sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Emília e as memórias da conserveira

 


“As mulheres conserveiras protagonizaram uma das páginas mais brilhantes da história de Setúbal.” A afirmação, no ensaio “Indústria conserveira - Mosaico de um futuro anterior” devido a Vanessa Iglésias Amorim, João Pedro Santos e Jaime Pinho, serve de mapa sociológico para o texto dramático A Casa de Emília, de Luísa Monteiro, levado à cena recentemente pelo Teatro Estúdio Fontenova. Os dois textos complementam-se e integram o livro com o título da peça, editado pelo grupo de teatro setubalense.

O trabalho ensaístico parte de entrevistas e de histórias pessoais e percorre o quotidiano das mulheres nas fábricas de conserva, registado nas questões de género, condições de trabalho e retrato social. A participação feminina setubalense na indústria conserveira tem escasso estudo, reduzindo-se, frequentemente, a curto (sub-)capítulo nas publicações sobre o tema, mas, em 2000, foi mostrada em Alguns aspectos da indústria conserveira em Setúbal, trabalho muito apoiado nas entrevistas (34 mulheres em 40 entrevistados), promovido pelo Museu do Trabalho.

A força das operárias, a sua resistência, os abusos perpetrados ou insinuados a que foram sujeitas, o esgotamento físico, a inferioridade na hierarquia, a vida familiar condicionada pela fábrica (mesmo na educação dos filhos, que, desde muito cedo, acompanhavam a mãe, tornando-se também eles operários ou operárias), uma certa segregação social (em que desempenhava papel importante o cheiro do peixe), as diferenças salariais motivadas pelo género, tudo passa pelos testemunhos que permitem a primeira parte do livro e se ilustram na segunda.

A história de Emília (num tempo em que a indústria conserveira sadina já pertence ao passado) conta seis personagens, quatro delas vivendo sob o mesmo tecto. Emília, a conserveira, gere toda a narrativa no que é devido a memória, pondo a nu o que foi a sua vida na fábrica, estatuto que lhe dará o direito de, quase no final da peça, poder dizer à filha, Albertina, que “tudo quanto diz respeito àquilo que conserva, mulheres incluídas, são de grande bem para a humanidade”, uma outra forma de chamar sobre si a responsabilidade de personagem principal.

Pelo discurso de Emília passam os avisos a Albertina, e à neta, Amélia, bem como a autoridade e algum desprezo por Artur, o genro, filho do antigo encarregado da fábrica onde Emília trabalhou e actual amante da nora de João Rodrigues, que tivera uma relação com Emília. Numa curta história, o leitor / espectador acaba por ter presente o quotidiano da geração de Emília numa vida não suficientemente vencida, magoada pelo que foi e pelo que não pôde ser (no trabalho e no amor), dotada de um sofrido conhecimento do ser humano a partir da sua experiência, muito ajudada pelo coro nos pensamentos sobre esse passado; presente também está o tempo de Albertina, mulher de limpezas, aí incluindo um certo varrer do mal, em simultâneo com a protecção da casa; finalmente, os momentos de Amélia, a neta, baloiçando entre amores (de Zeca, ex-namorado, com final infeliz, e de Ruben, personagem apenas aludida), carinhosa para a avó, desprendida desse passado mais antigo. Entre Rodrigues, ex-amante de Emília quando já tinha um compromisso com Aurora, e Artur há uma quase relação em espelho, até chegarem a um encontro combinado no final, em torno da verdade ou da mentira, porque, como Rodrigues diz, há um “sono nebuloso e denso, violento e negro em cada um de nós”.

Luísa Monteiro conseguiu com esta obra aquilo que se propôs: “levar a vida intemporal para o palco, perpetuar as histórias dos outros e levá-las de regresso à pedra de nascença.” E as memórias das mulheres conserveiras saem fortificadas...

* J.R.R., in O Setubalense: nº 510, 2020-11-18, p. 9.


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