quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Açores, um arquipélago poético

 


Entre os nascimentos em Ponta Delgada dos micaelenses Gaspar Frutuoso (1522) e Inês Botelho (2004), ambos autores de poemas, passaram cinco séculos. Desse longo período foram respigados 400 poetas pelo jorgense Olegário Paz (n. 1941), amesendados sob o título Os Açores nos versos dos seus poetas (Letras Lavadas Edições, 2020), neste número incluindo 81 “açorianófilos”, os “açorianos de afeição”, recolha que teve origem na partilha semanal de poemas pelo organizador, em missivas para os amigos sob o título “Porque hoje é Sábado”, elaborado ao longo de anos. Os textos, alguns em primeira publicação, provêm maioritariamente de livros de autor e bastantes de publicações colectivas.

A diversidade das ilhas surge por várias vozes, como a do micaelense Raposo de Amaral (1897-1987) - “Em vão o mar retalha em nove cantos, / Nove açafates de verdura e flores, / As nove irmãs no solo e nos encantos, / As ilhas abençoadas dos Açores” - ou a de Henrique Segurado (1930-2021), um dos “açorianófilos” - “Nove ilhas de meio tamanho / Mas de temas tão diferentes, / No mapa são um desenho / No meio de dois continentes.” A ligação ao torrão natal é confessada pelo florense Pedro da Silveira (1922-2003), que, desde Lisboa, proclama: “Estou, Mãe Terra, nas tuas cidades, / nas tuas vilas mortas, / e, mais sobre oeste, / tanto que ali a Europa acaba, / na freguesia onde eu nasci.” Este afecto pelas raízes intensifica-se quando o longe marca a geografia, criando o poeta um rincão interior para o sabor colorido da origem - “Do arco-íris as cores / Quero ir lá cima roubar, / Para as ilhas dos Açores / No meu coração pintar”, escreveu a faialense Fátima Toste (n. 1941) desde Toronto. É pelo dizer da terceirense Bernardete Falcão (n. 1924) que o leitor pode entender que “o sonho do ilhéu / (...) fica suspenso / entre o mar e o céu”, num poema cruzado pelos rastos das gaivotas ou dos navios, por partidas e destinos, celebrados num verso como “Lisboa, Paris, Cidades, o Mundo!...”, um quase eco de Cesário Verde.

A vida, nas suas descobertas, dores, saberes e vivências, passa por muitos dos textos convocados. São reflexões sobre o tempo - “A hora que passa não volta mais”, do faialense Silva Peixoto (1915-2000); sobre a distância - “Veio-nos o exílio / roubar a terra / onde nascemos / e sonhamos morrer”, do terceirense Cunha Ribeiro (1957-1994); sobre o amor - “A paixão não tem limites, / Dura enquanto a vida dura, / Depois que nasce na alma / Só tem fim na sepultura”, do jorgense Gilberto Remador (1916-1993); sobre o campo - “O camponês é o órgão supremo da hierarquia da terra”, do terceirense Santos Barros (1946-1983); sobre a dor - “O coração foi picotado em mil pedaços”, da micaelense Fátima Ribeiro de Medeiros (n. 1950); sobre o ser - “Só hoje sei o ontem que fui e amanhã o que hoje serei”, do micaelense Emmanuel de Sousa (1941-2018); sobre a descoberta do mundo - “Descobrir as coisas / plo cheiro e plo tacto / é a melhor forma / de as libertar / de as percorrer”, da “açorianófila” Ana Inácio (n. 1966).

É uma longa e consistente antologia, em que cada autor fala por um só poema, num percurso pelo tempo e pelas nove ilhas, transitando por geografias e emoções, profissões e costumes, raízes e emigrações. Uma bela e diversificada viagem literária pela tessitura do arquipélago e dos sentires que o fazem!

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 541, 2021-01-20, pg. 10.


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