quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sebastião da Gama e o diário de um professor feliz



Em 11 de Janeiro de 1949, na Escola Veiga Beirão, o metodólogo Virgílio Couto (1901-1972) reuniu com os seus professores estagiários durante uma hora, passando-lhes algumas das suas convicções e princípios profissionais, verdadeiros alicerces da pedagogia e da educação: as aulas deviam ser “um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente”; a partir dessa convivência, “como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando”; finalmente, “aceitar os rapazes como rapazes” e “deixá-los ser”, porque “até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé”. A concluir, uma intenção quanto aos alunos: “o que eu quero principalmente é que vivam felizes.”

Um dos presentes na reunião foi Sebastião da Gama (1924-1952), que decidiu registar estes princípios no início do seu diário, nesse mesmo dia, comentando: “vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”. Estava assim delineado um programa pedagógico bem simples, mas fundamental, que logo conquistou o jovem professor.

Ao longo de cerca de um ano, Sebastião da Gama lidou com os seus 30 alunos, nascidos entre 1933 e 1935, construindo o diário (ideia do metodólogo) como espaço e tempo de reflexão sobre a prática pedagógica, não escamoteando confidências que bem configurariam um quase diário íntimo. Por ali passam princípios que se mantêm válidos e pertinentes nos domínios da pedagogia, da didáctica da literatura, da formação de leitores, da inclusão, da formação cívica, num testemunho “em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne a fazer”.

Em 28 de Janeiro de 1950, relatava o último dia de aulas com a turma e, ao olhar para o percurso feito, lamentava ter “de deixar os moços” - “os rapazes trabalham, interessam-se, disciplinaram-se, e isto foi-se gradualmente acentuando até chegar hoje a um ponto de afinação que era o grande começo que eu ansiava.” A comoção dominou os alunos e o professor, disso dando conta o diarista.

Em 1958, este documento seria publicado sob o título de Diário (Ática), preparado por Hernâni Cidade, que fora professor de Sebastião da Gama. Contudo, a edição completa e anotada desta obra só surgiu em 2011, através da Editorial Presença (como declaração de interesses, registo que preparei esta edição). Entre 1958 e 2011, o livro teve mais doze edições - pela Ática, até à 11ª, em 1999; pelas Edições Arrábida, em 2003 e 2005. Creio ter sido Maria de Lourdes Belchior quem disse que, se esta obra tivesse a assinatura de um autor do mundo anglófono, seria de leitura quase obrigatória em todo o mundo. Contudo, a única tradução da obra que existe é de alguns excertos, em italiano - Frammenti di 'Diário' - Sebastião da Gama e la lingua portoghese, devida a Maria Antonietta Rossi (Viterbo: Sette Città, 2010).

O acesso dos leitores ao Diário do professor azeitonense fica a dever-se também a Joana Luísa da Gama (1923-2014), esposa do autor - depois do estágio, Sebastião da Gama quis oferecer o manuscrito ao metodólogo, mas Joana Luísa opôs-se e disponibilizou-se para copiar o texto, tendo sido essa cópia a ofertada. Se assim não tivesse acontecido, talvez nunca chegássemos a conhecer esta obra, cuja leitura deveria ser indispensável na formação de professores e por todos aqueles que se dedicam à educação, independentemente do grau em que lidam com ela, tal é a sua actualidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 536, 2021-01-13, pg. 14


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