terça-feira, 18 de novembro de 2014

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (1)



A obra Grandes Entrevistas da História, que o semanário Expresso começou a publicar no início de Novembro e que é constituída por sete volumes, torna-se interessante a vários títulos: pelo período histórico abrangido (desde 1865), pelos testemunhos que traz até ao leitor de hoje, por se poder assistir ao que foi a história do género jornalístico que é a entrevista, por entrarmos na esfera de convivência de diversas personalidades hoje consideradas referências para a Humanidade, por não faltarem alguns nomes representativos portugueses (seja como entrevistados, seja como entrevistadores). Para lá do que cada entrevista possa transmitir como mensagem, o leitor é levado a abordá-las diacronicamente e na sua relação com a História, uma vez que todas são antecedidas de um texto introdutório, que contextualiza o momento da entrevista e os antecedentes relativos ao entrevistado, e de um epílogo, que informa sobre o que foi o futuro dessas mesmas personagens ou sobre as consequências do que foi dito na entrevista.
É assim que, no primeiro volume, apanhando o período entre 1865 e 1899, convivemos com as ideias de Abraham Lincoln (Goldwin Smith, Macmillan’s Magazine, 07-02-1865), Karl Marx (R. Landor, The New York World, 18-07-1871), D. Pedro II (pelo correspondente do The New York Herald, 1871), Louis Pasteur (D’Alberty, em M. Pasteur & la Rage, 1882), Theodore Roosevelt (pelo correspondente do The Pall Mall Gazette, 09-12-1886), Thomas Edison (R. H. Sherard, The Pall Mall Gazette, 19-08-1889), Mark Twain (Rudyard Kipling, From Sea to Sea, 1889), Papa Leão XIII (Séverine, Le Figaro, 03-08-1892) e Nikola Tesla (S. E. Solly, The New York Herald, 12-11-1899).
Parte significativa destas entrevistas impressiona pela imagem que os entrevistados deixam nos entrevistadores, constituindo o corpo dessas entrevistas pouco mais do que isso mesmo – o autor do texto vai partilhando algumas respostas, mais excertos de conversa do que entrevista como a concebemos hoje, e vai construindo o retrato do entrevistado.
Por este palco passam políticos e dirigentes como Lincoln, Marx, D. Pedro II, Roosevelt e o Papa Leão XIII, sempre advindo deles uma imagem forte. É assim que Smith conclui o seu texto sobre o presidente Lincoln dizendo: “Poderá ou não ser um grande homem, mas, pelo menos, é um homem honesto e responsável. A sua reeleição era desejável, não só pelo bem do seu país, mas também pela paz no mundo. Já na entrevista a Marx, assinada por Landor, efectuada quando o filósofo era líder da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores) e quando estava candente a questão da Comuna de Paris, nos passa a imagem de um chefe em posição confortável que impressiona fortemente o entrevistador, levando-o a deixar uma leitura para o mundo – “Expus aqui, tanto quanto a minha memória mo permitiu, os momentos mais importantes da minha conversa com este homem notável. Deixarei que o leitor tire as suas próprias conclusões. Por muito que se possa dizer a favor ou contra a possibilidade da sua participação no movimento da Comuna, podemos ter a certeza de que a Associação Internacional é um novo poder no seio do mundo civilizado com o qual este muito em breve terá de ajustar contas, para o bem ou para o mal.” Mais parca em ideias sobre o entrevistado é a intervenção do correspondente do The New York Herald quando entrevista D. Pedro II – a conversa é frugal, quase de acaso, e, mesmo assim, o jornalista disponibiliza-se para submeter ao secretário régio o texto a redigir, visando algumas correcções; todavia, o imperador, que estava em passeio pelo Egipto, rejeita a oferta e argumenta: “Toda a minha vida foi uma constante entrevista e, consequentemente, nunca digo nada que não deseje que se torne público.” Roosevelt apresenta-se como um forte ganhador, analisando criteriosamente a política e afirmando: “Nós, os norte-americanos, somos demasiado empreendedores para aceitar restrições”. Leão XIII, o primeiro Papa entrevistado por uma mulher que se deixa deslumbrar pelo Vaticano, marca pela sua análise do que é a igreja e pelo destino que sente, enquanto chefe católico, de conduzir o seu povo para um caminho de “doçura e fraternidade”. A entrevista surge como uma voz em prol da doutrina social da Igreja. Conte-se o tempo decorrido entre 1892 e 2014, ano em que um Papa voltou a ser entrevistado por outra mulher…
Na área da ciência e dos inventos, a presença é a de Pasteur, Edison e Tesla. De Louis Pasteur, então na apoteose da carreira, a ideia que ressalta é a da visita do jornalista ao laboratório onde o investigador pesquisava a vacina para a raiva, momento em que o entrevistador comenta, depois de assemelhar um galo a uma coruja, de confrontar as reacções de uma ovelha com as de um macaco: “Era uma cena impressionante. (…) Se os animais pudessem partilhar o que pensam, como gostaria de compreender a sua linguagem. Que entrevista fascinante não faria aos hóspedes do Sr. Pasteur!” Edison é apresentado como um inventor, de cuja conversa não está ausente a animosidade com Tesla, antevisionando um futuro em que “fábricas enormes funcionam dia e noite”, numa “luta do homem contra o metal”. Nikola Tesla é o centro de uma entrevista que gira em torno de um laboratório, de uma estação experimental; por isso, a primazia dada pelo autor da peça jornalística vai para a descrição do espaço e de toda a maravilha com que se confronta, muito mais do que para a conversa. O que estava em causa no momento era a possibilidade de serem transmitidas mensagens para qualquer parte do mundo.
