segunda-feira, 27 de abril de 2020

A "Gazeta de 1641", "O Setubalense" e nós



Estava-se no mês de Dezembro de 1641 quando saiu o primeiro número da Gazeta em que se relatam as novas todas que houve nesta corte e que vieram de várias partes no mês de Novembro de 1641, título longo para doze páginas de notícias daquele que é o mais antigo periódico português. A partir dessa data, saíram nove edições a ritmo mensal, até que, em Outubro seguinte, assumiu o título de Gazeta das novas de fora do reino, tendo sido publicados catorze números até Agosto de 1648. No número inaugural, em 37 notícias, 26 respeitavam ao Reino e 11 eram “Novas de fora do Reino”.
Os relatos são curtos e acessíveis, não têm título e a divisão entre eles é feita por parágrafos, correspondendo cada um a diferente acontecimento. A primeira notícia publicada dá-nos algumas indicações quanto à eficácia pretendida: “Pelejou a Armada de Holanda com uma esquadra da Armada Real de Castela, em que vinham muitas fragatas de Dunquerque; durou a pendência mais de vinte e quatro horas; foi-se a pique um galeão dos Castelhanos e ficaram alguns destroçados e todos com muita gente morta. O holandês com algum dano se retirou a este porto, donde está aguardando a que el-Rei Nosso Senhor lhe dê socorro para sair outra vez a atemorizar os portos de Andaluzia.” Curiosamente, a última notícia aborda o mesmo tipo de evento: “Por pessoa que veio de Cádis e por carta de Castro Marim se soube que a Armada de Holanda fizera grandíssimo destroço na Armada de Castela e que se recolhera com dois galeões perdidos e muitos sem mastros e passados das balas e grandíssimo número de gente morta.” A apreensão da mensagem é rápida: além do relato breve do acontecimento, percebe o leitor a animosidade contra o nosso vizinho ibérico, retrato nada de admirar se pensarmos que a restauração da independência de Portugal (e consequente libertação do domínio filipino) ocorrera um ano antes, no início de Dezembro de 1640. Assim, propagandeava-se o movimento da Restauração entre os sucessos diplomáticos do Reino e os insucessos morais e militares por parte de Castela.
Setúbal surge logo na segunda notícia deste primeiro número da Gazeta: “O Conde da Castanheira, que estava preso numa torre de Setúbal, pediu a el-Rei Nosso Senhor que lhe mudasse a prisão porquanto estava indisposto e el-Rei Nosso Senhor, usando de sua natural benignidade o mandou trazer para o Castelo de Lisboa.” Tal como na primeira notícia, o tratamento de deferência relativamente ao rei português é notório, exaltando a sua capacidade diplomática e a sua compreensão.
Pela leitura dos números da Gazeta percebe-se que as notícias se alimentavam, por vezes, do culto do exagero, dependente do partido que a publicação tinha de tomar. Alexandre Herculano considerou que, para a Gazeta,"era preciso animar o povo” e “convinha narrar-lhe as vantagens alcançadas contra a Espanha, bem como as dificuldades em que se via envolvida aquela monarquia, e até exagerá-las".
Hoje, a Gazeta é um documento histórico de relevo para se conhecer o século XVII no período pós-Restauração, pesem embora os exageros que os redactores, também eles imbuídos de um espírito independentista, usaram ao serviço da propaganda.
Os olhos com que lemos os jornais do passado são os de hoje, mas tentando também a viagem e a leitura à maneira dessoutro tempo. Vale isto para dizer que o jornal que lemos hoje será um elemento para reconstituir a nossa história amanhã. Na já longa vida do título O Setubalense (165 anos, com interrupções), a história de Setúbal e da nossa região escreve-se também com as notícias do quotidiano que o jornal disponibiliza. É por isso que, ultrapassando os limites da crónica habitual, nos atrevemos a convidar quem nos lê ao apoio a este jornal através da iniciativa de “crowdfunding” que está em marcha. É um imperativo cívico, pois, se um jornal acaba, é o registo de uma cultura e de uma comunidade que se perde. Nós já contribuímos.
in O Setubalense: 22.Abril.2019

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