terça-feira, 1 de outubro de 2019

Quando Bernardo Santareno encontrou o "Setúbal"



No final da década de 1950, o médico António Martinho do Rosário (1920-1980), natural de Santarém, prestava serviço nas campanhas de pesca do bacalhau como médico de frota, tendo servido o arrastão “David Melgueiro” (em 1957), o navio de pesca “Senhora do Mar” (em 1958) e o navio-hospital “Gil Eannes” (em 1959).
A participação nessas três campanhas, entre os seus 37 e 39 anos, deu-lhe experiência e conhecimento bastantes para transformar o vivido, o sentido e o ouvido em literatura, retratando os marítimos com quem contactou num conjunto de crónicas que reuniu, recorrendo ao pseudónimo de Bernardo Santareno, sob o título Nos Mares do Fim do Mundo (Lisboa: Ática, 1959), assunto que lhe motivou ainda um outro livro, também publicado em 1959, na área da dramaturgia, O Lugre.
A sua iniciação como escritor acontecera já uns anos antes, na mesma década, com publicação de títulos dedicados à poesia e ao teatro, tendo sido esta última tipologia a que mais distinguiu Santareno, muito justamente considerado um dos mais importantes dramaturgos portugueses da segunda metade do século XX.
Nos Mares do Fim do Mundo, título que acumula as noções de distância geográfica e de sofrimento, assume-se, em pequena nota do autor como o resultado de “doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses, por bancos da Terra Nova e da Gronelândia”, sendo ainda explicado que “foi, em grande parte, escrito a bordo do arrastão ‘David Melgueiro’ na primeira campanha de 1957”, a primeira também em que o autor serviu “na frota bacalhoeira portuguesa, como médico”, tendo as duas campanhas seguintes servido para aprofundar o conhecimento de “todos os aspectos da vida dos pescadores bacalhoeiros portugueses”.
Alguns dos capítulos desta obra assumem uma escrita diarística, relacionada com pequenos acontecimentos (“É noite. Está mar. Mais uma vez, caiu a saboneteira no lavatório de alumínio: os meus nervos, tensos, ferem-se nos vidros quebrados deste ruído. Tudo ondula no beliche: cortinas, sobrado, tecto... Ai, esta vegetativa, esta angustiosa sensação de náusea!”), produzida por momentos de reflexão (“Serei capaz? São mil e tantos homens entregues aos meus cuidados, confiantes na minha proficiência médica... Estarei eu preparado para tal? Terei que me habituar a decidir, rápida e eficazmente, nos casos de urgência. Serei capaz? Sou tão doentiamente indeciso!”), resultante da descrição de personagens a bordo (“Pela primeira vez este ano, vai ser lançada a rede ao mar. Na ponte, o nosso capitão dirige a pesca: samarra, grossos tamancos, uma longa manta-cachecol traçada à volta do pescoço e luvas de lã. Cabelos grisalhos, revoltos e descobertos. Voz rouca, com claridades ardentes de sal e negrumes de mar sem fundo.”) ou do relato de momentos fortes da companha (“É a hora. São quatro da manhã. Os homens vão saltando dos beliches à medida que acordam e, ainda ensonados, benzendo-se, respondem ao vigia: ‘Que nos remiu em sua santa Cruz, louvado seja!’ É madrugada e as sombras que cobrem o mar recuam ante a claridade frígida, cor de pérola, que alastra sobre o Oceano. Não há brisa, é dia de pesca. Almoço frugal logo em seguida e, preparados os botes (os dóris), prontos anzóis, linha e isco: ‘Arriando, com Deus!’ Lá vão, cada qual no seu barquito, para a grande aventura quotidiana.”)
Os relatos dos dias vividos não são momentos de romantismo, antes contêm os traços da dureza, do sofrimento, das angústias, como se pode verificar no curto texto que relembra a necessidade que o médico teve de amputar um dedo a um pescador, a sangue-frio - “De repente, abriu com um pontapé a porta da enfermaria e saiu. Passou rente a mim. Pude ver-lhe bem o rosto de pedra trigueira: chorava. Foi pior que mutilar uma estátua perfeita... Muito pior.” A emoção corre nas páginas deste livro atrás das relações sociais, por vezes tensas por vezes amistosas, entre os homens; vive nas histórias pessoais, muitas vezes confidenciadas ao médico; perde-se na contemplação do mar, ora calmo, ora insultuoso; naufraga atrás das fragilidades humanas com o homem que cai ao mar... Para intensificar essa emoção, o narrador faz predominar a frase curta, muitas vezes dominada por uma pontuação eivada de reticências e de exclamações, aqui e ali condimentada com o discurso directo dos dizeres e falares dos pescadores, frequentemente mediada pelo pulsar do próprio narrador.
A figura da mulher vai perpassando ao longo da obra, muito associada à viuvez real ou à viuvez trazida pela solidão e pela ausência, mas, quase a fechar o livro, o penúltimo capítulo é dominado pela figura feminina, surja ela estampada na imagem da esposa, da filha ou da noiva, apresentada como símbolo de companhia, é certo, mas também de pilar forte para a família e para a manutenção da casa enquanto a campanha dura, mas também apresentada com fragilidades como a doença ou o adultério.
