domingo, 26 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto VI

* “Para conheceres as melhores mentiras de um país ou de um homem terás que te sentar longamente ao pé dele. Ninguém mente aos gritos, de longe.” (est. 2)
* “Não se aprende a ser sábio como se aprende a resolver uma equação. Nas duas aprendizagens exige-se atenção total, é certo, mas há no caminho para a sabedoria mais obstáculos, como se algures, deuses de voz rouca tivessem assumido o compromisso de não deixar a filosofia sensata ocupar por completo os homens. E talvez a causa seja puramente egoísta, pois se todos fossem sábios quem precisaria de templos?” (est. 7)
* “O mar não é como o fogo em que uma pequena parcela dá ideia do conjunto: o mar não existe em caixas, não se mantém intacto quando passa para um aquário. O mar não é apenas água salgada, é a sua grandeza que lhe dá o nome.” (est. 18)
* “A coerência de uma coisa, de um objecto ou de uma pessoa, dispensa a inteligência dos outros, dispensa ainda a investigação. (A excitação depende mais daquilo que está escondido do que do visível, toda a gente o sabe.)” (est 22)
* “A Natureza é mais ágil no ataque do que na defesa: constroem-se cidades em cima de florestas, mas debaixo das estradas e dos estabelecimentos comerciais há uma vida animal que persiste e faz ruído.” (est. 24)
* “De entre os vários reinos e géneros animalescos, os mamíferos são de longe os que melhor põem a funcionar a amizade; mas mesmo assim, nessa amizade, surgem avarias constantes.” (est. 31)
* “Se a ligação entre os homens fosse perfeita não teria existido a necessidade de inventar a linguagem. Falar é a maneira mais civilizada de marcar uma distância de segurança; os animais rosnam entre si, os homens elaboram sobre o clima e citam autores clássicos. Mas ambas as acções têm o mesmo efeito.” (est. 32)
* “Há no escutar, que parece acto passivo e pacífico, uma estranha parte activa, que são os olhos. Escuta bem quem tem olhos atentos.” (est. 39)
* “A timidez não é um valor benéfico no campo de batalha. Ou se avança ou se foge muito rápido, hesitações demoradas transformam-se habitualmente na última acção de um soldado.” (est. 46)
* “Cada homem tem, de modo telegráfico, as duas faces: tem medo e mete medo. Um homem unilateralmente corajoso não existe, a não ser que seja unilateralmente pouco inteligente.” (est. 53)
* “O que é contar uma história senão esticar a distância entre a primeira palavra e a última?” (est. 69)
* “O sítio essencial de um corpo é o sítio por onde se começa a morrer ou por onde a doença é inaugurada. Cada morte diz qual o bocado do corpo que afinal deverias ter defendido.” (est. 70)
* “Perigos nunca fizeram adormecer, nem cansadas ficam as pernas que fogem ou perseguem.” (est. 95)
* “No mundo, o sofrimento ensina mais do que cem professores bem-intencionados. (…) Os sofrimentos não são todos da mesma espécie animal: de uns, sais aperfeiçoado, de outros, canino e obediente.” (est. 97)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

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