quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Há 93 anos, em 1 de Agosto de 1914

"1 de Agosto de 1914 – Abro este bloco. Vai ser um diário? Temo-o e espero-o. Temo, porque, no fim de contas – como dizia o velho capelão de Saint-Cyr, de venerável memória – o que é a guerra?... um pouco de glória, muito sangue, honra e lágrimas; mas também o espero, porque a atmosfera está irrespirável. É preciso acabar com este pesadelo alemão…
Esta manhã fui acordado por um impedido que me informou que o coronel pedia a presença de todos os oficiais no quartel com urgência. No caminho, ouvi os rumores mais ou menos sensacionalistas: o assassinato de Jaurès, a revolução em Paris… e que mais sei eu?
Enfim, chego. Os rostos estão graves, os olhares silenciosos. Numa linguagem velada, mas que não engana ninguém, o nosso coronel faz-nos sentir que a hora decisiva, esperada por todos desde há meio século, tinha chegado.
Estas palavras foram ouvidas num silêncio comovido. Os quadros pendurados nas paredes do nosso salão nobre pareciam voltar gravemente os seus olhos de retrato para o nosso chefe. Evocando as guerras napoleónicas para a maior parte dos antigos combatentes, em tempo de paz, pareciam recolher-se nas suas recordações longínquas e distanciar-se de nós, os novos, que não tínhamos sabido repetir a sua glória. Mas hoje, que íamos dar continuidade à sua raça, eles consentiam tomar contacto connosco pela primeira vez, dizendo-nos com o poeta: Fils, j’ai cent mille coeurs qui t’aiment dans le mien!
Esta tarde, pelas quatro e meia, ao sair do gabinete, fui interpelado por um ciclista, que, pedalando, me atirou estas palavras: Já aí está!… É um amigo que me anuncia a mobilização.
Corro rápido para Condé, bairro do meu regimento, cuja entrada está obstruída por uma multidão que ali acorre em busca de novidades. Além disso, hoje é sábado, dia de mercado, e muitos camponeses vieram abraçar os seus filhos pela última vez. É comovente… toda esta gente está recolhida e triste. Um velho, com as suas condecorações, mantém-se silencioso junto de sua mulher e do filho, sargento. Os três retêm uma lágrima ao longo das pálpebras. Ao longe, são os chamamentos de clarim. Toda a cidade está na grande rua Moyenne, e cada qual fala ao vizinho em voz baixa.
Corro à Câmara Municipal para ler a proclamação do governo: 'Nesta altura, não há partidos; há apenas a França eterna!' Bravo! E viva a França que não morre!...
Encontro minha mulher e a primeira frase que ela pronuncia é: 'como estás contente!' Era verdade, estava mesmo, apesar de tudo.
Fomos juntos à estação para obter informações. Pelo caminho, encontrei mulheres lavadas em lágrimas. Voltando os olhos para as filas de casas, vi casais abraçando-se no meio de soluços. Vou comprar tabaco e a vendedora diz-me entre dentes: 'Ó senhor, guarde-os, guarde-os… que não há mais nenhum!'
Sim, é mesmo um diário que abro nesta tarde. O Governo informou que a mobilização não é a guerra, e isso não pode enganar ninguém. Quarenta e quatro anos de silêncio, de humilhação, de aprisionamento… Não, isto não podia durar mais tempo.
"
Este texto constitui o início da obra Journal de campagne d’un Officier de ligne, assinada por Capitaine Rimbault (Paris: Librairie Militaire Berger-Levrault, 1916), e relembra o que se passou há 93 anos em França e, depois, no mundo: a Grande Guerra, mais tarde conhecida por Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Rimbault, da região da Lorena (que estava sob domínio alemão desde 1870), acreditava que aquele era, finalmente, o momento da libertação. Muitos outros acreditaram que essa libertação ia ser rápida. Mas os dias passaram. E os meses também. Vários Natais foram vividos na trincheira. E a guerra só acabou mais de quatro anos volvidos sobre este escrito de Rimbault, com o Armistício, em 11 de Novembro de 1918, depois de um caminho percorrido com muita destruição, muitas mortes, muito sofrimento. Em 1915, o jornalista Garibaldi Falcão (n. Fundão, 1864), publicava já a História Ilustrada da Grande Guerra (que, só nesse ano, chegou ao 6º volume, num total de 1200 páginas), registando: “Nos primeiros dias de Agosto de 1914, a Europa passou de súbito da glacial antecâmara dos políticos para a ardente arena da guerra.” A este inferno de fogo e de dor não estiveram alheios os portugueses, que, no final de Janeiro de 1917, começaram a partir para a Flandres, para a região do Lys, onde, em Abril seguinte, teriam o seu sacrifício. A participação portuguesa dividiu-se pela Europa (na Flandres) e pela África (em Angola e Moçambique). A mobilização atingiu, no nosso país, os 80 mil homens para as três frentes; no final, os mortos, feridos e prisioneiros cifraram-se em 30 mil.
[A primeira fotografia reproduz a capa do livro de Rimbault; a segunda mostra o decreto para a mobilização assinado por Poincaré.]

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