quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Helena Marques: a vida, como a ilha, é um cais

 

Sobre o final da sua carreira jornalística no Diário de Notícias, publicou o primeiro romance, O último cais, obra premiada nesse 1992. Até 2010, mais quatro romances e um livro de contos constituíram a obra literária de Helena Marques (1935-2020, falecida há dias), que, na obra inaugural, trouxe um retrato da Madeira (a que estava ligada por razões familiares e por lá ter vivido) e da condição da mulher numa narrativa em que o amor e a morte caminham lado a lado.

O último cais conta uma história balizada entre 4 de Setembro de 1879 e 1904, iniciando-se com uma transcrição do diário de bordo da personagem Marcos, na costa de Moçambique em “fiscalização e repressão do tráfico de escravos” (como Raquel, a esposa, o apresentará mais tarde, ao defender o abolicionismo). O derradeiro capítulo, o décimo-terceiro, tem o título da obra, conjugação que implica um contacto próximo com o mar, com a viagem (real ou metafórica), ajudando na definição do que será viver numa ilha. Oito dos capítulos titulam-se com nomes femininos, cedidos por personagens da história, havendo três que tomam os nomes masculinos de outras tantas personagens, aspectos que valorizam a presença da mulher, por um lado, e o relacionamento entre personagens, por outro - surgindo uma família grande, com figuras modeladas exaustivamente, vincando-se a condição da mulher (na recusa de uma personalidade de Penélope) a partir do contributo de cada uma das personagens femininas do enredo.

Pelo romance passam o quotidiano (a vida nas quintas, as festas, o ambiente familiar, a relação com as criadas, a importância da casa) e as marcas dos tempos (a chegada do telégrafo, o aparecimento do fonógrafo, a presença estrangeira na ilha), a política (a libertação dos escravos em África, o tricentenário camoniano e os republicanos, o sufragismo) e a noção do que é a vida da família, nas suas aproximações e desencontros, “tecendo-se com o amor e a morte”.

As muitas referências literárias participam na definição das ideias e na caracterização das personagens: a garrettiana Maria, de Frei Luís de Sousa, ecoa na jovem Benedita, quando, aos quinze anos, expõe aos pais o seu “raciocinar como uma pessoa mais velha”; a relação amorosa de Maria dos Anjos e Xavier lembra  Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre; Raquel recebeu formação italiana, eternizando o afecto pela Divina Comédia, de Dante; a Bíblia é lida e interpretada criticamente; Luciana cruza-se com a flaubertiana Bovary, que a influencia; João de Deus é enaltecido pelo contributo da Cartilha Maternal; Clara aprende o inglês com as obras de  Lewis Carroll, não esquecendo as aventuras de Alice; o americano John dos Passos entra na história por uma relação familiar, merecendo um comentário irónico pelo seu quase esquecimento das memórias da Madeira; Marcos recorda-se de quando leu Guerra Junqueiro e das discussões sobre anticlericalismo com o cónego Nicolau.

A história, contada um século depois do diário de bordo que abre o livro, exige da narradora, herdeira de Carlota, frequentes recuos na narrativa, conciliadores dos tempos e das personagens. No final, Marcos está no “último cais”, como espectador, à espera da entrada no Paraíso. Assim, O último cais é o itinerário de uma viagem em múltiplos sentidos: no tempo, indo até aos ambientes do final oitocentista; na acção, em que se reconstitui a identidade de uma família; no “eu”, que busca permanentemente um sentido para a vida. Um romance em que a vida, como a ilha, é um cais.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 500, 2020-11-04, pg. 9.


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