poeta popular e de cantador que para si reclama e o reconhecimento do seu nível cultural, sujeita-se ao mote “Miguel Fernandes Caleiro, / um poeta camponês, / não pode cantar o fado / em correcto português”. A cantiga retrata o percurso do autor: nascido “numa aldeia de Azeitão”, em tempo de dificuldades sentidas por uma “humilde geração”, numa família sem posses financeiras para dar melhor formação ao filho. Na segunda décima, já o poeta valoriza o seu percurso, enaltecendo o trabalho, a honra e o autodidactismo - “Eu fui como uma pobre flor / pelo vento açoitada / e, herdeiro da enxada, / aprendi a cavador. / Nasci para trabalhador / no meio da honradez. / Em mim, não há altivez, / eu só canto irmãmente, / mas têm na vossa frente / um poeta camponês.” Prossegue a cantiga, manifestando a alegria por aquilo que faz, para terminar com uma evocação da figura da mãe e a afirmação do que entendia ser o poeta popular: “Minha mãe santo afecto / chorou ao ver-me crescer, / sem apenas aprender / as letras do alfabeto. / Assim, sou analfabeto, / mas não semeio a rudez. / E vós, povo que me vês, / queiram-me aqui desculpar, / porque eu não sei cantar / em correcto português.”

A segunda cantiga de marca autobiográfica começa por glorificar a poesia, associando-a à capacidade emotiva: “Os versos que ides ouvir / nesta singela canção / são flores que nascem d’alma, / que brotam do coração.” Assemelhando os poemas que compõe a um “raminho de flores”, confessa o tom pessoal ao considerá-los “rimas do meu sentir”, garantia que vai dando ao longo do poema, terminando com a assinatura que reafirma o seu estatuto e a sua simplicidade: “São canções de um camponês / que não sabe ler nem escrever, / por isso não podem ter / grande beleza talvez. / Foi o Caleiro que as fez / sem a metrificação. / P’ra lhe oferecer elas são / como desfolhadas rosas, / as minhas pobres glosas / que brotam do coração.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1254, 2024-03-06, pg. 10

 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (2)

 

 

Os Versos de Miguel Caleiro publicados por 1920, inserindo uma fotografia em que estão o seu autor e a afilhada Maria da Saúde em gesto de escrita do que está ouvindo, contêm onze poemas, maioritariamente influenciados por características locais (as Festas da Arrábida, a paisagem, circunstâncias de vizinhança), mas também pelo registo autobiográfico.

“Na Arrábida”, um poemeto com dezanove oitavas, esquema rimático constante e métrica variável, abre a série, quase configurando uma reportagem pessoal sobre a vivência da Festa da Arrábida - no primeiro dia, a chegada pela madrugada leva a curta estada no Convento e visitas à Lapa e ao Portinho, sendo o poeta acompanhado pelo canto do rouxinol até ao momento em que assiste à chegada dos pescadores, num olhar que bem representa uma tela do passado. O segundo dia é vivido no Convento, entre a alegria dos romeiros e os seus hábitos, particularmente no que respeita à devoção sentida, havendo também o compromisso pessoal do poeta - “trabalhar com amor do coração, / sempre pronto para ajudar meus companheiros”, manter-se como festeiro e recordar “com saudade os que morreram, / desta festa tão devotos promotores”. A parte que mais oitavas ocupa é a da partida e regresso a Azeitão, momento de ternura e emoção, pois a imagem da padroeira “só depois de passado um ano torna a vir, / esta serra montanhosa visitar”. O leitor assiste à narração da viagem a cavalo, à festa das bandeiras e estandartes, aos anjos no momento da despedida, num trajecto por Olivalinho, Calhariz, El Carmen, Parral, Pedreiras, Casais, Aldeia de Irmãos, Oleiros, S. Marcos, Baldrucas, até ao momento  da “linda entrada / que dá o círio nesta vila nossa amada”, tempo de alegria e de partilha, de festa, com repicar de sinos, arraial, foguetes, havendo ainda uma palavra para os mais cépticos na derradeira estrofe - “Para muitos já não há religião, / cada um tem o seu modo de pensar. / Uns querem que ela acabe e outros não, / é difícil tanta gente contentar... / Àqueles que ainda têm devoção / ninguém tem o direito de censurar, / é sempre livre a vontade de qualquer / e pensará da maneira que quiser.”

