terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Francisco Borba mostra a Setúbal que D. Carlos pintou e desenhou



Este livro, Setúbal e Arredores na Obra Artística do Rei D. Carlos (Setúbal: LASA, 2019), devido à persistência e sensibilidade estética de Francisco Borba e ao estudo aturado de Raquel Henriques da Silva, precisou de cerca de 120 anos para aqui chegar, com uma história que atravessa várias fases.
Do ciclo de vida do rei D.  Carlos todos sabemos que foi curto - nascido em Setembro de 1863 no Paço da Ajuda, morreu assassinado no Terreiro do Paço em Fevereiro de 1908. Um percurso de pouco mais de 44 anos de uma figura multifacetada que, a par da governação, assumiu um estatuto próprio na cultura, fortemente marcado pela sensibilidade estética e por um espírito científico. Por 1880, começou a ter aulas de pintura não só por causa da formação cultural da sua condição de príncipe, mas também porque o desenho lhe aguçava o espírito desde a infância. E, oito anos depois, em Dezembro de 1888, participava o ainda príncipe na exposição de pintura promovida pela Associação Industrial Portuguesa com duas marinhas em aguarela. A partir daí, a sua participação em colectivas de pintura não mais parou, integrando mostras promovidas a ritmo anual pelo Grémio Artístico e pela Sociedade Nacional de Belas Artes, chegando a expor em Paris (na Société Artistique des Amateurs e na Exposição Universal de Paris), em Barcelona, em St. Louis e no Rio de Janeiro, tendo algumas das suas obras sido premiadas.
Uma produção pictórica intensa, num trajecto que se foi aprimorando e que passou por temática variada e suportes diversos, cuja qualidade foi reconhecida por vários críticos. Os elogios que foram feitos à obra de pintura e desenho de D. Carlos culminaram com o cognome de todos conhecido de “Rei Artista”, que, por si, denota o prémio do reconhecimento geral dessa sensibilidade. E, se dúvidas houvesse, bastaria a opinião de Fialho de Almeida, crítico difícil de convencer (chegou a assumir-se como dono de uns “olhos jacobinos”, precisamente a propósito de D. Carlos, quando visitou as obras que o rei mandara fazer no Outão), que, em 1892, a propósito da exposição promovida pelo Grémio Artístico nesse ano (a segunda edição), em que um quadro do rei foi premiado, registou sobre os dotes artísticos de D. Carlos que os seus quadros “passam de prenda à categoria de um verdadeiro trabalho de arte” e que “é necessário apontá-lo entre os pouquíssimos que neste país de costa verdadeiramente sentem a marinha, e entre os raros que na exposição se esforçam por pintar em português” (Os Gatos, vol. 5). Por igual diapasão se afinou outro conhecido crítico, com mais mavioso percurso, mesmo com relações de amizade que o ligavam ao rei, Ramalho Ortigão, que, em diversos textos de memória sobre D. Carlos, apreciou a sua arte e testemunhou que “as suas paisagens são comovidas evocações”, que se transformou no “pintor inesgotável dos mares portugueses” e que “foi um dos mais espontâneos e mais laboriosos pintores portugueses do seu tempo e da sua idade” (Últimas Farpas).
As viagens marítimas do rei ao longo da costa portuguesa constituíram pretexto para uma linha temática intensa da sua pintura - a arte marinha, passando pelo retratar os barcos e as paisagens marítimas. Por esse crivo passou muito intensamente a paisagem da costa de Cascais e também o espaço que desde o Espichel se alcança até Setúbal. E é assim que se entra na segunda fase da história deste livro.
Em 1963, Maria de Lourdes Bartholo, então directora do Museu Regional de Bragança, publicou o título A Obra Artística de El-Rei D. Carlos (Lisboa: Fundação da Casa de Bragança), em que, depois de um pequeno estudo introdutório, divulgou o inventário das obras do rei nos museus e palácios nacionais, tendo chegado a um total de 572 obras recenseadas a partir de 14 colecções (Palácio Ducal de Vila Viçosa, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Museu Nacional de Soares dos Reis, Palácios Nacionais da Ajuda, da Pena, de Sintra, de Mafra e de Queluz, Aquário Vasco da Gama, Sociedade Nacional de Belas Artes, Museu da Sociedade Martins Sarmento, Museu Municipal Dr. Santos Rocha e, no estrangeiro, o Palácio do Itamarity, do Rio de Janeiro, e a Antiga Colecção Imperial da Alemanha).
Esta obra não deixou insensível o setubalense João Botelho Moniz Borba (1908-1977), que, dois anos antes, em 1961, tinha assumido o lugar de director do Museu de Setúbal (fundado em Fevereiro desse mesmo ano). Dedicado “patrimonialista de Setúbal e da sua região”, como se lhe refere Raquel Henriques da Silva, João Borba percorreu estrenuamente esse inventário na demanda de obras relacionadas com Setúbal, tendo ficado sensibilizado com o “Álbum de Apontamentos”, recolhendo anotações a lápis feitas em Lisboa, em Setúbal e a bordo do iate “Amélia”, provavelmente entre 1885 e 1890, manuscrito que integra o espólio do Museu Nacional Soares dos Reis.
A partir daí, com a meticulosidade que o norteava nas questões de um inventário artístico setubalense, João Borba solicitou reproduções fotográficas do álbum àquele museu portuense e elaborou a lista “El-Rei D. Carlos - O que ele pintou e desenhou sobre Setúbal e Arredores”, a que acrescentou cinco quadros que conhecia, três do Palácio Ducal de Vila Viçosa e dois que tinham figurado na exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes de 1903.
