domingo, 20 de maio de 2012

José-António Chocolate: «Todos os afectos»


Quando completou 50 anos de vida literária, Aquilino Ribeiro discursou para os amigos reflectindo a partir de uma pergunta: afinal, quem lhe tinha encomendado o sermão, ou, por outras palavras, o que o levara a trilhar um caminho semeando palavras em vez de fazer outras coisas que lhe dariam igualmente prazer? E a justificação era apenas uma: o apelo das palavras, do dizer, qual sina que se lhe impusera.
José-António Chocolate perfaz agora os 30 anos sobre a sua actividade poética e brinda os amigos com uma antologia de afectos que sobrevoa sete livros (Todos os afectos. Setúbal: Estuário, 2012). E cabe-nos perguntar: antologiar-se porquê? Não são muitos os poetas que se antologiam, mas, chegados a este ponto, pretendem buscar os arquétipos da poesia que os enformou, talvez reescrever os fundamentos e os pretextos da sua própria arte poética, talvez apurar o essencial do essencial porque a palavra poética tem esse poder de síntese e de afirmação universal, forma suprema de dizer através do canto. Mas o poeta antologia-se porque se escolhe a si próprio, seleccionando o melhor, o mais dizível, o mais forte da mensagem, numa quase exposição das tábuas da poesia, numa quase chieira do que foi o seu percurso.
Conheci o José-António Chocolate devido à poesia. Não sei quando foi, mas foi há tempo bastante, porque me lembro do nome dele em antologias e só depois em livro. Dessa poesia lida passámos depois para a poesia falada e encontrámo-nos em vários momentos para apreciar poesia. E tem sido curioso que os dizeres de José-António Chocolate se refugiem na riqueza da construção literária, com apreciações aos momentos e à vida que ressaltam de imagens poéticas, do burilar as palavras.
Se assim tem sido na vida, mais intenso tem sido na escrita. Repare-se, de resto, no poema “Essencial a poesia”, com que nos presenteia no grupo de inéditos que integra esta antologia. A sequência do poema é lógica e circular. No início: “O poeta renova-se na construção do verso.” No terceto final: “É essencial que a poesia transfusa tome / lugar no corpo do poeta, / seja criadora e seja sua criação.” Os caminhos que esta quase arte poética percorre aproximam os sentidos daquilo que é um permanente dar forma, seja por acção da terra viva, seja por intervenção da humana mão. O poeta assemelha-se ao artífice que pode estar nas formas que o oleiro constrói, na “linha que se entrelaça no bailado da agulha” ou na terra que faz germinar depois de esventrada. São imagens de criação estas, associadas ao trabalho e ao tempo, ao amor à arte e aos segredos da Natureza que ecoam no homem, que o poeta edificam.
Lê-se este poema e fica-se sem saber quem primeiro nasceu: se o poeta se o poema. Mas este texto, edificado sobre apenas duas estrofes, lança-nos naquilo que é o essencial da poesia de José-António Chocolate: o dizer da felicidade, muito mais do que a felicidade do dizer. Este poeta canta o amor, divaga pelo prazer, baloiça entre os sentidos, afirma o “eu” e a peculiaridade da sua visão do mundo, olha a humana condição, mede-se com o tempo, preocupa-se com a morte, pinta o gosto e o sabor da vida, integra a paisagem. Sempre numa situação de natural equilíbrio, em que a liberdade de ser se completa com a liberdade de criar, com a demanda da palavra mais certa, mais laboriosamente escolhida para valorizar o dizer.
E, a propósito deste dizer, não pode passar ao lado o Alentejo, molde certeiro e cadinho em que o poeta se amalgamou, dando oportunidades a poemas que poderiam – deveriam – integrar qualquer antologia que sobre o Alentejo se faça. Profundo respeito pelas origens, mais profundo reconhecimento pelas teias que entretecem o poeta, que assinala raízes, sublinhando figuras tão importantes como a avó ou a neta, uma e outra motivos de poema, com afectos materializados na palavra.
Poesia feliz é esta em que José-António Chocolate se antologia. Para tal concluirmos, bastaria um poema como “Apontamento”, que toma para motivo algo aparentemente insignificante: dois riscos, sobre a toalha, ao canto da mesa. E a operação poética constrói-se a partir daí pela decifração do desenho possível – o lavrar de um arado, num revolver de terra, os gumes a sulcarem uma vida. E a suma revelação – com este desbravar, confessa o poeta: “sangra o corpo / e canta-me a alma / o tempo vivido.” Outra forma de justificar a poesia. Outra maneira de a poesia se afirmar como torno em que o barro é a vida e a palavra e o oleiro é o poeta.
Trinta anos de palavras que se cantam e que reconstroem o quadro do poema maior, aquele que surge da oficina feliz, aquele em que a linha se “entrelaça no bailado da agulha”.
E, para voltar ao início, porque uma antologia é também o círculo necessário… todos percebemos a razão pela qual Aquilino Ribeiro disse que esta necessidade de semear palavras era uma sina… Os 30 anos atestam-no e Todos os afectos também. Sigam esta sina, pois!
[Lido na apresentação pública da obra, em 19 de Maio, ocorrida em Setúbal, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal]

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