Três cantigas compostas por mote (quadra) e quatro décimas abordam ainda o momento da festa - uma, a propósito da partida para a serra, em que os sentimentos são uma mistura de alegria pela festa e pela participação e de tristeza ocasionada porque muitos “se estão lembrando / dos tristes horrores da guerra” (cantiga produzida durante a participação de Portugal na Grande Guerra, por certo); a segunda, a cantar o prazer de estar na Arrábida, entre rosmaninho, jasmim, medronheiros e chilreios, contemplando a vista sobre Azeitão e subindo ao Alto Formosinho; a terceira, incidindo sobre o Convento franciscano, motivo para evocar a lenda de Hildebrando e a construção da comunidade arrábida com Frei Martinho e Pedro de Alcântara.

A rivalidade entre duas aldeias, transferida para a argumentação dos respectivos santos patronos, está patente em duas cantigas que dialogam - uma, “dedicada ao Santo da minha aldeia que se zangou com o Santo da aldeia vizinha” (S. Sebastião); a outra, constituindo a resposta de S. Marcos aos remoques recebidos. O primeiro faz pública queixa logo no mote - “Eu sou o S. Sebastião / tão desprezado e sozinho, / o S. Marcos esse tem / tudo bem arranjadinho” e lembra as coisas desaparecidas da sua “velha morada” (louvando um tal “José da Tia” por ainda se esforçar na guarda) e o mau estado da calçada de acesso, lamentando ainda o abandono a que foi sujeito pelos antigos devotos e festeiros. A resposta de S. Marcos reflecte as conversas dos favores políticos locais - a partir da quadra “Ó mártir S. Sebastião, / não estejas assim zangado. / Deixa estar que o teu palácio / também vai ser arranjado”, o santo explica que as obras da sua capela tiveram de ocorrer porque o telhado estava a cair e anuncia que o seu vizinho também virá a ter obras (um chafariz e uma avenida), ainda que apresente uma justificação para o progresso na sua zona: “Dizes que isto é um jardim? / E admiras-te se for? / Tu não vês que o vereador / mora aqui ao pé de mim?”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1549, 2024-02-28, pg. 6


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (1)



No primeiro número do jornal O Azeitonense, de 3 de Agosto de 1919, a terceira página abre com o título “Poetas humildes”, informando, logo no primeiro parágrafo: “os versos que abaixo reproduzimos, sendo, como são, de uma alma inculta, revelam um temperamento poético, de que muito haveria a esperar se fosse cultivado.” Depois, é explicada a razão para nada ter sido alterado no texto poético: não haveria, assim, adulteração do “temperamento afectivo e bom”.

Formalmente, o texto é uma cantiga, em que uma quadra (mote) anuncia o tema a desenvolver: “Eu gosto imenso de ouvir / pela fresca madrugada / o clarim do rouxinol / dar o toque de alvorada!” Seguem quatro décimas (glosas), retomando cada uma delas no final um verso do mote, desenvolvendo o tema do prazer da vida campestre - passeios no prado, canto da pastora e sons de flauta do pastor, trabalho agrícola das ceifeiras, cantar do rouxinol, moças na escamisada ou a transportar água da fonte.

O autor de tal poema é Miguel Fernandes Caleiro (1876-1935), de Aldeia de Irmãos, figura que o padre Manuel Frango de Sousa (1919-2000) divulgou na sua folha paroquial Azeitão - A Nossa Terra, em Fevereiro de 1989, dele dizendo ser “uma figura típica”, em quem “a espontaneidade era característica” e considerando a casa que ele animou e onde se cantava fado “um monumento de Azeitão”. Na última página do referido número de “O Azeitonense”, inteiramente dedicada a anúncios, consta o “Retiro Vila Jacinta de Miguel Fernandes Caleiro”, situado “nos Brejos, Casal de Bolinhos, Estrada de Coina”, espaço de “mercearia e belo retiro com bons petiscos e deliciosos vinhos”, condições que favoreceram os encontros de fado.

