António Manuel Couto Viana (1923-2010), nome para sempre ligado à poesia portuguesa e ao teatro, foi exímio memorialista dos outros, servindo-se de uma prodigiosa memória para contar sobre poetas e autores, lidos e conhecidos, sobre épocas e personagens que no seu caminho se cruzaram. Pena seria que a sua vida extremamente preenchida não desse origem a um volume de memórias, contando o seu trajecto sempre diversificado, absolutamente dominado por uma dinâmica que nunca lhe permitiu a paragem na escrita, tendo mesmo, na fase final da sua vida (a partir de 2004), encetado o caminho do conto. É assim de saudar o aparecimento da obra assinada por Ricardo de Saavedra, intitulada António Manuel Couto Viana – Memorial do coração (Conversa a quatro mãos), recentemente editada (Lisboa: Quetzal Editores, 2012).
O
título informa-nos sobre a organização da obra: é, com efeito, uma entrevista,
uma longa entrevista, edificada sobre onze capítulos e cerca de cinco centenas
de páginas, resultante de um tempo de conversas de aproximadamente cinco anos
(desde Março de 2005), tendo o entrevistado ainda tido a oportunidade de
conhecer grande parte da versão escrita.
O
que impressiona neste texto é a fidelidade de Ricardo de Saavedra ao tom de
conversa de Couto Viana, quase sendo dada a possibilidade ao leitor de “assistir”
a este diálogo entre os dois, viajando na memória, por vezes alterando a ordem
cronológica, sempre contando histórias da vida ou a propósito dos momentos por
que vai passando a revisitação. Bem marcante é o poder descritivo e a ordem
narrativa de Couto Viana, conversador e nato contador de histórias, nunca
deixando que a sua história ande apenas em redor de si, antes mostrando a sua
vida na relação com os outros, na dedicação às artes – da literatura e da
representação – e aos prazeres – gastronomia, leitura, viagens – e na luta pela
sua independência e pelo seu caminho.
O
nível de linguagem é sempre elevado, culto, com observações de uma nobreza de
sentimentos e de saberes que impressionam, não só pela forma airosa como todo o
seu trajecto é partilhado, como pela meticulosidade posta numa memória que deve
ser um contributo para a história. São de ternura evidente as palavras que deixa
sobre a sua “cidadezinha”, Viana do Castelo, e sobre o ambiente e experiências
ali vividas, ponto de eterno retorno que sempre o chamou; são de realização
assumida as entradas pela memória da sua vida dedicada ao teatro, enquanto
actor, empresário, autor, cenógrafo, criador de companhias, num périplo que
passa pelo Teatro-Estúdio do Salitre, Teatro da Mocidade, Teatro da Campanha Nacional
de Educação de Adultos, Teatro do Gerifalto, Oficina de Teatro da Universidade
de Coimbra, Grupo Português de Teatro (de Macau), entre outros, percebendo-se
que a história do teatro português da segunda metade do século XX não estará
completa se o nome de Couto Viana for omitido; são quase fílmicas as lembranças
da chegada a Lisboa (em 1946) e os contactos com os escritores que sempre lera
e de quem se ia tornando amigo ou com aqueles que, tal como ele, se iniciavam
na aventura literária, atingindo especial elevação as referências àqueles que
foram amigos de sempre, como David Mourão-Ferreira ou Fernando de Paços, por
exemplo; é contributo para a história literária o seu esmiuçar pelas revistas e
publicações em que participou ou a associação que faz de muitos momentos da vida
a outros tantos instantes de poesia; é prestação para a história do teatro a
dinamização a que procedeu no âmbito do teatro infantil, na “descoberta” de
actores, no gesto de levar o teatro aos mais diversos recantos do país; é
retrato de desolação a lembrança dos momentos menos bons provocados por uma
remissão para o esquecimento a partir de 1974, com o consequente abandono por
parte de muitos amigos, ou por um jogo de influências movido em Macau que lhe
deixou feridas e desgosto, mesmo na apreciação destes casos não se vislumbrando
linguagem menos nobre, antes exprimindo-se o lamento, ao mesmo tempo que a
literatura se anuncia como contínua tábua de salvação.
