quarta-feira, 19 de março de 2008

Matemática em boa conta...

Há uns tempos, vários “mails” foram gastos para a circulação de uma análise a um suposto exercício aritmético mal resolvido. Transcrevo, com o atraso necessário, essa história. Perante a soma resolvida de “6+7=18”, o autor da anedota escrevia, quanto ao item “Análise”: “A grafia do número seis está absolutamente correcta; o mesmo se pode concluir quanto ao número sete; o sinal operacional + indica-nos, correctamente, que se trata de uma adição; quanto ao resultado, verifica-se que o primeiro algarismo (1) está correctamente escrito e corresponde ao primeiro algarismo da soma pedida; o segundo algarismo pode muito bem ser entendido como um três escrito simetricamente – repare-se na simetria, considerando-se um eixo vertical! Assim, o aluno enriqueceu o exercício recorrendo a outros conhecimentos... a sua intenção era, portanto, boa.” O texto continuava com o segundo item, designado como “avaliação” [que o executor da operação obteria]: “Do conjunto de considerações tecidas nesta análise, podemos concluir que: a atitude do aluno foi positiva, ele tentou; os procedimentos estão correctamente encadeados, os elementos estão dispostos pela ordem precisa; nos conceitos, só se enganou (?) num dos seis elementos que formam o exercício, o que é perfeitamente negligenciável; na verdade, o aluno acrescentou uma mais-valia ao exercício ao trazer para a proposta de resolução outros conceitos estudados – as simetrias... –, realçando as conexões matemáticas que sempre coexistem em qualquer exercício... Em consequência, podemos atribuir-lhe um EXCELENTE e afirmar que o aluno... PROGRIDE ADEQUADAMENTE!!!”
Obviamente, esta história não vale mais do que o ser uma boa caricatura de muitas teorias que minaram a educação, um bom exagero do “eduquês” e da sua aplicação. Mas, enquanto caricatura – é para isso que ela existe –, cada leitor percebe perfeitamente o que se quer dizer e o que se pretende veicular…
Vem isto a propósito do tema que José Manuel Fernandes trouxe para o editorial do Público de hoje: a questão da Matemática e de uma anunciada “revolução” no seu ensino na América. Não sendo professor da área, reconheço que, enquanto aluno, me deixei levar, muitas vezes, pelo fascínio da Matemática e ainda hoje não compreendo que os jovens (e muitos colegas) olhem a Matemática como algo tenebroso e medonho. Tenho tentado provar aos meus alunos que o estudo da Matemática e da língua são contributos essenciais para o quotidiano, assim como lhes tenho dito que não alinho na versão pirata de que… quem é bom em línguas não é bom em Matemática, ideia muito apregoada, infelizmente. Aliás, a comprovar o contrário deste aforismo bacoco está o facto, por estes dias divulgado, da jovem que foi premiada nas Olimpíadas de Matemática e que já tinha sido premiada, no ano passado, no concurso de língua portuguesa que o Expresso tem promovido…
Transcrevo, então, a parte que me interessa do editorial do Público: «Em Setembro de 2004, estava eu de férias, ia-me dando um colapso quando olhei para a manchete do PÚBLICO (honestamente, devo confessar que não foi a primeira nem a última vez, mesmo sem estar de férias). Cito de memória o título: "Sócrates ganha PS com mais de dois terços dos votos"; e o texto: "Sócrates deverá ter recolhido mais de 75 por cento dos votos..."
Sucede que dois terços corresponde a 66,6 por cento, enquanto 75 por cento é igual a três quartos. Esta evidência não chocou muitos dos meus colegas quando, logo na segunda-feira seguinte, regressei ao trabalho. A maioria não tinha dado pelo erro. De resto, julgo que nem um só leitor protestou. E isso deixou-me desesperado: não ter a mínima ideia do valor real de uma fracção, ou de uma percentagem, afligiu-me. Mas a verdade é que pouco podia fazer a não ser recomendar que se utilizassem títulos mais fáceis de entender. Como, por exemplo, "Mais de três em cada quatro militantes do PS escolheram Sócrates". Num país de tão dramática iliteracia aritmética (já nem falo de iliteracia matemática...), assim ao menos far-nos-íamos entender.
Conto este episódio porque ontem me chamaram a atenção para um documento que, espero, já deve estar entre os papéis que Maria de Lurdes Rodrigues meteu na mala para ir lendo nos seus (eventuais) tempos livres destas férias: o relatório sobre o ensino da Matemática que os melhores especialistas dos Estados Unidos entregaram, no passado dia 13, ao departamento federal de Educação. Lá, como cá, a iliteracia matemática é um problema nacional. Só que lá entregaram a um painel de excepcional qualidade (os documentos podem ser consultados em
www.ed.gov) a análise do problema e a formulação de sugestões.
Os documentos são demasiado ricos para serem sintetizados neste espaço, mas devo dizer que não pude deixar de recordar o episódio atrás relatado quando, entre as conclusões síntese, li a seguinte frase: "O conhecimento de fracções é a mais importante competência que não se encontra devidamente desenvolvida entre os estudantes americanos" (e os jornalistas portugueses, acrescentaria eu).
Só que, para além de saberem lidar com fracções, e entenderem intuitivamente a que correspondem, o painel considerou fundamental que os estudantes americanos de Matemática deviam ter um conjunto de competências solidificadas de acordo com o grau de ensino, evitando regressar, e regressar, a conceitos básicos ano após ano; que a aritmética simples (como a malfadada tabuada) devia ser decorada, por forma a que existisse uma memória "viva" que os ajudasse a resolver problemas mais complexos; nenhum estudante deve terminar o oitavo ano sem ter aprendido os conceitos fundamentais da álgebra, saber resolver equações lineares e quadráticas, funções, polinómios, cálculo combinatório e de probabilidades.
Ou seja: acabe-se com as facilidades e regressemos ao essencial. De nada serve ter um computador ou uma máquina calculadora sofisticada à mão se não soubermos raciocinar. E nunca conseguiremos raciocinar se não compreendermos, sem um milésimo de segundo de hesitação, que dois terços e 75 por cento correspondem a valores diferentes. (…)
E o pior é que somos capazes de acabar a preferir a máquina calculadora à tabuada, na ilusão de que podemos inventar uma roda melhor do que a roda...
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Obviamente, concordo e aplaudo. Mesmo porque é preciso ressuscitar a ideia de que a memória tem um papel fundamental e não faz adoecer quem a pratica. Traumático será ficar-se com a memória de que nos ensinaram a não memorizar nada!...

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