A obra encerra com o final da prestação do médico a bordo do “Gil Eannes”, num texto sugestivamente intitulado “Regresso”, aí voltando o tom da reflexão diarística: “Faço, mais uma vez, o exame da minha consciência: cumpri realmente bem? Fui o clínico seguro e decisivo, o amigo sereno e infatigável (eu ia a escrever ‘o pai’) de que estes mil e tantos homens precisavam? Nem sempre: por ignorância, por tibieza, por comodismo. No entanto, uma verdade quase me sossega: Eu amo estas gentes. E elas sentem que é assim.”
Pela experiência de vida e de escrita do médico Martinho do Rosário passou uma figura ligada às terras do Sado, com o topónimo “Setúbal” por alcunha (dando, de resto, título a capítulo). Consultando os dados facultados na página do Museu Marítimo de Ílhavo, ficamos a saber que quatro setubalenses (pelo menos) participaram nas mesmas campanhas que o médico Martinho do Rosário: da freguesia de Nossa Senhora da Anunciada, António da Cruz Paulo (n. 1931, à data residente na Fuzeta, trabalhou no “David Melgueiro” em 1957 e 1958, como “maduro”), Luís Wagner Pereira (n. 1932, operou no “David Melgueiro”, como “maduro” e “escalador”, entre 1953 e 1962) e Jorge do Carmo (n. 1917, operou no “Senhora do Mar” em 1957 e 1958, como “moço”, depois de ter trabalhado no navio “Novos Mares” naufragado em 1956 na Terra Nova, conhecido como “Olhudo”); da freguesia de Santa Maria da Graça, Francisco da Silva Borges (n. 1932, tendo trabalhado apenas no “Senhora do Mar” em 1958, como “verde”). Os pormenores referidos no texto “O Setúbal” podem indiciar que se trate de um dos homens mencionados; contudo, não ficam certezas no leitor, pois, nas fichas consultadas, constam também o apelido por que cada um era conhecido e a alcunha “Setúbal” não está registada para nenhum deles.
Mais do que saber qual o homem que foi a referência deste texto, é importante para o leitor, como o foi para o narrador, atentar no caso humano: uma década antes, numa briga em que não faltara o vinho, o “Setúbal”, sentindo-se ofendido e agredido (navalhada no pescoço), cravou uma faca no peito do adversário, que morreu. Preso o “Setúbal”, passados meses foi absolvido e ingressou na pesca do bacalhau - “Por cá anda, simiesco, duma fealdade quasimodeana, o fígado e o rosto moídos em álcool, uma palavra brejeira sempre nos lábios roxos e vultuosos, uma luz avermelhada e baça nos olhos de sapo, um permanente riso idiota nos dentes arreganhados e sujos... Coitado do ‘Setúbal’! Com mais de quarenta anos que já tem, ainda trabalha como moço no ‘Senhora do Mar’, ao lado de rapazitos com dezassete ou dezoito que, sem quebras, o apupam: ‘Ó Setúbal, queres um bagaço? Atão salta, faz mais uma cambalhota!...’” É este gesto solidário de desprezo e gozo que os outros sentem pelo “Setúbal" que indigna o narrador, ao ver “toda a miséria do mundo, na voz roufenha e entaramelada” do sadino que salta a troco do álcool e as gargalhadas “truculentas dos outros moços” e o “riso cruel dos outros”: “A minha vontade era chicoteá-los, duro e forte, até ver correr sangue! E cuidam naturalmente que o ‘Setúbal’ não se sente, que não sofre como os outros? Pois reparem nos sinais que ele tem num dos braços: feitos com fogo, a sangue-frio, cada qual marcando indelevelmente uma ofensa, uma injustiça recebida!...”
Bernardo Santareno, com este retrato de um setubalense desprezado pelos seus companheiros de trabalho, leva até ao âmago a noção do sofrimento e da dor, não só trazidos pelas condições de risco e de dureza de que a vida se formava, mas também pela irracionalidade com que o homem muitas vezes irriga a maldade, chegando a ser ele mesmo o actor (e o autor) do desprezo e da destruição de si mesmo, quando se impunha que ele interviesse em prol do bem-estar da companha e contra a solidão, aquele “poço-vertigem, aberto no centro da alma”. O conjunto de crónicas, de histórias, de registos de diário ou de apontamentos por que este livro é formado, ao debruçar-se sobre a condição humana num especial regime e período de vida, bem constitui um canto épico que valoriza o esforço, a dificuldade e a lonjura de tudo, louvando a persistência, ora individual, ora solidária, sem pintar o quotidiano dos protagonistas com as cores da conveniência, antes os revelando no seu estado de pureza, ora frágeis, ora derrotados, ora fortes, ora desiludidos e divididos, angustiados e cheios de dúvidas, mas sempre esforçados. Um livro intenso, a (re)ler, também pelo que ele representa para um tempo importante do que foi a actividade pesqueira portuguesa!
Além da edição de 1959, Nos Mares do Fim do Mundo teve uma antologia em 1997 (Col. “98 Mares”. Lisboa: Expo 98), e reedições em 2006 (Lisboa: Nova Ática) e em 2016 (Silveira: E-primatur), tendo esta última sido acrescida de dois textos de Santareno até aí inéditos. Hoje, com o diário Público, sai a publicação fac-similada da edição de 1959 na colecção “Médicos-Escritores”, que assinala o 80º aniversário da Ordem dos Médicos, a cargo da editora A Bela e o Monstro.

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