A sobrevivência dos textos de Miguel Caleiro deve-se, em grande parte, à sua sobrinha Maria da Saúde (1903-1995), que os transcrevia. Ligado às Festas da Arrábida, o poeta viu, no início da década de 1920, algumas das suas rimas publicadas sob o título Versos em honra das Antigas Festas d’Arrábida que pomposamente costumam realizar-se na pitoresca Vila de Azeitão, opúsculo de 16 páginas impresso na Tipografia Simões (com “oficinas movidas a força motriz”, em Setúbal), apresentado em “duas palavras”: “os versos que vão ler-se são simples e ingénuos como a sua alma de trabalhador do campo. Miguel Caleiro não sabe ler. As inúmeras canções populares de que é autor brotam-lhe espontâneas e é sua afilhada Maria da Saúde, uma engraçada pequena de 17 anos, que Caleiro estremece como se fora sua filha”, quem as escreve. É curioso que a nota sublinhe uma ideia que já tinha sido aflorada no recorte de O Azeitonense: “Dos versos de Caleiro diria de certo o nosso genial Guerra Junqueiro, se os lesse, que são como certas rosas que florescem nos matagais incultos.” Mas esta nota torna-se também interessante por recuperar o empenho que Guerra Junqueiro (1850-1923) pôs na divulgação da poesia popular, tal como fez no caso do poeta popular setubalense António Maria Eusébio (1819-1911), conhecido como “Calafate”, ao prefaciar a recolha dos seus Versos feita por Henrique das Neves em 1916, dizendo: “Não sabendo ler nem escrever, és um grande poeta (...). A tua bondade, meu velho, exala-se das tuas cantigas sem arte, como um aroma delicioso de um matagal inculto, que nasceu entre pedras (...) Ganhaste com o suor da fronte o pão de cada dia.” As palavras de Junqueiro sobre o Calafate poderiam ser aplicadas também a Caleiro, por certo...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1245, 2024-02-22, pg. 10.


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

70 anos do falecimento de Sebastião da Gama: A memória do poeta começou em Fevereiro de 1952



Ao ar frio daquele Fevereiro de 1952 veio juntar-se uma outra frialdade, a da vida que se extinguia, a da saudade que o desaparecimento precoce de Sebastião da Gama deixava. Estava-se no dia 8 de Fevereiro e o jovem Nicolau, então com 18 anos, meteu pés ao caminho, calcorreando a distância que separava Palmela (onde vivia) de Azeitão, percurso que fez sozinho, correndo atrás da necessidade que tinha de se despedir do seu jovem mestre.

Da cabeça não lhe saíam as lições ouvidas nas aulas de Português na Escola Comercial e Industrial João Vaz, em Setúbal, proferidas por um professor que era também seu amigo, lhe abriu horizontes e o levou a ganhar vontade de saber e de estudar, Sebastião da Gama de seu nome. O mínimo que lhe devia era esta despedida para sempre. Assistiu à cerimónia fúnebre e o professor Medeiros, director da Escola, ao saber que o jovem viera a pé por não ter dinheiro para o transporte, no final, deu-lhe as moedas necessárias para que o regresso a Palmela fosse em autocarro.

Esta memória nunca abandonou Nicolau da Claudina (1933-2020) porque também a influência que Sebastião da Gama nele teve foi determinante para a sua vida. O jovem Nicolau fez parte do vasto grupo de admiradores e de saudosos que choraram em Azeitão naquele dia, entre os naturais da vila, os familiares, os amigos, pessoas dali, pessoas vindas de fora, todas num gesto solidário.

Sebastião da Gama, com 27 anos, falecera no dia anterior, pela manhã, no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, exactamente o mesmo estabelecimento hospitalar em que, dezassete anos antes, se finara um outro poeta que o azeitonense muito admirara, Fernando Pessoa. A meningite minara-o e foi responsável por sucessivas falências até ao encontro com a morte. Nesse fatídico 7 de Fevereiro, David Mourão-Ferreira (1927-1996), amigo grande de Sebastião, estava em Mafra, no quartel onde cumpria o serviço militar e, no final do dia, escrevia no seu diário: “Meia-noite, caserna: Acabam de me entregar um telegrama de meu Pai, com a seguinte notícia: a morte do Sebastião da Gama. Outro! Outro que morre. Depois do Manuel de Almeida Júnior, do Maia de Jesus, do José-Aurélio, e do Manuel Belchior, e da Maria Henriqueta - o Sebastião!” Parece apenas uma enumeração, mas é muito mais do que isso: é a amizade que só pode ser continuada pela memória.

David Mourão-Ferreira foi também uma das presenças na despedida em Azeitão no dia 8 de Fevereiro, pelas 17h00. Provavelmente, ter-se-á cruzado com Nicolau, com a Matilde Rosa Araújo (1921-2010), com os que vieram de Estremoz (onde Sebastião leccionara) e com tantos outros. No dia seguinte, 9, em Lisboa, o diário de David receberia este espantoso desabafo: “Lisboa, 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.”

