quinta-feira, 24 de novembro de 2011

No centenário da morte do Calafate, o seu busto

"O Rotary Clube de Setúbal vai oferecer à cidade um busto do poeta Calafate - Com o propósito de homenagear o poeta setubalense António Maria Eusébio, o popular Calafate, o Rotary Clube de Setúbal vai oferecer à cidade um busto do referido poeta, tendo o Município escolhido o Largo da Fonte Nova para a localização do citado busto". Esta era uma notícia de primeira página saída a público na edição do jornal local O Setubalense, em 10 de Fevereiro de 1968. Não havia ainda a indicação de data para a cerimónia e o conteúdo da informação ficava-se por aquelas escassas e curtas linhas.
Já por várias vezes em terra sadina fora publicamente manifestada a intenção de enaltecer a figura do Calafate, gravando-a em monumento. O chamado "Cantador de Setúbal", apesar de analfabeto para as estatísticas, foi um óptimo relator da vida do século XIX, que lhe passou pelo verso. O rigor das datas do seu nascimento e falecimento foi estabelecido por Carlos Dinis Cosme em artigo publicado na segunda edição da revista Património (Setúbal, 1984), tendo-se ficado a saber que António Maria Eusébio nascera em 15 de Dezembro de 1819, falecendo "de morte natural" em 22 de Novembro de 1911, cerca de dez meses após o passamento da esposa.
Vários vultos da cultura portuguesa lhe prestaram homenagem. Em 1901, Guerra Junqueiro revelou toda a sua emoção ao prefaciar os versos do Calafate, escrevendo: "Não sabendo ler nem escrever, és um grande poeta, meu ignorante e ignorado cantador de Setúbal." Afonso Lopes Vieira chamou-lhe "descendente dos troveiros góticos". Em 1902, sob a direcção de Paulino de Oliveira, foi publicado um conjunto de textos sob o título Homenagem ao Cantador de Setúbal, contendo escritos de Ana de Castro Osório, Guerra Junqueiro, Manuel Maria Portela, Arronches Junqueiro e João de Deus, entre outros. Fran Paxeco, ao recordar a figura do Calafate, descrevia-o em 1930 da seguinte forma: "Era uma excelente criatura. Arrastava-se, num passo tardo, pelas ruas e vielas do burgo. Entrava nas tascas, mas não bebia. De rosto calmo, faces emaciadas, sofredoras, nada nos indicava a veia do repentista ou do satírico."
Calafate de ofício nos estaleiros dos Mestres António José Taborda e Catalão, nasceu na Rua dos Marmelinhos, actualmente designada Rua António Maria Eusébio em sua lembrança. De memória prodigiosa, fixava os seus versos, que depois ditava para serem escritos. Animava a adega do Paulino cantando seus poemas, acompanhado à viola por Josué Costa Ferreira e à guitarra por Francisco Casimiro de Jesus, conhecido pela alcunha de "Carga de Ossos", seu compadre. De acordo com relato de Manuel Envia, o trio foi ainda actuar "a Calhariz a convite dos senhores Duques de Palmela e perante uma assistência selecta e fidalga".
A mais recente edição dos textos de Calafate, Versos do Cantador de Setúbal (publicada entre1985 e 2008), foi prefaciada por Rogério Peres Claro, que, em longo estudo, revela que "os papéis do Calafate são quase todos dos últimos dez anos da sua longa vida de nonagenário". Os textos eram ditados para a impressão e vendidos através de amigos "que assim o ajudavam, que ele assim o queria para não se tornar pesado ao filho, com quem então vivia".
A partir do momento em que, em 1968, o jornal O Setubalense anunciou a intenção do Rotary Clube de Setúbal, algumas crónicas versaram durante esse ano a questão do monumento a Calafate. Na edição do mesmo jornal de 3 de Junho, Santos Silva, que com o poeta convivera na Irmandade do Santíssimo da Matriz, sugeria que o monumento deveria ser colocado no Largo Teófilo Braga, porque, "depois de Guerra Junqueiro, foi Teófilo Braga quem mais se deleitou com a leitura dos versos do poeta cantador e quem mais o distinguiu", além de que, ligada a esse largo, estava a rua onde "o Poeta viu a luz do dia". No entanto, em Outubro, na edição do dia 19, O Setubalense informava, ainda na primeira página, que o busto ia ser colocado no Parque do Bonfim, "local mais adequado, por oferecer melhor enquadramento estético". Posteriormente, seria anunciada a data natalícia do poeta para a inauguração do monumento, mas a cerimónia só viria a acontecer em 29 de Dezembro de 1968.
A edição de O Setubalense do último dia desse ano noticiava o evento e evocava Calafate, revelando: "ao que parece, nos últimos anos da sua existência, conseguiu aprender a ler à força de ler e fixar os nomes das ruas da sua cidade", o que levou o repórter a concluir que se estava "perante um dos casos mais extraordinários da aprendizagem da leitura pelo chamado método globalístico". A inauguração do monumento, da autoria do arquitecto Castro Lobo, teve a presença do substituto do Governador Civil e dos Presidentes da Câmara de Setúbal (Constantino de Goes), da Junta Distrital (Eduardo Costa Albarran) e da Comissão Distrital da União Nacional (Manuel Seabra Carqueijeiro), além de "numerosos rotários" e de familiares de Calafate como o bisneto Peres Claro e a sobrinha Luísa Claro Braga, tendo esta última procedido ao descerrar do monumento.
A obra mantém-se na zona central do Parque do Bonfim, a evocar o homem e o poeta. Pelos seus versos passaram, em simultâneo, a filosofia que explica a vida e a sátira que a vida merece, como bem se pode ver na décima que se reproduz: "Já vi varões sem firmeza, / fidalgos sem fidalguia, / senhores sem senhoria / e morgados sem riqueza. / Já vi pobres sem pobreza, / mestre sem ter aprendiz, / taberneiro sem ter giz, / soldado sem ter capote. / Mas padre andar de chicote / só ao prior da matriz." Verdades profundas da sociedade nos oito primeiros versos e chiste nos dois versos derradeiros, que se referem, segundo Fran Paxeco, a um padre de Alcácer que o poeta "vira, de vergasta na mão, num dia de feira".
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O centenário da morte de António Maria Eusébio, o "Calafate", passou anteontem, data em que, na Biblioteca Municipal de Setúbal, foi inaugurada a exposição bibliográfica "António Maria Eusébio: o Calafate entre a Monarquia e a República", que ali poderá ser vista até 17 de Dezembro. Entretanto, também a agenda editada pela Câmara Municipal de Setúbal, Guia de Eventos, deste mês (nº 80), dedicou três páginas ao poeta.

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