Aos 87 anos, Maria Barroso resolveu partilhar a
narrativa da sua vida com os leitores através da publicação das suas memórias e
da correspondência mantida com o marido, Mário Soares, entre 1961 e 1974, num
projecto co-editado pelo semanário Sol
e pela Fundação Pro-Dignitate. É um conjunto de 18 volumes, publicados a ritmo
semanal, em que a epistolografia ocupará 8 deles (Cartas a Mário Soares 1961-1974) e a biografia os restantes (Álbum de memórias). O trabalho foi
coordenado pelo jornalista Vladimiro Nunes, que anotou as cartas e redigiu os
volumes de cunho biográfico. Até ao momento, foram publicados cinco volumes
deste projecto [o próximo sai amanhã, com o jornal Sol], sendo quatro deles da correspondência.
O primeiro volume da biografia ocupa-se sobretudo da
história da ascendência de Maria Barroso, incidindo bastante sobre a actividade
do pai, militar e republicano, alvo de perseguições e de prisões graças aos
compromissos assumidos. O final do volume encontra Maria Barroso na sua
infância em Setúbal, aos dezasseis meses (em Setembro de 1927).
Preocupação de Vladimiro Nunes é de contextualizar a
narrativa no Portugal da época, com referências adequadas à vida política,
cultural e social do país, com indicações cronológicas sobre acontecimentos e
sobre outras personalidades que viriam a ser referências para o século XX
português e que viriam a cruzar-se também com o percurso de Maria Barroso e de
Mário Soares em muitos casos. Para a elaboração deste trajecto biográfico,
Vladimiro Nunes teve como fontes a própria Maria Barroso, um vasto leque de
amigos e de familiares da biografada e o arquivo de família, assim se
justificando o título, que alia a capacidade da memória e a característica
antológica dos eventos, das histórias e das personagens que fazem uma vida.
Quanto aos quatro volumes de correspondência já
publicados, o leitor entra nos tempos de ausência de Mário Soares relativamente
à família, fosse por estadias longas no estrangeiro, fosse pelos tempos de
cárcere ou de desterro. As cartas de Maria Barroso para o marido são um ritual
diário nesses tempos de ausência, muito próximas da escrita diarística,
relatando o acontecido naquele dia, com considerações a propósito, por onde
passam os registos da vida do Colégio Moderno (sobre os professores, sobre a
gestão e organização, sobre as inscrições, sobre as obras, sobre as colónias de
férias), o acompanhamento dos filhos João e Isabel (nos estudos, nas relações
sociais, na educação), o cuidado prestado a familiares (sobretudo ao sogro,
João Soares, na vigilância da sua saúde, no acompanhamento, na gestão das
relações familiares), a gestão do património familiar (acompanhamento das obras
na casa de Nafarros, da actividade no escritório de advocacia de Mário Soares e
manutenção da casa de Cortes), as relações sociais (manutenção das amizades e
presenças em eventos, muitas vezes em representação do casal ou do marido), a
preocupação em minimizar os efeitos do afastamento (fazendo chegar à prisão
livros, refeições por si confeccionadas, marcando presença nos escassos tempos
de visita), as emoções (provas de afecto, considerações sobre a vida do casal,
incentivo contra a solidão e a humilhação do estatuto de preso), a vida cultural
em que estava envolvida (leituras, filmagens, sessões de poesia e de teatro).
Percebe o leitor que a intenção de Maria Barroso era a
de tornar o mundo familiar presente a Mário Soares, assim impedindo que as
interrupções da vida em comum equivalessem a descontinuidades e possibilitando
que os projectos em que estavam envolvidos pudessem continuar a ser gizados a
dois.
As cartas de Maria Barroso assumem também essa
perspectiva de luta contra a solidão, passeando pelos relatos do quotidiano,
mas demonstrando ainda as angústias e as dúvidas de quem não quer vacilar, de
quem quer ser presente e vencer a distância, muitas vezes confessando o
exercício de aprendizagem que aqueles afastamentos lhe proporcionam à medida
que cresce a admiração pela forma como o marido enfrenta a adversidade da
perseguição política.
No fundo, estas cartas são o retrato, a fixação do
tempo comum possível naquelas circunstâncias, uma prova de cumplicidade
efectiva na forma de fazer a vida com sentido, sempre com horizontes de
esperança, muitas vezes matizados com as cores das plantas do jardim ou com os
tons do dia, a evocarem momentos passados ou recortados por alusões a versos e
à memória. São cartas que apaziguam quem as escreve e que pretendem idêntico
efeito no destinatário, que se alicerçam na partilha e na comunhão para que o
sofrimento das lonjuras seja, pelo menos, esbatido. Um belo documento humano e
cultural, um bom testemunho de sinceridade e do que pode ser a vida de pessoas
que caminham na mesma direcção!
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Homem (e
mulher) – “Chego a pensar se de facto
os homens merecem tanta ternura, tanta dedicação como aquela que algumas
mulheres sabem dar. Afinal de nada serve a amizade, a dedicação, a profunda
ternura de anos e anos lado a lado. A mulher chega a certa altura e está velha,
gasta e já não serve – há que substituí-la por outra mais jovem, mais válida.
Esta confusão, esta inversão de valores ou nos conduzem a uma atitude cínica e
egoísta ou nos levam ao desespero. Sinto-me verdadeiramente atordoada com tudo
isto!” [Cartas a Mário Soares 1961-1974
(vol. 2) – a propósito do divórcio previsto de um casal amigo, em carta de
19-08-1966]
Esperança – “A esperança é a mais linda flor que eu conheço mas
a terra dela é o coração dos homens.” [Cartas
a Mário Soares 1961-1974 (vol. 3) – em carta de 29-02-1968]
Olhar em
frente – “O voltarmo-nos excessivamente
para dentro de nós próprios é que nos conduz muitas vezes a situações de
angústia e de nervosismo. Se olharmos para a frente, para o que é jovem e
espontâneo, por muito duro que seja o que nos rodeia, por muito violenta e
injusta que seja a realidade que tenta esmagar-nos, há sempre maneira de
encontrarmos dentro de nós a força e a coragem de seguirmos o nosso caminho,
que é o caminho da dignidade e da compreensão humana.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 11-06-1968]
Palavra – “Duas pequenas palavras, repassadas de ternura e
saudade, bastam, por vezes, para animar um coração desolado, para reanimar uma
pessoa fatigada.” [Cartas a Mário Soares
1961-1974 (vol. 4) – em carta de 08-07-1968]
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