A partir dali, o tempo não foi longo para que as homenagens surgissem. Ainda em 1952, a revista literária Sísifo, de Coimbra, no seu quarto número, abria com a morte do poeta - “Quando este 4º fascículo já estava em andamento, integrando no seu sumário o poema inédito ‘Anunciação’, recebemos, pela notícia singela de um jornal da tarde, o golpe duro da morte de um querido amigo - Sebastião da Gama.” O segundo número da revista Árvore era dedicado “à memória de Sebastião da Gama, ao poeta e ao amigo que perdemos”, e publicava o seu poema inédito ‘Ressurreição’ e a homenagem escrita de Luiz Amaro de Oliveira, António Luís Moita, Albano Martins, José Terra e António Ramos Rosa, além de um retrato de Sebastião da autoria de Bonifácio Lázaro. O número 16 da revista brasileira Sul, publicada em Florianópolis, continha o poema “Crepuscular”, uma carta de Sebastião sobre um livro de Salim Miguel (1924-2016), datada de 30 de Novembro anterior, e a notícia da morte do poeta.

O ano seguinte, 1953, teve, em 8 de Fevereiro, o descerramento da primeira lápide em homenagem ao autor de “Serra Mãe”: foi em Azeitão, na Rua José Augusto Coelho, na casa onde viveu até aos 14 anos, uma cerimónia a que acorreram muitos amigos, tendo depois havido uma conferência evocativa pelo testemunho de David Mourão-Ferreira. Em pedra, ali ficaram gravados versos: “Faltava-lhe a morte para ser completo. / A taça estava cheia / Faltava-lhe a pétala da rosa / Para transbordar”.  Em 15 de Junho, em Estremoz, foi o descerramento da segunda lápide evocativa, na casa onde viveu, no Largo do Espírito Santo, cerimónia com larga participação, em que interveio um dos seus professores e amigo, Hernâni Cidade. A memória de Sebastião da Gama dava-lhe assim a possibilidade que a vida lhe não dera: a da sua presença pela palavra e pelo testemunho, que tem vivido ao longo destes 70 anos.

* J.R.R. O Setubalense: nº 781, 2022-02-07, p. 7.

Foto: Sebastião da Gama, em Maio de 1951 (Arquivo de Joana Luísa e Sebastião da Gama, Centro de Documentação da ACSG)


sábado, 10 de abril de 2021

Sebastião da Gama: a música (das palavras) e a memória



Hoje, Sebastião da Gama faz 97 anos. Digo “faz” intencionalmente. É que temos de saber viver com quem nos pode sempre acompanhar, seja pelas suas ideias, pelos seus sentires, pelas suas visões da vida e do mundo. E Sebastião da Gama, apesar de ter partido com 27 anos em 1952, teve uma leitura do universo que se mantém inovadora e cheia de lições.

Na sua poesia, foi sensível à música, aparecesse ela como “canto”, “hino”, “som” ou “música” mesmo. São vários os poemas que publicou em que a arte musical se manifesta – recorde-se, por ordem de publicação, um poema de cada um dos três livros que o poeta editou:“Vida” (Hoje, cá dentro, houve festa... / E, se houve festa e veludos, / e música azul, e tudo / quanto digo, / foi somente porque a Graça / desceu hoje a visitar-me.”), em Serra-Mãe (1945); “As Fontes” ("De todas as aldeias / vieram, cantando, as moças / encher as bilhas. // E eu fui também cantando ao som das águas… / Cantava as minhas mãos, cantava as fontes.”), em Cabo da boa esperança (1947);“Manhã no Sado” (Ali, à beira-rio, / de olhos só para o rio, de ouvidos surdos / ao que não é a música das águas, / um sossego alegórico persiste.”), em Campo aberto (1951).

No próprio Diário, ao refletir sobre a poesia e sobre a palavra, várias vezes o professor Sebastião da Gama se referiu à música.Vale a pena determo-nos sobre estes dois curtos excertos: “ser Poeta, tinha eu pensado dizer-lhes, é estar encantado ou desencantado e contá-lo com palavras que pareçam música” (9 de Março de 1949) e “A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género, o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática.” (16 de Março de 1949).

