O bairro de Tróino, especialmente a zona da Fonte
Nova, em Setúbal, tornou-se espaço privilegiado de uma narrativa ficcional, na
medida em que constitui o cadinho onde se desenvolvem as histórias das
personagens que povoam As mulheres da
Fonte Nova, de Alice Brito (Lisboa: Planeta, 2012).
Sendo o primeiro romance da autora, é já uma obra
intensa, construída com retratos bem conseguidos e uma trama muito bem urdida,
que abrange cerca de quatro décadas na vida das personagens e do espaço em que
elas se movem (entre os anos 30 e os anos 70 do século passado).
A história toma como lugar a cidade de Setúbal, mas
poderia ser noutra qualquer, aliás, no livro não surge uma única vez o nome de
Setúbal, embora todas as indicações toponímicas e geográficas sejam desta
cidade. Assim se localiza a história, ao mesmo tempo que é dado a entender que
as intenções vão muito para lá do que seja uma colagem a este espaço, que
funciona apenas como pretexto para um retrato social muito forte onde se cruzam
aquelas que têm sido as marcas do “desenvolvimento” de uma cidade e de um
espaço cheio de contrastes de toda a ordem, a que nem a linguagem da narradora
escapa logo desde início, ainda que fazendo-o de forma subreptícia, como
podemos ver em expressões “as desfeitas que lhe eram feitas” ou “nutrir
desprezo” ou na antítese que opõe as conserveiras à figura do patrão – “elas,
já de si pequenas, apoucavam-se e encolhiam à passagem daquela torre de
pesporrência” –, exemplos retirados das quatro primeiras páginas do livro.
Narrativa rica no tratamento das figuras femininas,
que dominam, As mulheres da Fonte Nova
faz ressaltar essa importância através do controlo que lhes é dado a gerirem
situações, a conduzirem a sedução, a estabelecerem as pontes entre os vizinhos
que constituem a cidade, numa luta e afirmação contra a miséria e contra um
quadro de uma comunidade que vive no ramerrão das “infâncias desaparecidas e
vidas enlatadas nas fábricas do peixe” ou “aperreada” na carência e no
analfabetismo ou vigiada pelos costumes e pela polícia política. A importância do olhar feminino é tão intensa que, ao longo do
romance, o discurso da narradora é frequentemente interrompido por uma
personagem que se vai esboçando, processo interessante de intervenção e de
simulação do que pode o leitor estar a sentir no momento: são observações sobre
a linguagem utilizada, sobre a ideologia vincada, sobre a condução da
narrativa, sobre as relações entre as personagens, tudo num diálogo que surge
de repente, como se uma conversa (às vezes de forma abrupta) fosse entre a
narradora e essa Laura, logo apresentada no primeiro capítulo – a personagem
critica o “demasiado fascismo e palavrões” na prosa e a narradora estabelece o
seu estatuto ao responder-lhe: “Ainda só agora comecei e escrevo o que me dá na
realíssima gana. Não serás tu, uma personagem secundaríssima, que aparecerá já
quase no fim, que me vais impedir. Laura. Chamar-te-ás Laura.”
Narradora omnisciente, que traça a seu bel-prazer o
mapa da narrativa, que afirma conhecer a Fonte Nova, que mexe na narrativa
antecipando momentos e estabelecendo paralelismos entre o passado (vivido na
história) e o presente (que constitui a cidade e é o tempo do leitor), acentua
o seu ponto de vista crítico perante a sociedade e perante as atitudes das
personagens: ora é o paralelismo quanto às vivências (“Os bancos, já nessa
altura muito crápulas, negavam quaisquer facilidades, agiotas até à quinta
casa, exigindo pagamentos e juros nas horas certas, marimbando-se para a
incerteza da vida de cada um. Como hoje.”); ora é o sarcasmo perante as
atitudes videirinhas (“Quando o casamento foi anunciado, alguns doutorados em
insinuação e vida alheia asseguraram tratar-se de puro interesse.”); ora é a
crítica a uma certa preguiça social (“O Convento de Jesus, por exemplo, pesado,
belíssimo e manuelino, era para ser venerado, reverenciado e defendido como
quem defende o último pão em período de grande fome anunciada.”); ora é o ponto
de vista sobre as ideologias e o poder (“O tempo passa tão depressa quando se
está bem e dura uma verdadeira eternidade quando se vive nesta pasmaceira de
viver mau e igual, tempo baixo e lorpa este do fascismo português.”).