António
Manuel Couto Viana diz-se na alegria do reencontro com a sua obra, longa viagem
que também o transportou ao oriente de Camões, deixando-se o leitor levar por
um guia que entra na China e noutras orientais paisagens, vivamente descritas,
quase se estando mais perante uma recriação literária do que na presença de
algo que se diz de memória, de tal forma a riqueza das cores, das sensações,
das emoções pulsa por estas páginas de reconstituição de uma vida, o mesmo se
podendo dizer a propósito do pormenor na narração e na descrição do encontro
com Savimbi na Jamba. O próprio entrevistador tem momentos em que interrompe a
conversa para, apreciativamente, elogiar a memória do entrevistado, registo que
se destinará também ao leitor, desta forma desperto – ou lembrado – quanto à
realidade deste livro, que não é uma ficção, antes o retrato de uma vida.
Preocupações
máximas de Couto Viana são a sua obra, os seus amigos e os seus lugares. Da
obra vai falando enquanto mostra o regulador que ela foi da sua vida, com o
verso sempre a renovar-se e o lirismo continuamente no seu caminho; dos amigos
tem a preocupação de registar os nomes e os traços, às vezes em escassas
referências, mas sempre querendo inscrevê-los no seu percurso e por vezes
pedindo antecipadamente desculpa de qualquer omissão; os espaços, vai-os
revisitando, com uma ternura particular sobre Viana do Castelo, berço da vida e
da obra sobre o qual diz: “Viana influencia toda a minha obra! A infância
marca, para sempre, a vida de um poeta e a minha foi toda passada em Viana, que
continua a ser uma cidade sedutora. A timidez aguçou-me o sentido de observação
e toda a minha meninice e juventude foi plena de motivos de interesse, rica de
momentos inesquecíveis, vivida num ambiente familiar que muito contribuiu para
estimular o meu crescente gosto pelas artes. Muitos dos meus escritos narram
tudo isto, decorrem deste acumular de sensações e sentimentos, com raiz nos
tempos em que cresci em Viana. E a raiz nasce no coração.”
O
final do ciclo de conversas coincide com o termo da vida de Couto Viana, cujas
últimas palavras para o entrevistador constituem um pedido para que o livro não
esmoreça, para que o livro exista, para que a memória perdure. Um derradeiro
capítulo mostra o sentimento de perda de um amigo que se tornará presente pela
sua obra, extensa obra, de poeta, que António Manuel Couto Viana se chamava,
nome que constitui “um decassílabo perfeito”, como Ricardo de Saavedra faz
questão de lembrar logo na primeira frase do volume.
O
leitor encontra ainda quarenta páginas, em dois cadernos, a constituírem um
álbum fotográfico, disperso por geografias, por tempos e por amizades. E, no
final, uma exaustiva lista de bibliografia activa ordenada por modos de escrita
e por assuntos (poesia, teatro, contos, ensaios, memórias, gastronomia,
traduções e adaptações, antologias, prefácios e apresentações), uma
circunstanciada resenha da teatrologia e um índice onomástico (a que ainda
poderia ter sido acrescentado um índice de títulos). A fechar, na lista dos “agradecimentos”,
Ricardo de Saavedra relembra a construção do livro – desde a primeira reunião
dos dois já velhos amigos, em 18 de Março de 2005, com a intenção de se contar
esta vida, foi sendo construído “um livro nascido de conversas, registos
avulsos e papéis dispersos, que cresce[u] ao sabor dos temas sem cuidar de
cronologias, confiado quase exclusivamente na memória elefantina do
interlocutor.”
Umas
boas memórias de António Manuel Couto Viana. Num memorial também do coração!
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