Mas Sebastião da Gama tinha também a preocupação pedagógica de passar esta mensagem musical para o leitor, por mais simples que ele fosse, explicando-lhe a relação da arte musical com a palavra e com o som. E foi assim que, numa crónica publicada no Jornal do Barreiro, em 24 de Agosto de 1950, intitulada “Sobre a Poesia”, se preocupou em simplificar esse casamento entre a poesia e o canto: “No povo inculto e na criança é que a verdade acerca da Poesia está guardada; é que o conceito de Poesia se mantém ingénuo. Pois não começou a Poesia por ser o puro canto?” Esta abordagem de Sebastião da Gama torna-se radical, subscrevendo o que um amigo seu dissera – os poemas deviam ser gravados em discos em vez de ser em papel… porque os versos são “para serem ouvidos, não para serem lidos”. Esta atitude “revolucionária” não é isenta de riscos, como Sebastião da Gama o nota – é que, logo a seguir, distingue os versos ditos pelo poeta dos versos ditos por outrem, porque, acima de tudo, só os poetas saberiam dizer os seus poemas “em intimidade”, isto é, “em plena comunhão com a palavra, com a perfeita compreensão dos mínimos pormenores”.

A música, vinda pela palavra, serviu-lhe para cantar a Serra, a Vida, o Amor, a Paz. Sempre numa dimensão muito próxima do real - a paisagem e os momentos constituíram frequentemente pretextos para os seus poemas -, mas com a capacidade de se deixar inebriar pela espiritualidade, numa relação com tudo que nos comove e nos convida à partilha. Sabia Sebastião da Gama que a poesia brotava da Natureza e das Pessoas e de tudo o que faz as suas circunstâncias - a questão era descobri-la, ouvi-la e dela fazer eco.

Muitas razões poderíamos invocar para justificar a importância deste poeta. Determinantes são o contributo que deu à cultura portuguesa da sua geração, a escola que formou, o legado que deixou. É um privilégio que ele ainda se mantenha entre nós através da sua palavra e do seu relato.

Em Azeitão, hoje, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em sua honra e de Joana Luísa, a mulher que sempre lutou pela divulgação da obra do poeta e que anteviu a importância do legado do marido, inaugurou a Casa-Memória Joana Luísa e Sebastião da Gama. Uma forma de reconhecer que os merecemos!

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Maria Cecília Correia: a felicidade pela escrita



Na revista Mulher - Modas e Bordados de 30 de Julho de 1975, Maria Cecília Correia (1919-1993) justificava “Porque escrevo para crianças”. A crónica relacionava-se com a escrita destinada ao público infanto-juvenil, por que a autora era mais conhecida, sobretudo a partir de 1953, ano do seu primeiro livro, Histórias da minha rua, ilustrado por Maria Keil.

Atribuindo uma parte da responsabilidade de ser escritora a “um dos poucos sobreviventes do Orpheu”, que se sabe ter sido o açoriano Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), confessa, quase no início do texto: “Escrever foi, para mim, sempre um prazer. Escrever-Comunicar. Falar para.” Se podemos ver este deleite nas pequenas narrativas que corporizam o livro de 1953 (por onde passam as plantas, os animais, as pessoas e a simplicidade da vida), não é menos verdade que esse “prazer” ressalta também em Pretérito Presente, publicado em 1976 (reeditado em 2019 pelo Grupo de Estudos Maria Cecília Correia, aquando da passagem do centenário de nascimento), que não tem como destinatário o público infantil.

De textos curtos, nele aparecem fragmentos de diário, retalhos de memórias, cartas, poemas, pequenas narrativas da vida, num enredo que entrelaça vivências, espaços, família e a própria narradora. Pretérito Presente é, aliás, um título que nos sugere essa mistura de momentos, encontrando-se o passado e o presente através da escrita. As histórias fazem-se a partir de coisas simples (um botão esquecido pode ser um pretexto), de passeios a pé, de viagens, de recordações familiares, de cenas presenciadas, de imaginação. O prazer da escrita surge em cada momento, sublinhado na notação dos sentidos - pelo tacto inebriante (“o vento ali era um companheiro agradável e os cabelos entraram logo no jogo, bailando com os empurrões”), pelos aromas recebidos (“este cheiro das ervas da Arrábida penetra-me como a saudade dos que comigo andaram e já aqui se não encontram”), pelo sabor apetecido (“espremo laranjas no velho cone de vidro, rodando, rodando, apertando as mãos, chupando o que fica”), pela musicalidade da natureza (“ouço o riso dos regatos”), pela emergência da visão (“como eu tenho fome de ver camélias na árvore!”).

