terça-feira, 6 de outubro de 2020

Os dias de Emília Bravo, aliás, Maria Judite de Carvalho



Entre 13 de Janeiro de 1971 e 19 de Junho de 1974, Emília Bravo foi assídua no suplemento “Mulher” do Diário de Lisboa, colaboração que passou por três fases: a primeira, sob o título “Diário de uma dona de casa”, até 29 de Setembro de 1971, espaço semanal com anotações de cada um dos dias da semana; a segunda, entre 6 de Outubro de 1971 e 6 de Fevereiro de 1972, “Diário”, registos publicados ao ritmo de um por dia; a terceira, a partir 7 de Fevereiro de 1972, que, não abandonando o tom dos textos anteriores, passou, contudo, a atribuir título próprio a cada um deles.

Emília Bravo, pseudónimo criado por Maria Judite de Carvalho (1921-1998),  personifica a autoria destas notas do quotidiano, reunidas desde 2002 no volume Diários de Emília Bravo, organizado por Ruth Navas (com reedição em 2019).

A forma diarística que estas crónicas apresentam desde logo se deixa marcar pelo problema do eu que escreve, um eu ficcional. Por outro lado, a autora não fala de si, mas dos outros, do mundo, o que anula a marca do diarismo que é o relato do eu. Assim, o livro é um miradouro de onde se vê o mundo, particularmente a cidade (Lisboa) e as personagens que a fazem, mulheres e homens inseridos numa vida urbana, onde ganha espaço a “dona de casa”, mulher que luta (pela vida), que caminha na sua solidão, cabendo a Emília Bravo reflectir e questionar o observado.

Os motivos chegam à cronista através de três fontes importantes: o que observa nas suas caminhadas pela cidade, o que recebe via televisão, o que apreende nos jornais e revistas que lê. O discurso gira em torno das situações do quotidiano, aquelas que fazem parte de todas as vidas - a casa, o estatuto da mulher e do homem, a moda, a sobrevivência, os saldos, as prestações, a confusão, o supérfluo, o consumo, o tempo, os piropos, o sonho. Frequentemente, as considerações feitas surgem a partir de vozes de pessoas com quem Emília se cruza (amigas, conhecidas, anónimas), normalmente num tom pessimista, mas também de denúncia de ocorrências menos boas numa sociedade de que ela mesma faz parte.

O leitor assiste a um progressivo construir da imagem da mulher interventiva e autónoma, independentemente das razões que o provocaram: quase no final, em crónica de 23 de Janeiro de 1974 intitulada “Como vai ser?” (pergunta indicadora da alteração), a sociedade confronta-se com a mudança - “é que as senhoras de sua casa, as donas de casa e mais nada têm vindo a desaparecer, e não só por causa da emancipação da mulher, mas também (mas principalmente) devido ao custo de vida.”

Sobre o início da década de 1970, tempo destas crónicas, passou meio século. Contudo, muitas das observações poderiam ser transpostas para hoje, prova de que outras tantas questões não tiveram resolução nestes 50 anos. Um exemplo? Este, de Junho de 1971: “Poluição é uma palavra que está na ordem do dia em todo o mundo. Muito se fala de poluição. Mas dar-nos-emos nós conta do seu valor de ameaça? Não pensaremos para connosco, encolhendo os ombros, que se trata de uma coisa vaga, mais um papão que, decerto, não é no fundo tão mau como o pintam ou talvez nem exista? Alguém há de dar um jeito, pensamos. Há sempre alguém que dá um jeito, não é verdade? Pois esperemos que haja esse alguém, porque ela caminha a passos largos.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: 476, 2020-09-30, p. 5.

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