Sabino nasceu em 29 de Fevereiro de 1892, em Lisboa, e à data foi associado algum espírito de maldição. O trajecto de Sabino, Casimiro Sabino, lisboeta de Alfama, personagem complexa, ocupa a história de Arame farpado – As peripécias de um soldado republicano, de Nuno Gomes Garcia (Corroios: Edi 9, 2011).
O subtítulo ajuda a desvendar algumas marcas da história, sobretudo a da condição militar e a do momento histórico, contextos que se estendem pelos vinte capítulos, com o leitor a acompanhar a personagem até Janeiro de 1926, data em que o narrador conclui a sua história, quando se sente “perdido na quietude gelada do manto branco que cobre as estepes da Ásia”.
É uma história construída sobre analepses, outros tantos momentos de memórias, conjugadas com momentos históricos com os quais a vida da personagem se cruzou – o regicídio em Lisboa, a barricada na Rotunda, o 5 de Outubro, as incursões couceiristas em Trás-os-Montes, o ataque alemão ao posto moçambicano de Maziúa, a preparação do Corpo Expedicionário Português em Tancos, a participação portuguesa na Flandres e a batalha de La Lys. Estes momentos dão-nos, de resto, a geografia em que a história decorre – entre Lisboa, Vinhais, Moçambique, Brest, Flandres.
O tempo preponderante é o das trincheiras na Flandres (com episódios da vida na trincheira bem reconstruídos), que ocupa metade dos capítulos da história, surgindo todos eles intervalados pelos capítulos que evocam outros momentos da história da personagem, num trajecto de reconstrução da memória de Sabino, um misto de soldado e de crítico, sempre sentindo a maldição sobre si, gostando de viver no caos, construindo o seu próprio caos, determinado pela procura dos sítios e dos momentos de maior desagregação (“Desde cedo, compreendi a ligação umbilical entre a república e o caos. A república precisava do caos, por isso, eu necessitava da república.”).
O percurso de Sabino, revolucionário, degredado, desertor, vendedor ambulante de livros, leitor, trabalhador na morgue, soldado, solitário, permanentemente preocupado em guardar o seu segredo (ainda que escrevendo-o), constrói-se no encontro com outras personagens, algumas delas figuras da história portuguesa da época (Machado dos Santos, general Tamagnini ou Aníbal Milhais, o famoso soldado “Milhões”, entre outros) e sobre uma linguagem crítica, fortemente irónica (“Os guerreiros portugueses lá se arrebanhavam nas valas, mascarados de ovelhas em plena véspera de natal, tal qual figurantes de um aberrante presépio.”; “os ingleses não conseguiam tolerar a pontualíssima meia hora de atraso lusitana.”) e sarcástica, muitas vezes (“Ninguém nos sabia dizer se o Manelinho tinha ido ou não ao encontro do seu augusto paizinho. Mal por mal, o reizinho, doravante, já saberia como é difícil viver numa casa sem teto.”, observação referente ao momento em que, tendo sido bombardeado o palácio das Necessidades, se ignorava o destino de D. Manuel).
Acompanhar Sabino no período de uma década (entre 1908 e 1918) é testemunhar o absurdo de uma personagem que esmaga os sentimentos dos outros e corre em busca de uma normalidade que não encontra, transformando-se num símbolo de crise.
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Paraíso – “O paraíso é efémero e tende, tal como aconteceu na génese da humanidade, a terminar abruptamente.”
Esperança – “A esperança infundada é a grande responsável pelos maiores logros e desastres.”
Aparência – “Uma gravata é o melhor meio de queimar etapas no sentido de uma vertiginosa ascensão social.”
Espera – “Todas as esperas são dolorosas.”
Tempo – “Talvez não haja nada mais longo no tempo do que a perpetuidade.”
Justiça – “A justiça e a paridade não são luxos, são direitos universais.”
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