Quando completou 50 anos de vida literária, Aquilino
Ribeiro discursou para os amigos reflectindo a partir de uma pergunta: afinal,
quem lhe tinha encomendado o sermão, ou, por outras palavras, o que o levara a
trilhar um caminho semeando palavras em vez de fazer outras coisas que lhe dariam
igualmente prazer? E a justificação era apenas uma: o apelo das palavras, do
dizer, qual sina que se lhe impusera.
José-António Chocolate perfaz agora os 30 anos sobre a
sua actividade poética e brinda os amigos com uma antologia de afectos que
sobrevoa sete livros (Todos os afectos.
Setúbal: Estuário, 2012). E cabe-nos perguntar: antologiar-se porquê? Não são
muitos os poetas que se antologiam, mas, chegados a este ponto, pretendem
buscar os arquétipos da poesia que os enformou, talvez reescrever os
fundamentos e os pretextos da sua própria arte poética, talvez apurar o
essencial do essencial porque a palavra poética tem esse poder de síntese e de
afirmação universal, forma suprema de dizer através do canto. Mas o poeta
antologia-se porque se escolhe a si próprio, seleccionando o melhor, o mais
dizível, o mais forte da mensagem, numa quase exposição das tábuas da poesia,
numa quase chieira do que foi o seu percurso.
Conheci o José-António Chocolate devido à poesia. Não
sei quando foi, mas foi há tempo bastante, porque me lembro do nome dele em
antologias e só depois em livro. Dessa poesia lida passámos depois para a
poesia falada e encontrámo-nos em vários momentos para apreciar poesia. E tem
sido curioso que os dizeres de José-António Chocolate se refugiem na riqueza da
construção literária, com apreciações aos momentos e à vida que ressaltam de
imagens poéticas, do burilar as palavras.
Se assim tem sido na vida, mais intenso tem sido na
escrita. Repare-se, de resto, no poema “Essencial a poesia”, com que nos
presenteia no grupo de inéditos que integra esta antologia. A sequência do poema
é lógica e circular. No início: “O poeta renova-se na construção do verso.” No
terceto final: “É essencial que a poesia transfusa tome / lugar no corpo do
poeta, / seja criadora e seja sua criação.” Os caminhos que esta quase arte
poética percorre aproximam os sentidos daquilo que é um permanente dar forma,
seja por acção da terra viva, seja por intervenção da humana mão. O poeta
assemelha-se ao artífice que pode estar nas formas que o oleiro constrói, na
“linha que se entrelaça no bailado da agulha” ou na terra que faz germinar
depois de esventrada. São imagens de criação estas, associadas ao trabalho e ao
tempo, ao amor à arte e aos segredos da Natureza que ecoam no homem, que o
poeta edificam.
Lê-se este poema e fica-se sem saber quem primeiro
nasceu: se o poeta se o poema. Mas este texto, edificado sobre apenas duas
estrofes, lança-nos naquilo que é o essencial da poesia de José-António
Chocolate: o dizer da felicidade, muito mais do que a felicidade do dizer. Este
poeta canta o amor, divaga pelo prazer, baloiça entre os sentidos, afirma o “eu”
e a peculiaridade da sua visão do mundo, olha a humana condição, mede-se com o
tempo, preocupa-se com a morte, pinta o gosto e o sabor da vida, integra a
paisagem. Sempre numa situação de natural equilíbrio, em que a liberdade de ser
se completa com a liberdade de criar, com a demanda da palavra mais certa, mais
laboriosamente escolhida para valorizar o dizer.
E, a propósito deste dizer, não pode passar ao lado o
Alentejo, molde certeiro e cadinho em que o poeta se amalgamou, dando
oportunidades a poemas que poderiam – deveriam – integrar qualquer antologia que
sobre o Alentejo se faça. Profundo respeito pelas origens, mais profundo
reconhecimento pelas teias que entretecem o poeta, que assinala raízes,
sublinhando figuras tão importantes como a avó ou a neta, uma e outra motivos
de poema, com afectos materializados na palavra.
Poesia feliz é esta em que José-António Chocolate se
antologia. Para tal concluirmos, bastaria um poema como “Apontamento”, que toma
para motivo algo aparentemente insignificante: dois riscos, sobre a toalha, ao
canto da mesa. E a operação poética constrói-se a partir daí pela decifração do
desenho possível – o lavrar de um arado, num revolver de terra, os gumes a
sulcarem uma vida. E a suma revelação – com este desbravar, confessa o poeta:
“sangra o corpo / e canta-me a alma / o tempo vivido.” Outra forma de
justificar a poesia. Outra maneira de a poesia se afirmar como torno em que o
barro é a vida e a palavra e o oleiro é o poeta.
Trinta anos de palavras que se cantam e que
reconstroem o quadro do poema maior, aquele que surge da oficina feliz, aquele
em que a linha se “entrelaça no bailado da agulha”.
E, para voltar ao início, porque uma antologia é também
o círculo necessário… todos percebemos a razão pela qual Aquilino Ribeiro disse
que esta necessidade de semear palavras era uma sina… Os 30 anos atestam-no e Todos os afectos também. Sigam esta
sina, pois!
[Lido na apresentação pública da obra, em 19 de Maio, ocorrida em Setúbal, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal]
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