A Arrábida marca presença na obra (Maria Cecília Correia adquiriu quinta em Azeitão em 1964, aí construindo casa de férias), ancoradouro feliz, tela de plantas variegadas (“paredes cobertas de folhas verdes, murta, alecrim, folhado”), ponto de partida para outras incursões - praia de Galapos, mercado de Setúbal, feira de Pinhal Novo, festa de Palmela, por exemplo - e charneira com o mundo dos outros - como foi o momento de fascínio quando ouviu o coveiro de Azeitão dizer, em frente da campa de Sebastião da Gama, “quero levar para minha casa uma poda da roseira do nosso Sebastiãozinho”.

A escrita de Maria Cecília Correia rejeita o esquecimento e valoriza uma vida com a Natureza. Só assim se compreende o desabafo que faz à sua amiga Maria Eulália de Macedo: “Pois o que é o envelhecer? Pensar que um dia tudo me pode ser indiferente! Que os cheiros não serão uma parte do amor, que o Vento me será aborrecido, que o Sol será sinónimo de espirros! Que coisa mais triste! Enquanto o meu corpo e qualquer parte da Terra formos um, a coisa não está mal.”

Um livro em que correm a sensibilidade e a beleza das coisas simples, numa escrita que é ponto de encontro com a felicidade.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 491, 2020-10-22, pg. 2.


quarta-feira, 10 de abril de 2019

Sebastião da Gama: No final de uma manhã de Abril... há 95 anos



Segundo o registo oficial, eram 12h30 de 10 de Abril de 1924 quando, numa casa térrea situada no número 88 da Rua José Augusto Coelho, em Azeitão, nasceu Sebastião da Gama. Era o terceiro filho de Sebastião Leal da Gama Júnior (1893-1965) e de Ana Cardoso Leal da Gama (1901-1981), tendo como avós, pelo lado paterno, Sebastião Leal da Gama (de Castanheira de Pera) e Vitória Quaresma (do Montijo), e, por via materna, Artur Cardoso e Leonor Maria Marcelino (ambos de S. Simão).
Os pais do jovem Sebastião já levavam quase quatro anos de família, desde que, em 6 de Maio de 1920, se tinham casado. Ao primeiro filho dessa união foi dado o nome de Artur (nascido em 20 de Fevereiro de 1921, viria a falecer um ano depois, em 25 de Fevereiro); o segundo filho receberia o nome de Sérgio (nasceu duas semanas antes de o irmão falecer, em 10 de Fevereiro de 1922, e seria o de maior longevidade, tendo vivido até 18 de Janeiro de 2005).
Sebastião da Gama pouco tempo viveria na casa onde nasceu, pois, em Outubro de 1924, a família mudou de residência para o prédio com o número 140 na mesma rua José Augusto Coelho, em Vila Nogueira de Azeitão.
No mês seguinte, Novembro, no dia 27, a criança era baptizada na Igreja Paroquial de São Lourenço de Azeitão, em cerimónia que ficou registada pelo padre Manuel Fernandes Barros, sendo padrinhos Gabriel Domingos do Carmo e Josefina Pascoal Cardoso.
Quase nada se sabe da infância de Sebastião da Gama, que decorreu em Azeitão. Relatava a mãe que, muito novo, quando as palavras ainda não eram bem pronunciadas, foi um dia em passeio à Arrábida e, ao chegar a casa, declamou a sua primeira quadra: “Fui passear / à Serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia.” Certo é que estavam ali lançadas as primeiras ideias que associariam o seu livro inaugural, Serra-Mãe, publicado em 1945, à Arrábida e à maternidade.
As primeiras letras foram aprendidas na Escola Primária de Aldeia Rica (em Azeitão), concluindo as provas do exame do 2º Grau do Ensino Primário Elementar em Setúbal em Julho de 1934. Foi ainda neste ano que Sebastião escreveu aquele que hoje se conhece como o seu mais antigo poema, um conjunto de quadras sobre os reis que governaram Portugal.
O dia do nascimento, deixou-o Sebastião da Gama registado em verso, no texto intitulado “Pequeno Poema” (escrito em 7 de Maio de 1945, um dia depois de os pais terem passado o 25º aniversário de casamento): “Quando eu nasci, / ficou tudo como estava. // Nem homens cortaram veias, / nem o Sol escureceu, / nem houve Estrelas a mais... / Somente, / esquecida das dores, / a minha Mãe sorriu e agradeceu. // Quando eu nasci, não houve nada de novo / senão eu. // As nuvens não se espantaram, / não enlouqueceu ninguém... // Pra que o dia fosse enorme, / bastava / toda a ternura que olhava / nos olhos de minha Mãe...”
Ainda em 1945, este poema teve duas publicações: no livro Serra-Mãe e na revista Aqui e Além. Depois, integrou várias antologias que tomaram a figura da mãe como tema (de que são exemplo as organizadas por Albano Martins, por Paula Mateus ou por José da Cruz Santos); foi ainda interpretado musicalmente pelo grupo marinhense “Os Duques de Quibir” (1989), com arranjos de Quim Cruz e Vadinho; finalmente, foi inserido em variados manuais da disciplina de Português nos diversos níveis de ensino, percurso que foi inaugurado por Virgílio Couto, professor metodólogo que orientou o estágio de Sebastião da Gama na Escola Veiga Beirão, em Lisboa - em 1948, com o título “Quando eu nasci”, o poema foi inserido no manual Leituras II, destinado ao ensino de Português nos cursos técnicos.
Este poema de Sebastião da Gama sobre o dia do nascimento não poderá ser lido sem lembrarmos o soneto camoniano “O dia em que eu nasci”. Contudo, no caso de Sebastião, a evocação traz marcas de felicidade, tónica que acabaria por dominar toda a sua poesia.
A memória de 10 de Abril, o tal dia em que “não houve nada de novo / senão eu” (segundo o poeta), foi dilatada no tempo e associada a valores que Sebastião radicou, tendo também para isso contribuído a decisão tomada pela Câmara Municipal de Setúbal, em 28 de Fevereiro de 2007, de instituir esse dia como Dia Municipal da Arrábida.
Na foto: registo de baptismo de Sebastião da Gama

