Um livro que acabei de ler hoje e de que gostei: O silêncio dos livros, de George Steiner, numa edição (Lisboa: Gradiva, 2007) que acrescenta um texto, também ensaístico, de Michel Crépu, referente à leitura e com o freudiano título de Esse vício ainda impune. Num tempo em que se volta a falar da(s) liberdade(s) e do direito que a ela(s) temos, é pertinente dizer também sobre a liberdade dos livros. E registo algumas notas.
1. O poder do texto escrito é imenso, entrando no domínio do normativo. Por essa razão, não chegam as intenções anunciadas por um governante; é preciso que elas sejam plasmadas na escrita para fazerem lei. Isto conduz-nos a duas evidências: o poder de quem é letrado e a possibilidade de um texto ser refutado ou questionado apenas com outro texto.
2. “A escrita debilita o poder da memória”, porque “aquilo que fica escrito e que, portanto, pode ser armazenado, já não precisa de ser confiado à memória.” As histórias transmitidas oralmente procedem à actualização da memória, hoje tão maltratada, de resto. A questão da memória é mesmo preocupante e vê-se o seu menosprezo um pouco por todo o lado, como, por exemplo, nesta história: há tempos, numa turma em que havia um aluno originário de um país do leste europeu, um colega interpelou-o para saber a razão de ele ser muito bom aluno em Matemática, o que melhores resultados obtinha na turma, apesar da dificuldade linguística. A resposta foi lapidar: no seu país de origem, as calculadoras só são permitidas em níveis de estudo mais avançados; para ele, tinha sido novidade chegar a Portugal e ver a calculadora a ser utilizada logo desde os níveis mais elementares… Saber a tabuada? Oh, mas isso vê-se na calculadora, no telemóvel ou no relógio… aprende-se no quotidiano escolar.
3. A censura, ainda que travestindo-se de variadas formas, tem acompanhado os tempos e a História, “é tão velha e omnipresente como a escrita”. Bastará, nos tempos de hoje, pensar-se no que significa o “politicamente correcto”… uma metáfora da mesma censura, curiosamente um dos mecanismos que o acto censório incita, na medida em que a palavra se recria e o discurso se inventa para dizer o proibido.
4. A leitura pressupõe bibliotecas e é amiga do silêncio. O frenesim crescente da humanidade tem vindo a destruir estas duas condições, sobretudo a segunda, e, por vezes, as bibliotecas viram centros de convívio, lugares de ruído e de tudo, menos de amizade aos livros e à leitura.
5. A leitura pode desumanizar. Basta que o leitor atinja o grau do cúmulo enquanto leitor e passe a “acreditar” na ficção, a revoltar-se com a “eternidade” das personagens; a sua relação com o freudiano “princípio da realidade” irá por água abaixo. E questiona Steiner, depois de invocar Montaigne, Yeats e Wagner: “Enquanto professor, alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que torna possível uma cultura a tal ponto elevada?”
6. Como será a leitura do/no futuro? “É possível que o tipo de leitura (…) clássica venha a ser de novo uma espécie de paixão particular, ensinada em casas de leitura (…) ou como a leitura que era praticada nas escolas monásticas ou nos refeitórios conventuais da Idade Média.”
1. O poder do texto escrito é imenso, entrando no domínio do normativo. Por essa razão, não chegam as intenções anunciadas por um governante; é preciso que elas sejam plasmadas na escrita para fazerem lei. Isto conduz-nos a duas evidências: o poder de quem é letrado e a possibilidade de um texto ser refutado ou questionado apenas com outro texto.
2. “A escrita debilita o poder da memória”, porque “aquilo que fica escrito e que, portanto, pode ser armazenado, já não precisa de ser confiado à memória.” As histórias transmitidas oralmente procedem à actualização da memória, hoje tão maltratada, de resto. A questão da memória é mesmo preocupante e vê-se o seu menosprezo um pouco por todo o lado, como, por exemplo, nesta história: há tempos, numa turma em que havia um aluno originário de um país do leste europeu, um colega interpelou-o para saber a razão de ele ser muito bom aluno em Matemática, o que melhores resultados obtinha na turma, apesar da dificuldade linguística. A resposta foi lapidar: no seu país de origem, as calculadoras só são permitidas em níveis de estudo mais avançados; para ele, tinha sido novidade chegar a Portugal e ver a calculadora a ser utilizada logo desde os níveis mais elementares… Saber a tabuada? Oh, mas isso vê-se na calculadora, no telemóvel ou no relógio… aprende-se no quotidiano escolar.
3. A censura, ainda que travestindo-se de variadas formas, tem acompanhado os tempos e a História, “é tão velha e omnipresente como a escrita”. Bastará, nos tempos de hoje, pensar-se no que significa o “politicamente correcto”… uma metáfora da mesma censura, curiosamente um dos mecanismos que o acto censório incita, na medida em que a palavra se recria e o discurso se inventa para dizer o proibido.
4. A leitura pressupõe bibliotecas e é amiga do silêncio. O frenesim crescente da humanidade tem vindo a destruir estas duas condições, sobretudo a segunda, e, por vezes, as bibliotecas viram centros de convívio, lugares de ruído e de tudo, menos de amizade aos livros e à leitura.
5. A leitura pode desumanizar. Basta que o leitor atinja o grau do cúmulo enquanto leitor e passe a “acreditar” na ficção, a revoltar-se com a “eternidade” das personagens; a sua relação com o freudiano “princípio da realidade” irá por água abaixo. E questiona Steiner, depois de invocar Montaigne, Yeats e Wagner: “Enquanto professor, alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que torna possível uma cultura a tal ponto elevada?”
6. Como será a leitura do/no futuro? “É possível que o tipo de leitura (…) clássica venha a ser de novo uma espécie de paixão particular, ensinada em casas de leitura (…) ou como a leitura que era praticada nas escolas monásticas ou nos refeitórios conventuais da Idade Média.”
7. Michel Crépu, em Esse vício ainda impune, reunido no mesmo livro, “lê” questões que Steiner deixou. Insiste na falta de paciência e de silêncio que nos vai caracterizando e questiona-se quanto ao efeito desta realidade na leitura tal como hoje a concebemos. Em surdina (ou talvez não), vai surgindo “esta guerra aos desacatos do vício ainda impune, em nome do desenvolvimento e da rentabilidade tanto psicológica como comercial, (...) conduzida por um exército de patetas radiantes de estupidez e de uma ambição feroz”. Todos reconhecemos essa classe estúpida e betinha, cheia de falta de cultura e até de sentido. No final, fica, todavia, a esperança de nos cruzarmos com alguém que também se sinta incendiado “por uma palavra nascida nas profundezas de uma biblioteca”.
2 comentários:
Interessante, esta obra. Lembrei-me, a propósito, que ainda ontem revisitei Henrique Barreto Nunes, responsável pelo arquivo da Biblioteca de Braga, com quem troquei algumas memórias e alguns projectos. Sabia que Amadeu Baptista já esteve, há uns anos, numa tertúlia organizada por essa biblioteca?
Pois Henrique, cabelo um pouco no ar, sempre embrenhado em livros e na sua conservação, costuma dizer que a única coisa que lamenta é não poder ler todos os livros que lhe passam pelas mãos.
O espaço do Henrique é uma sala de leitura para o futuro!
Interessante esta obra.
O comentário acerca da necessidade, ou não da memória, dada a possibilidade de revisitar o texto escrito e o exemplo acerca da utilização de calculadora em níveis baixos do ensino fazem-nos pensar em algumas práticas actuais....Tema interessante numa altura em que se discute o programa de Matemática para o ensino básico.
Parabêns por este espaço!
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