Por este livro de Alice Brito passa um grande afecto
pela cidade e por quem a povoa, um conhecimento entranhado, um retrato
completo, que lateja nas suas veias, que redescobre a sua luz, que lhe toca a
alma. E não se pode ficar indiferente a uma narrativa que em tudo preenche os
princípios do romance histórico, retratando uma época de sofrimento social e
político, sempre eivado de esperança, com personagens que se cruzam com figuras
como Ana de Castro Osório ou com episódios como as Grandes Guerras ou a
pneumónica, da história nacional, ou com nomes como Américo Ribeiro ou
acontecimentos como o quadro da indústria conserveira, da história local. E,
nesta classificação de romance histórico, cabe, obviamente, a perspectiva
crítica da narradora, intensa, pedagógica, num apelo à memória, num fazer a
memória.
As mulheres
da Fonte Nova é leitura que se impõe,
quer por todo o quadro que oferece (social e político, sobretudo), quer pelo
gesto de intervenção cívica e cultural que o sedimenta. E também porque se
trata de uma narrativa bem escrita, bem conseguida, com personagens ricamente
trabalhadas, em torno da epopeia de muitas mulheres da Fonte Nova de quem a história
parece não rezar mas que nela actuaram.
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História – “A História é como o fogo. Quando se está em cima
dela arde e dói. Só quando o vendaval amaina se consegue tocar-lhe. A distância
é-lhe necessária, quando a chama da paixão se transmutou já em qualquer outra
coisa que não sei bem o que é. Talvez memória.”
Humilhação – “Não há maior crueldade, nem humilhação mais
dolorosa, do que aquela que é exercitada com explícita amabilidade.”
Livro – “Pode-se frequentar um livro, um verso, uma página.
Há livros que têm melhor vida que outros. Em carícias, sublinhados,
empréstimos, conversas e paráfrases. Há livros que têm mesmo uma vidinha de
lordes. Emprestam imaginários, personagens e vistas largas. São referidos,
referenciados, estudados com deleite. São lidos por muitos olhos. À noite, de
dia, às escâncaras ou clandestinamente. É a vida. Também há alguns que não
valem nem o papel que gastam. Só dizem parvoíces.”
Ditadura – “Quando um poder ditador perde a sua carga
intrínseca de perpétua proibição, quando faz cedências em circunstâncias que
lhe são desfavoráveis, quando, de dador altivo de esmolas, solicita pactos e
entreabre portas, está irreversivelmente fodido.”
Olhar – “O pior da vida é não nos apercebermos das coisas
muito boas ou muito más que nos acontecem. É olharmos o mundo em redor e não o
vermos.”
Fome – “A fome, a fominha, é sempre uma coisa distante
para o conforto tépido das casas e consciências onde ela nunca entrou.”
Indiferença – “A indiferença é uma coisa que custa muito a quem
não é indiferente.”
Miséria – “A miséria interioriza-se. É possível deixar de ser
miserável. A recordação da miséria é, no entanto, feroz. Deixa-se de ser
miserável mas a miséria fica sempre à espreita, edificada na memória.”
Novo-riquismo – “O novo-riquismo, aliado ao dinheiro fácil, não
preserva nada.”
Medo – “O medo é assim. Perante a iminência do perigo fica
grande e reboludo. Parece um repolho que a pessoa traz na lapela. Depois, à
medida que o tempo vai passando sem que o perigo se transforme em coisa
concreta, o repolho começa a murchar. Fica sempre a sombra.”
1 comentário:
Olá
Outro marcador é a CIDADE, que está sempre presente e é uma influência na própria história.
"Tens medo que a cidade fale de nós, José, perguntou.Há muito tempo que a cidade não faz outra coisa... Não te importes como o que a cidade diz. Deixa-a falar..."
"A cidade piedosa... A cidade caritativa..."
"Achava a cidade que Arminda se devia casar..."
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