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Joaquim Rasteiro e as histórias da Península da Arrábida (Azeitão, Palmela, Sesimbra)



A revista O Arqueólogo Português começou a sua publicação em 1895 sob a direcção de José Leite de Vasconcelos (1858-1941), tendo-se dividido até hoje em cinco séries, a primeira das quais, em 30 volumes, a mais longa, publicada até 1938. A revista, uma referência indiscutível na área da arqueologia, surgiu no âmbito do Museu Nacional de Arqueologia, criado dois anos antes por Leite de Vasconcelos.
A temática sadina passou pelas páginas da revista desde o seu primeiro número, que teve também um colaborador setubalense, Manuel Maria Portela (1833-1906). No segundo número, de 1896, os temas das terras do Sado continuaram a ser abordados e outro setubalense ali assinou um texto, o arqueólogo António Inácio Marques da Costa (1857-1933). Foi ainda neste segundo número que Leite de Vasconcelos publicou a notícia “Questionários Arqueológicos”, dando publicidade a trabalho encetado a nível nacional dois anos antes: “A Comissão dos Monumentos Nacionais fez imprimir, em 1894, e distribuir por diversas pessoas, os seguintes questionários, com o fim de recolher elementos para o estudo da arqueologia portuguesa.” Seguia-se o referido questionário, dividido em assuntos gerais e em informações de carácter militar.
No número seguinte de O Arqueólogo Português, o terceiro, de 1897, surgia a primeira resposta a este questionário, devida a Joaquim Rasteiro (1834-1898), ocupando as primeiras 48 páginas da publicação sob o título “Notícias Arqueológicas da Península da Arrábida”, com a nota de rodapé que esclarecia ter sido o artigo escrito no período de 1893-1894. Ao longo do texto, outras notas vão aparecendo, devidas a José Leite de Vasconcelos, umas vezes contextualizando algumas informações, outras vezes estabelecendo relações com outros estudos.
Joaquim Rasteiro, azeitonense, autodidacta, investigador, político e proprietário, foi autor de diversas publicações sobre história local da sua região, de entre as quais se destaca Palácio e Quinta da Bacalhoa - Inícios da Renascença, editada em 1895 (que mereceu edição fac-similada em 2003). As “Notícias Arqueológicas da Península da Arrábida”, que redigiu, seguem o plano do inquérito da Comissão dos Monumentos Nacionais e abrangem os termos de Azeitão, Palmela e Sesimbra.
Recentemente, Bernardo Costa Ramos, azeitonense e divulgador da história da sua terra, promoveu a edição deste texto de Joaquim Rasteiro (Azeitão: A Páginas Tantas, 2018), mantendo a ortografia da época e assim justificando o trabalho apresentado: “por um lado, proporcionar a todos aqueles que se interessam pela nossa história de disporem em formato livro do texto original, tornando-o mais legível e de uma partilha mais célere; por outro lado, prestar homenagem aos grandes homens azeitonenses que contribuíram para fixar essa mesma história”. O livro contém ainda uma nota biográfica de Joaquim Rasteiro elaborada pelo filho, que mantinha o nome do pai, publicada no semanário dominical O Azeitonense, em 7 de Setembro de 1919. A iniciativa da edição de 2018 foi indiscutivelmente louvável, embora devesse ter tido maior divulgação e mais substancial tiragem.