Podia o trabalho de pesquisa ter ficado por aqui que já teria sido importante o registo dessas referências a Setúbal para a sua história cultural e para a construção de uma certa identidade.
Alcança-se agora a terceira fase da narrativa, quando é passado mais de meio século sobre a listagem que o diligente João Borba fez na mira de recolha, de saber e de conhecimento de outros olhares sobre Setúbal. Chegados a 2019, eis que Francisco Borba, numa atitude de partilha de documentação do arquivo de família e honrando a memória familiar e setubalense, decide a publicação desta obra Setúbal e Arredores na Obra Artística do Rei D. Carlos, seguindo os passos e o roteiro do pai, aí integrando três pinturas (“A Torre do Outão”, de 1900, e “O barco da vela vermelha” e “Barcos no Sado”, ambos de 1905) e o mencionado “Álbum”.
A obra de D. Carlos teve já variados estudos, destacando-se o que, em 2007, foi publicado por Raquel Henriques da Silva na obra El-Rei Dom Carlos, Pintor (1863-1908), que acompanhou o catálogo das 411 obras existentes no Museu-Biblioteca da Casa de Bragança elaborado por Maria de Jesus Monge (Caxias: Fundação da Casa de Bragança, 2007). Nessa leitura, a autora vê a obra iconológica de D. Carlos afecta a nove áreas temáticas, ainda que algumas tenham um muito reduzido número de representações e se justifiquem por marcas de especificidade delicada e por terem uma inegável ligação a momentos ou locais que preencheram a vida do artista: marinhas, paisagens em terra, paisagens entre o rio e a terra, gentes e narrativas de trabalho, retratos, pintura da História, registos do quotidiano (incluindo desenhos científicos e naturezas mortas), homenagem ao Alentejo e apelo do mar.
As reproduções apresentadas neste livro, que não abrangem a totalidade das peças em que D. Carlos referiu Setúbal, passam por quase todas as categorias indicadas por Raquel Henriques da Silva, o que permite também fortalecer a ligação entre o rei e este território. Com efeito, por aqui passam as marinhas (os barcos e o mar) e o prolongamento da paisagem do mar para terra (Setúbal e a Comenda, o cais de embarque, Sesimbra); a população marinha (as medusas e as toninhas); o aspecto da monumentalidade (Outão, castelo de Palmela, fortes de S. Filipe e da Arrábida, S. Julião, o aqueduto, Praça de Bocage, Nossa Senhora da Conceição do Cais, porta de S. Sebastião, Bacalhoa) e das ruínas (Cetóbriga); a fisionomia costeira (desde o Espichel até ao Sado); os pormenores de construção ou de elementos decorativos (o farol, a capela do Bonfim, as marcas dos sinos, heráldica); a figura humana em ambiente de trabalho ou lazer ou no seu cargo (os pescadores, o chefe dos veteranos em Palmela, a ponte de banhos); o esboço de retrato humano (em alguns casos indicando o nome próprio revelando proximidade no trato). Há ainda espaço para o auto-retrato, para a visualização de recantos do iate “Amélia” e para uma imagem de momento de pausa de um casal, algures na paisagem junto de uma coluna em ligeira colina, ele talvez desenhando, ela talvez lendo...
O leitor deste livro, mais rigorosamente o espectador deste livro, pode assistir assim a tempos de perenidade e a instantes de vida, em que o traço varia entre a fixação do que é perdurável e a captação de instantes, de movimentos ocasionais, quase como se houvesse a reprodução do momento em que a fotografia é feita, no que essa fracção de tempo tem de irrepetível. A paisagem ou o cenário surgem sempre animados, dinâmicos, motivando a nossa contemplação, sugerindo um entrar nos ambientes, um conhecer as pessoas e os hábitos, as formas de vida e de ver. No texto de Raquel Henriques da Silva que acompanha este livro, é este fenómeno explicado quando refere: “o desenho, a aguarela e a pintura constituíram, para D. Carlos, uma busca e registo da beleza e das gentes, mas também a determinação de os conhecer e de os explicar”. E, mais adiante: “a obra artística de D. Carlos, sobretudo o seu desenho, é, no seu conjunto, uma comovente declaração de amor a Portugal - à beleza das costas marítimas, à suavidade do relevo, à antiguidade da história, à bonomia das gentes mais humildes.” Haverá elogio mais propositado para um pintor naturalista como D. Carlos foi?
Contudo, esta obra que Francisco Borba organizou e trabalhou - ou não fosse ele também um homem com sensibilidade fotográfica - faz ainda uma outra ponte com a memória, transportando-nos até à actualidade ou, pelo menos, até àquilo que a contemporaneidade preserva da memória. Lado a lado com quatro desenhos de D. Carlos referentes a monumentos, Francisco Borba pôs outras tantas fotografias recentes dessas mesmas construções, num olhar artístico que explora a dinâmica das linhas, da luz e das sombras, forma de homenagear o tempo, é verdade, mas também a arte e o próprio D. Carlos, também ele um apaixonado pela fotografia. Por estas reproduções a preto e branco passa a essencialidade do objecto retratado, revestido de toda a sua força expressiva e afirmando a sua vetustez e monumentalidade.
Setúbal e Arredores na Obra Artística do Rei D. Carlos é, assim, um livro a várias mãos e a vários tempos, que pode ser lido segundo distintas linhas - da pintura à escrita, do desenho à memória, da paixão ao documento, da cronologia à estética, do momentâneo à intimidade, exactamente assim intencionalmente mescladas, afirmando um olhar próximo, humano, límpido, fascinante, assim o leitor-observador se deixe impregnar pela aragem que se solta destes fragmentos.
(Na apresentação da obra, em 7 de Dezembro de 2019)

Sem comentários: