Ontem, escrevi sobre uma exposição de moda de que gostei. Hoje, apresento uma leitura da moda de há 150 anos, cuja escrita me diverte. As imagens são da exposição a que ontem aludi: a primeira, da época rococó, e a segunda, contemporânea do escrito cuja leitura sugiro, apesar da extensão...
Em 1856, Camilo Castelo Branco colaborava no periódico vianense A Aurora do Lima (criado em Dezembro de 1855, ainda hoje editado, e em continuidade, o que o torna no mais antigo jornal do continente português em publicação), assinando umas crónicas críticas sob o pseudónimo de João Júnior. Saiu em 23 de Setembro de 1856 o texto que contém o excerto que a seguir reproduzo, meio século mais tarde recolhido em Folhetins de Camilo Castelo Branco publicados n’A Aurora do Lima - 1ª série (Viana do Castelo: 1911). Nele pode o leitor ver a linguagem forte e irónica de Camilo, a crítica intensa aos barões e à sociedade, a graça camiliana em todo o seu esplendor.
“Ó meu redactor, se V. soubesse quem as elegantes do Porto arremedam no seu andar requebrado, mórbido e voluptuoso!... Benzia-se!
As saias-mirinais aumentam gradualmente o bojo. Em rua estreita, o encontro de mulher-balão com homem gordo é um perigo. Eu de mim, espadela humana, achato-me como inteligência de barão e deixo passar o leviatã de pano cru e barba de baleia.
A respeito destas saias quer o meu amigo ver o que há mais de cem anos disse um folhetinista português? A coisa é um diálogo:
'SOLDADO: No tempo da minha avó, quando tinha caído nesta terra uma praga de donaires que aqui andou e fazia inchar a gente de sorte, que uma mulher, por magra que fosse, parecia um tonel, que em lugar de alguma aduela, que lhe faltava, tinha muitos arcos de sobejo – perguntei eu a um curioso de antigualhas se sabia donde eram oriundos aqueles inchaços? E ele me respondeu: que as mulheres tanto morreram por andar à moda que a moda lhes pagou o afecto em lhes oferecer aqueles mausoléus ou essas em que jaziam embalsamadas para espectáculo do povo; mas ainda esta razão me não quadrava, e não achei quem me desse outra, antes me disseram que a não havia.
LETRADO: Olhai: arremataram o contrato da mentira, um poeta e um alfaiate, e para que mais lhe rendesse, disse aquele que as damas não tinham pernas, e este então inventou aquela forma de peanhas em que assentassem os meios corpos que lhes atribuíam para com mais decência serem veneradas estas figuras. Se não foi este despropósito, não tenho até agora notícia doutro que engendrasse aquele.'
Não lhe comunico o fragmento como coisa muito engraçada, mas é para que fiquem sabendo os que o não sabiam que tivemos, há mais de um século, folhetinistas com juízo e senhoras que podiam muito bem fingir que o não tinham. As de então chamavam-se almotacés da bizarria, as de hoje são janotas. Ora o folhetinista ninguém hoje fala dele: chamava-se Silvestre Silvério da Silveira e Silva. Os de hoje não têm tantos SS, mas têm mais TT.
Lá por Lisboa já há quem ponha em letra redonda que o tal balão é necessário para o enfeite da mulher. Quem tal diz é um herege do senso comum e reclama um sedenho na nuca e panos de água fria na cabeça! É abusar muito dos tipos! É querer fazer depender o mérito duma mulher de mais oito varas de paninho, quatro arráteis de pós de goma e dois costais de algodão. É preconizar a impostura, fomentar a traição aos olhos da humanidade. É colocar um marido, no seu primeiro dia de felicidade, na dolorosa alternativa do divórcio ou da resignação com os ossos da esposa que se lhe tinham perfidamente mostrado cobertos de túmidos rofegos e velas de mezena. Celibatários, ponde os vossos olhos nisto! Não vos caseis sem um atestado reconhecido da costureira da noiva. Um homem, que tem na fronte escrito o lema glorioso do seu destino, não deve casar-se com mulher-mirinae. As mulheres vestem de modo que falsificam o Evangelho. O marido não pode dizer da mulher: a carne da minha carne; metade é algodão em pasta.”
As saias-mirinais aumentam gradualmente o bojo. Em rua estreita, o encontro de mulher-balão com homem gordo é um perigo. Eu de mim, espadela humana, achato-me como inteligência de barão e deixo passar o leviatã de pano cru e barba de baleia.
A respeito destas saias quer o meu amigo ver o que há mais de cem anos disse um folhetinista português? A coisa é um diálogo:
'SOLDADO: No tempo da minha avó, quando tinha caído nesta terra uma praga de donaires que aqui andou e fazia inchar a gente de sorte, que uma mulher, por magra que fosse, parecia um tonel, que em lugar de alguma aduela, que lhe faltava, tinha muitos arcos de sobejo – perguntei eu a um curioso de antigualhas se sabia donde eram oriundos aqueles inchaços? E ele me respondeu: que as mulheres tanto morreram por andar à moda que a moda lhes pagou o afecto em lhes oferecer aqueles mausoléus ou essas em que jaziam embalsamadas para espectáculo do povo; mas ainda esta razão me não quadrava, e não achei quem me desse outra, antes me disseram que a não havia.
LETRADO: Olhai: arremataram o contrato da mentira, um poeta e um alfaiate, e para que mais lhe rendesse, disse aquele que as damas não tinham pernas, e este então inventou aquela forma de peanhas em que assentassem os meios corpos que lhes atribuíam para com mais decência serem veneradas estas figuras. Se não foi este despropósito, não tenho até agora notícia doutro que engendrasse aquele.'
Não lhe comunico o fragmento como coisa muito engraçada, mas é para que fiquem sabendo os que o não sabiam que tivemos, há mais de um século, folhetinistas com juízo e senhoras que podiam muito bem fingir que o não tinham. As de então chamavam-se almotacés da bizarria, as de hoje são janotas. Ora o folhetinista ninguém hoje fala dele: chamava-se Silvestre Silvério da Silveira e Silva. Os de hoje não têm tantos SS, mas têm mais TT.
Lá por Lisboa já há quem ponha em letra redonda que o tal balão é necessário para o enfeite da mulher. Quem tal diz é um herege do senso comum e reclama um sedenho na nuca e panos de água fria na cabeça! É abusar muito dos tipos! É querer fazer depender o mérito duma mulher de mais oito varas de paninho, quatro arráteis de pós de goma e dois costais de algodão. É preconizar a impostura, fomentar a traição aos olhos da humanidade. É colocar um marido, no seu primeiro dia de felicidade, na dolorosa alternativa do divórcio ou da resignação com os ossos da esposa que se lhe tinham perfidamente mostrado cobertos de túmidos rofegos e velas de mezena. Celibatários, ponde os vossos olhos nisto! Não vos caseis sem um atestado reconhecido da costureira da noiva. Um homem, que tem na fronte escrito o lema glorioso do seu destino, não deve casar-se com mulher-mirinae. As mulheres vestem de modo que falsificam o Evangelho. O marido não pode dizer da mulher: a carne da minha carne; metade é algodão em pasta.”
1 comentário:
Muito bem! Não há como o velho Camilo para estas coisas. Lembro-me dele sempre que vejo um desfile de moda...e na moda de hoje, a carne é mais para o lado do osso e tanto morreram as mulheres para andar à moda que agora se deixam morrer de fome antes de conseguirem chegar a andar à moda...
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