A intenção de Joaquim Rasteiro não se limitou a constituir uma resposta ao inquérito da Comissão; a esse apelo, acrescentou o seu propósito de “segurar o que tende a cair no olvido, juntar o que há disperso, fazer que se saiba o muito que se cala”, vontade tanto mais acentuada quanto as duas instituições que mais perpetuavam a história e as artes - as “famílias religiosas” e a “instituição dos morgados” - estavam extintas e, assim, urgia “segurar por novos meios quanto tende[sse] a esvair-se”.
As descrições que Rasteiro apresenta no seu texto decorrem da sua observação, do seu contacto com os sítios ou com as peças que descreve, não especulando, mas chamando a atenção para as condições de sobrevivência dos testemunhos artísticos - por exemplo, quando se refere ao Palácio da Bacalhoa, considera ser “um monumento a que bem caberia a guarda do Estado” em virtude da “forma e disposição das suas construções, pelos seus azulejos e medalhões esmaltados, pela significação artística do conjunto”. O conjunto da sua descrição é valorizado pelas informações de cunho histórico (que na época eram conhecidas) associadas a cada um dos itens, estabelecendo a diferença entre o que é comprovável em termos de conhecimento e o que diz respeito a tradições ou crenças construídas - por exemplo, ao mencionar o paço dos Duques de Aveiro, diz que “modernamente inventou-se que dos reclusos [jesuítas ali custodiados]31 por 73 se finaram de tanto penar nas cadeias de Azeitão”, afirmação que imediatamente contesta: “É falso. Nem um só aqui morreu. Os livros do registo paroquial não acusam um óbito sequer de jesuíta.”
Pelo escrito de Rasteiro passam as antas (existência suposta na zona de Sesimbra), as cavernas ou grutas (lapas do Médico, de Santa Margarida e da Greta), as grutas artificiais pré-históricas (Quinta do Anjo), as pedras de raio, os restos de povoação (vestígios romanos na antiga freguesia da Ajuda), as moedas e outros objectos romanos, os objectos e moedas árabes, as tradições locais (ermida de Santa Maria da Vitória), as designações locativas (Azeitão, Coina-a-Velha, Vila Nogueira de Azeitão, Vila Fresca de Aseitão, Portela, Casal do Bispo), as fortificações ou edifícios atribuídos aos mouros na voz do povo (castelo dos Mouros, covas da Moura, castelo de Coina), os monumentos-palácios (Bacalhoa, Duques de Aveiro, Calhariz), as igrejas (de S. Lourenço e de S. Simão), as ermidas (do Bom Jesus, dos Remédios), os túmulos (na igreja de S. Tiago, em Palmela, e no mosteiro da Piedade, em Azeitão), os cruzeiros (das Necessidades), os brasões (Bacalhoa, capela das Necessidades, quinta do César, quinta Nova e quinta Velha, quinta das Torres, entre outras), as imagens de pedra, as imagens de barro, as pinturas em tela, as custódias, outros objectos de culto (alfaias diversas de arte sacra), as tapeçarias (em longo inventário), as inscrições (em enumeração pormenorizada), as antiguidades a que não pode marcar-se origem conhecida (lápides do chafariz de Aldeia Rica e da quinta do Visconde de Montalvo), os montes fortificados, os castelos de Sesimbra e de Palmela, as torres, os factos históricos das fortalezas (de Coina, Sesimbra e Palmela) e as fortalezas prisões de Estado (Palmela, Outão, paço dos Duques de Aveiro).
A leitura deste registo devido a Joaquim Rasteiro torna-se interessante porque o texto abdica de considerações laterais e vale na sua simplicidade, assertividade e objectividade; permite ao leitor uma viagem a um tempo e a um espaço de reconstrução da identidade; afirma uma riqueza patrimonial e histórica da região da península arrábida; é um elemento-base incontornável a ser considerado na bibliografia local.