sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

João Magueijo: um olhar sobre Inglaterra



“Estou no cimo de uma serra, estou no céu, ou se calhar voo pelos ares de asas abertas numa nuvem sem borbotos, e vai-se a ver estou a nadar no mar alto sem ter fundo, que ao fim e ao cabo isto vai dar tudo ao mesmo: uma grandessíssima arrelia. Não se enxergava uma polegada britânica à frente do nariz, com os cristais de gelo sobre as pálpebras parecia que nem o próprio nariz se via. E é isto vir de férias nesta ilhota do mar do Norte.” Assim começa Bifes mal passados (Lisboa: Gradiva, 2014), a obra de João Magueijo (n. 1967) que, entre Junho e Novembro, atingiu onze edições e que tem por subtítulo o explicativo dizer: “Passeios e outras catástrofes por terras de Sua Majestade”.
Não vá o leitor enganar-se e pensar que está perante um livro de viagens, o subtítulo desengana logo e o primeiro capítulo não lhe fica atrás. Sugestivamente intitulado “weekend”, esse texto de abertura relata uma ida a Helvellyn, em Lake District, caminhada cheia de peripécias demasiado catastróficas para se recordar um bom passeio. Essa abertura serve ainda para o autor mostrar a sua ligação a Inglaterra e para se justificar do tom a utilizar: “Tendo vivido vinte e tal anos em Inglaterra, depois de acumular duras experiências, munido da sagacidade que a rude prática nos traz, hoje em dia, quando quero ir de férias, espairecer um bocado, desaparecer um fim-de-semana, a primeira coisa que faço é comprar um bilhete de avião. E fugir deste ilhéu a sete pés!” Não é, pois, feliz o retrato que vai ser feito do país de acolhimento do autor…
Ao longo das quase duas centenas de páginas, o leitor vai conquistando a surpresa do mal-estar que invade a memória do narrador. Com efeito, o livro, extensa crónica de vivências diversas, com opiniões que partem de histórias do acaso, é também um repositório memorialístico, já que as experiências aconteceram na primeira pessoa e contêm a marca autobiográfica. Por lá passam apreciações da paisagem, dos hábitos, das pessoas, em suma, de uma identidade do outro, perscrutada por um estrangeiro que acaba por se habituar e por se inserir na sociedade de que tanto se ri e sobre outro tanto ironiza.
À medida que os comentários sobre Inglaterra vão correndo, vai o leitor percebendo que a vida do narrador se alicerça sobre o conjunto de experiências que vai vivendo e sobre as memórias que vai tendo do seu país, de Portugal, ora pela evocação de tempos da sua infância e juventude em Sesimbra ou no Alentejo, ora pelo conhecimento que detém de uma certa forma de ser português, mais prático, mais imediato, mais popular, a tentar compreender um mundo novo, que não tem semelhanças com o de origem.
O tom de riso ou de humor é logo marcado pelas epígrafes que abrem a obra, de Petrónio e de Jerome K. Jerome, e, ao longo do escrito, há ainda referências a Orwell, a Bergerac, a Baudelaire, a Eça, a Rentes de Carvalho, todos eles suficientemente críticos e praticantes de humor e de dizeres sobre outros povos. Apesar disso, vai-se o leitor interrogando sobre o ponto a que chegará esta obra, tão intenso é o tom crítico, atingindo por vezes um certo mal-estar no que se lê, seja por algum aparente exagero, seja por não se saber muito bem a partir de que ponto uma experiência pessoal pode passar a marca generalizada…
O capítulo designado “Epílogo” faz as pazes ou estabelece a harmonia entre o narrador, o leitor e o mundo que foi (re)criado. O título que lhe é dado contém também uma chave para a leitura – “Agridoce”. E é num desabafo que essa chave se inicia: “agradeço a quem me leu até aqui por ter aturado as graçolas de mau gosto, mas espero que tenha ficado claro que não são gratuitas – se as disse é porque esta é a única forma de lidar com este país sem recorrer ao suicídio.” Daqui para a frente, o autor revê-se na sorte que teve em ter passado esse tempo em Inglaterra – “Foi esta a pátria  adoptiva que me permitiu fazer o que gosto: a minha vida como físico e cosmólogo tem sido uma longa história de amor com as tradições científicas britânicas, que não são perfeitas, longe disso, mas também não é isto amor platónico, é uma relação carnal que aprecia a sua verrugazita. Pelo contrário, se tivesse ficado em Portugal teria sido a asfixia.” A justificação para o tom de gozo e de ironia utilizado expõe-na João Magueijo numa observação sobre o auto-retrato que os ingleses de si mesmos produzem: “Uma das particularidades do humor britânico é que frequentemente é self-deprecating, auto-depreciativo: consiste em fazer pouco de si próprio, levado a um extremo que deixa os estrangeiros constrangidos.” Com esta reflexão, o autor assume já o seu quê de britânico, melhor, de inserido no espírito do país que o recebeu e de que ele se ri, porque, afinal, o riso e a gargalhada surgem sobre as suas experiências, não as que lhe passaram ao lado mas as de que ele foi protagonista.
Por isso, a crónica encerra com algo que pode ser um princípio salutar: “As pessoas às vezes levam-se demasiadamente a sério. Não há nada mais saudável do que rir às gargalhadas de si próprio.” E é isso que ressalta neste Bifes mal passados: as aventuras de um português que assume um percurso de descoberta e de inserção em terras de Sua Majestade… nem sempre agradável, é claro, mas que serve para se inserir e para a afirmação da sua identidade também.

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