Finalmente, um homem das artes, o autor de aventuras protagonizadas por Huckleberry Finn e por Tom Sawyer. Mark Twain, escritor entrevistado por outro escritor, Kipling, fala da sua obra, enfatizando o herói Sawyer – “Ele é todos os meninos que conheci ou recordo” – e da presença autobiográfica na literatura, no romance, concluindo a sua entrevista com um discurso sobre a leitura de ciência e sobre uma abordagem dos factos que justificava a própria literatura – “Primeiro pegamos nos factos, e depois podemos distorcê-los à vontade”.
O segundo volume abrange o período temporal entre 1900 e 1930, com entrevistas a Júlio Verne (Gordon Jones, Temple Bar, Junho de 1904), Harry Houdini (Edha Ferber, Appleton Crescent, 23-07-1904), Guglielmo Marconi (Kate Carew, New York Tribune, 14-04-1912), Sacadura Cabral e Gago Coutinho (Thomaz Ribeiro Colaço, O Dia, 07-06-1922), Marie Curie (Marie Mattingly Meloney, no livro Pierre Curie, 1923), Benito Mussolini (António Ferro, A Capital, 02-12-1923), Charles Lindbergh (Carlyle MacDonald, The New York Times, 22-05-1927), Georges Clemenceau (George Sylvester Viereck, Liberty, 07-07-1928), Henry Ford (M. K. Wisehart, Modern Mechanics, Dezembro de 1929) e Sigmund Freud (George Sylvester Viereck, em Glimpses of the Great, 1930).
Lemos a entrevista com Júlio Verne, feita um ano antes da sua morte, e percebe-se o porquê de este continuar a ser um autor de eleição, pelos mundos que imaginou ou que antecipou, chegando mesmo a confessar, em jeito de explicação e sem pretensão de superioridade: “O máximo que posso dizer é que talvez tenha olhado um pouco mais além no futuro do que a maioria daqueles que me criticaram”. Depois, a entrevista é ainda rica pelo respeito e admiração que consagra aos outros, seja quando fala de autores já desaparecidos, como Dickens, seja quando aprecia obras de seus contemporâneos, como H. G. Wells. Ainda no domínio das artes, é-nos dado seguir alguns passos do ilusionista Harry Houdini, que impressiona a entrevistadora pela maneira como não explica os seus truques ou pela forma como se refere à sua família, particularmente aos pais – “nestes dias de vertigem e loucura e frequente falta de respeito para com os mais velhos, é agradável ouvir estas palavras da boca de um filho”, escrevia a jornalista nesse 1904.
No domínio da ciência, Marconi é o primeiro conversador deste volume, desenrolando-se a entrevista com fluência e com o registo caricato da presença intimidatória do secretário do cientista, que desespera por não conseguir controlar a duração da conversa. No ramo da ciência, há ainda lugar para uma entrevista a Marie Curie, que deixa que perpasse o seu papel de investigadora, mas também o do contributo que a ciência tem de dar para uma causa humanitária, veiculando a mensagem de que os recursos de que o mundo dispõe são de todos os que o habitam. A secção da ciência fecha com Freud, à data o patrono da psicologia, que chega a ser comparado com outro grande mestre da ciência: “Freud representa para a psicologia o que Galileu representou para a astronomia.” E Freud fala das correntes, das divergências e da sua paixão do momento: “Felizmente, as plantas não têm temperamento ou complexidades. Adoro as minhas flores. E não me sinto infeliz. Pelo menos, não mais do que os outros."
À política chega o leitor pelas palavras de Mussolini, entrevistado pelo português António Ferro, que se deixa fascinar pelo chefe italiano, inclusive com a oferta que este lhe faz de uma sua fotografia autografada. Surpreende o pendor rigoroso do entrevistado, quase contando ao pormenor o tempo disponível por achar que não tempo a perder: “O deputado, que se limita a repetir o que os jornais já me disseram, só me faz perder tempo”, dirá. Outro nome da esfera da política é o de Georges Clemenceau, em entrevista no ano anterior à sua morte, de 1928. Perguntado sobre o estado geral do mundo e da França, responde, recorrendo ao seu saber e ao que vira até uma década antes: “As condições serão satisfatórias enquanto na Europa continental se mantiver o actual equilíbrio de forças. Se esse equilíbrio for alterado por um renascimento do imperialismo  alemão, a Europa ver-se-á mergulhada noutra contenda generalizada.” Clemenceau não chegou a esse patamar, mas sabia o porquê de o estar a dizer…”.
