A Arrábida provoca o deslumbramento com a tela da serra, como provam dois roteiros de ajuda: o primeiro, Flores da Arrábida - Guia de Campo, de José Gomes Pedro e Isabel Silva Santos (Assírio & Alvim, 2010), com primeira edição em 1998, a tempo da Expo-98, caracterizando 200 flores, traçando um retrato do habitat que a Arrábida constitui, e completando-se com esclarecedor glossário técnico e índices por nomes científicos e por nomes vulgares atribuídos às plantas; o segundo, Flora da Arrábida e Espichel - Guia de Campo, de Francisco Luís Rasteiro (Núcleo de Espeleologia da Costa Azul, 2019), que identifica 633 espécies vegetais da serra, “resultado de quinze anos de registos fotográficos” e de pesquisa botânica de três anos, apresentando igualmente índices por família e pelo nome científico.
As duas obras são interessantes pela recolha, pelo cuidado científico (descrição das formas florais, das folhas, das inflorescências, das características eco-fenológicas), pela intenção pedagógica (recomendações e conselhos sobre o uso das plantas) e pelo apontamento fotográfico de todas as plantas referidas.
Passeie o viajante na Arrábida com os guias na mão que vai descobrir muito. Por exemplo, plantas fortemente ligadas à serra - por serem endémicas, umas; por estarem ligadas a características que marcam a cultura local, outras, como o “carrasco” (hospedeiro da grã, que produz a tinta escarlate já conhecida pelos Romanos), o “cardo-do-coalho” (indispensável para o fabrico do queijo) ou a “murta” (importante para o licor arrabidino).
Mas também pode o leitor descobrir nestes guias um mundo de associações... As designações vulgares atribuídas às plantas, talvez derivadas do poder sugestivo que estas apresentam, dão interessante percurso pelo poder metafórico da linguagem. Nessas classificações, os nomes de animais ou de partes do corpo animal são frequentes, como se pode ver nos casos de: “abelhinhas” (ou “quilhão-de-galo”), “arrebenta-boi” (ou “uva-de-cão”), “barba-de-falcão”, “boca-de-lobo”, “corno-de-veado”, “cristas-de-galo” (ou “calças-de-cuco”), “erva-abelha”, “erva-borboleta”, “erva-carapau”, “erva-das-pulgas”, “erva-percevejo”, “erva-vespa”, “flor-dos-macaquinhos” (ou “flor-dos-rapazinhos”), “flor-dos-passarinhos”, “focinho-de-rato”, “língua-de-cão” (ou “orelha-de-lebre”), “língua-de-ovelha”, “olho-de-mocho”, “pé-de-burro”, “pé-de-corvo”, “pé-de-galinha”, “rabo-de-cão”, “rabo-de-lebre”, “rabo-de-raposa”, “testículo-de-cão” e “tripa-de-ovelha”. Outros nomes, com cariz mais poético, também devem ser lembrados: “beijos-de-estudante”, “bela-luz”, “bons-dias”, “cardo-beija-na-mão” ou “saudades”. A imagem fradesca igualmente perpassa pela terminologia em casos como “capuz-de-frade” e “orelha-de-monge”, ainda que esta também surja conhecida por outra designação muito pouco conventual como seja “umbigo-de-vénus”, em todo o caso uma imagem bem mais reservada do que a sugerida por “dama-nua”...
As flores povoam frequentemente a literatura e, apesar de a escolha quase não ter limites, há duas a não esquecer: a “bonina” (ou “margarida”), imagem que Camões escolheu para lembrar a face de Inês de Castro, e a “esteva”, que titulou em 2004 obra póstuma de Sebastião da Gama, que bem recheou de flores arrábidas a sua poesia.
A quantidade de flores e de plantas que vivem na Arrábida bem teria ali justificado um passeio da deusa Flora e do seu apaixonado Zéfiro pelo deslumbramento entre o casal e pelo encanto da Natureza... Na dúvida se eles por ali terão passado, façamos nós essa incursão, mesmo que através da leitura...
in O Setubalense: 2020-04-08
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