domingo, 11 de outubro de 2020

Memória de António Maria Eusébio, o Calafate e Cantador de Setúbal

 


Em 1908, Henrique das Neves (1841-1915) publicava em Lisboa a obra O Cantador de Setúbal António Eusébio (Calafate) - Apreciações críticas da sua personalidade coligidas da imprensa e de cartas particulares, título indispensável para o conhecimento do poeta evocado, pela quantidade de testemunhos recolhidos, pela diversidade de abordagens, pelo facto de a maior parte dos contributos advirem de publicações periódicas, correspondência ou momentos circunstanciais, que correriam o risco de se perder se esta iniciativa não tivesse existido.

Henrique das Neves, que se reformou como general, esteve no exército em Setúbal, aqui tendo feito amizade com António Maria Eusébio (1819-1911), graças à qual o nome do poeta “Calafate” pôde ficar registado em adequada bibliografia. A mais antiga referência escrita ao “Cantador de Setúbal” é assinada por Henrique das Neves no periódico Jornal de Setúbal, em Fevereiro de 1868, aí se descrevendo as suas qualidades e reproduzindo um conjunto de sete décimas. Três décadas passariam e, em 1901, o mesmo signatário avançou com a publicação Versos do Cantador de Setúbal, que mereceu prefácio de Guerra Junqueiro. A partir daí, a obra do Calafate passou a ser publicada em folhetos para venda na rua e nas feiras, assim constituindo um contributo para a subsistência do poeta octogenário e de sua mulher até ao falecimento de ambos no mesmo ano.

Para assinalar o bicentenário do nascimento do poeta, Daniel Pires e Ana Margarida Chora organizaram a obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma evocação, recentemente dada à estampa pelo Centro de Estudos Bocageanos, trazendo para o leitor de hoje grande parte dos textos que Henrique das Neves coligiu em 1908 e acrescentando outros publicados após essa data, com passagem por diversos arquivos. A abrir esta recolha, Daniel Pires considera que a poesia do Calafate “reflecte valores éticos elevados, pugna pela justiça social, por direitos humanos inalienáveis, tantas vezes postergados, então, no país”, enquanto Ana Chora estabelece as diferenças entre a poesia tradicional e os poetas populares, sendo que a estes, na época de António Eusébio, “as elites prestaram particular atenção”, haja em vista “a espontaneidade, a filosofia popular e a ironia” ou, “na forma, uma musicalidade imperativa e um ritmo que se precipita em função da própria lógica do conteúdo” que os caracterizam.

Classificado como “herói do improviso” (Manuel Envia), um dos “Homeros da viola” (Afonso Lopes Vieira), próximo de Nicolau Tolentino (Henrique das Neves), o “último troveiro” (Augusto da Costa), o detentor da “beleza única, a beleza moral” (Guerra Junqueiro), um “repentista e improvisador extraordinário” (Fernando Cardoso), “um caso de inteligência poética” (Fialho de Almeida), o poeta António Maria Eusébio foi longe, com uma recepção transversal a toda a sociedade. Leite de Vasconcelos, que palmilhou o país na busca da cultura popular, leu-o e registou: “tem grande poder de observação - pinta tudo o que vê em volta de si, discute os assuntos que no momento preocupam a opinião pública, verbera, com mordaz ironia, o que na vida ou na sociedade lhe não agrada.” E estas são, de facto, algumas das marcas que a sua poesia revela notavelmente.

Esta obra organizada por Daniel Pires e Ana Margarida Chora colige cerca de oitenta contributos sobre o Calafate, da prosa à poesia, da memória à notícia, do ensaio à biografia, tornando-se (apesar de alguns descuidos nas referências bibliográficas apresentadas) um elemento indispensável para o conhecimento da importância do Cantador de Setúbal. Uma bela forma de o evocar, dando-o a conhecer!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 481, 2020-10-08, pg. 10.

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