Noutro grupo está Henry Ford, o homem  que ligou a sua memória ao automóvel e à descoberta de regras para cidades e para práticas do seu tempo. O seu visionarismo torna-se extraordinário, chegando a idealizar: “Provavelmente, no futuro, o aquecimento nas cidades norte-americanas será eléctrico. Ou seja,  as nossas casas terão de ser construídas de uma forma diferente, melhor. Temos de descobrir qual é a melhor forma de as isolar. Desse modo, serão mais frescas no verão e com um aquecimento mais uniforme no inverno.”
Da área da navegação aérea e dos feitos grandiosos são os entrevistados Sacadura Cabral e Gago Coutinho, especialmente o primeiro, já que o segundo, estando presente, só intervém ocasionalmente. Interessante o pormenor de Sacadura Cabral ter lido a entrevista previamente e lhe ter acrescentado, por seu punho, muita informação, sobretudo no respeitante a pormenores da travessia do Atlântico Sul. O registo da conversa não perde em humor, tendo o jornalista comentado, quando Sacadura Cabral lamentou uma menor graça nesta travessia por a viagem não ter usado apenas um avião mas sim três: “Se um globe-trotter desse a volta ao mundo mudando dez vezes de botas, não deixaria por isso de dar a volta ao mundo. E se conservasse sempre o mesmo calçado, metade da admiração iria para as botas…” O outro viajante é Charles Lindbergh, o piloto que fez a primeira viagem sem escalas entre Nova Iorque e Paris, cujos receios quase minimizou: “Na verdade, pilotar um bom avião não exige nem de perto a atenção que é necessária para conduzir um automóvel. Saí de Nova Iorque com quatro sanduíches. Só comi uma e meia durante a travessia e bebi um pouco de água. Não creio que tivesse tido tempo de comer mais nada, porque fiquei surpreendido ao dar-me conta de quão curta é a distância entre Nova Iorque e a Europa.”
O que se nota no leque dos dez entrevistados das três primeiras décadas do século XX é que todos eles acompanham a vertigem do tempo em que se situavam. Homens e mulheres do seu tempo, sem dúvida, todos nos ajudando a perceber esse mesmo tempo.

Sublinhados
Alianças – “As alianças internacionais não acabam com as rivalidades internacionais.” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 92]
Autobiografia – “Uma autobiografia [é] a única obra na qual um homem, mesmo contra a sua vontade e apesar de tentar denodadamente fazer o contrário, se revela ao mundo tal como é na realidade. (…) Mas nuna autobiografia autêntica é impossível que um homem conte a verdade sobre si mesmo, assim como é impossível que consiga impedir que o leitor perceba essa verdade.” [Mark Twain. Entrevista a Rudyard Kipling, em From Sea to Sea (1923). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 86-87]
Citações – “Provavelmente, algumas das melhores frases atribuídas aos grandes homens nunca foram proferidas, pelo menos por eles. A imaginação do mundo inventa a palavra certa quando a imaginação falha ao herói.” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 95]
Homem – “O homem jamais será suplantado por algo que seja inferior a ele. E não há nada à face da Terra que seja superior ao ser humano. Partindo do princípio de que a mais alta manifestação da vida no nosso planeta será sempre o ser humano e dado que os humanos parecem ser seres progressivos, deduz-se que a nossa raça continuará indefinidamente, a menos que uma catástrofe de dimensões cósmicas a varra do planeta. O homem superará o seu nível evolutivo actual. Por acaso não é o homem de hoje sobre-humano em comparação com o homem primitivo?” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 102]
Igreja – “A tarefa da Igreja é doçura e fraternidade. Deve aproximar-se do que está errado, esforçar-se por erradica-lo, mas qualquer tipo de violência contra as pessoas é contrário à vontade de Deus, aos seus ensinamentos.” [Leão XIII. Entrevista a Séverine, em Le Figaro (03.Agosto.1892). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 102]
Popular – “A popularização conduz a uma aceitação superficial sem levar a uma investigação séria. As pessoas limitam-se a repetir frases que ouvem no teatro ou na imprensa.” [Sigmund Freud. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Glimpses of the Great (1930). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 129]
Trabalho – “Se eu tivesse um trabalho demasiado pesado para mim, esforçar-me-ia para descobrir uma forma de o tornar mais fácil. Uma tentativa séria de tornar menos pesado um determinado trabalho é o impulso inicial para criar alguma coisa. Quem o fizer, construirá o seu futuro com base numa descoberta de que o mundo necessita.” [Henry Ford. Entrevista a M. K. Wisehart, em Modern Mechanics (Dezembro.1929). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 112]
Vida – “Quando uma pessoa se detém a pensar, a religião, a formação e a educação não são garantia de nada perante a força das circunstâncias que movem o homem.” [Mark Twain. Entrevista a Rudyard Kipling, em From Sea to Sea (1923). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 86]

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