sábado, 26 de abril de 2014

Escrever 40 anos de Abril em 40 poemas



O 40º aniversário do 25 de Abril foi pretexto para uma antologia de poetas setubalenses sob o título Abril – 40 anos 40 poemas, publicamente apresentado ontem, que constitui, simultaneamente, a primeira edição da Casa da Poesia de Setúbal, movimento em formação.
O livro reúne 29 autores (a maioria dos quais com obra já publicada) – Alexandrina Pereira, Ana Wiesenberger, António Galrinho, Arlindo Mota, Carlos Rodrigues, Deolinda da Conceição, Eduarda Gonçalves, Fernanda Esteves, Fernando Guerreiro, Fernando Paulino, Filipe Gonçalves, Helena de Sousa Freitas, João Carlos Raposo, João Santiago, Joaquina Soares, José-António Chocolate, José Nobre, José Raposo, Linda Neto, Luís Filipe Estrela, Manuela Matos Silva, Maria Clementina, Maria do Carmo Branco, Maria Sol, Maurícia Teles da Silva, Miguel de Castro, Resendes Ventura, Vanda Solho e Virgínia Costa.
Os quarenta motivos para evocar Abril podem congregar-se na frase que abre o prefácio, assinado por Maria das Dores Meira, presidente da Câmara Municipal de Setúbal, ao dizer: “Abril também se fez na poesia. E pela poesia.” Esta chave será apenas metafórica, mas é exactamente desse sentimento que partem todos os dizeres, uns mais dominados por ligações afectivas e quase íntimas, outros assentando no jogo das palavras, alguns evocando o momento de há quatro décadas, uns tantos reclamando o cumprimento de Abril, muitos apoiados numa crítica resultante de alguma desilusão, vários insistindo na ideia da liberdade. Este trajecto poético pela lembrança de Abril adquire, assim, matizes de diversidade.
A predominância surge marcada por uma certa disforia, ao mesmo tempo que pelo sentir a necessidade de ser retomado o ideal. À crítica presente nos versos de José-António Chocolate, quando se interroga anaforicamente sobre o mundo da representação (“Onde nos leva esta gente que anda tão contente / como só seus olhos vissem donde a alegria lhes vem./ … / Onde nos leva esta gente que anda tão contente / como se milagre houvesse estando Deus ausente. / … / Onde nos leva esta gente que anda tão contente / como se trajasse saúde estando tão doente. / … / Onde nos leva esta gente que anda tão contente, / alheia a quem sofre, em seu ar emproado e impertinente.”), ou de José Raposo, quando se revolta com uma certa desfaçatez (“Mas há quem viva brincando / com a nossa Liberdade, / esquecendo talvez o pranto / dos que sofreram por ela, / no corpo sentindo a dor / mas lutando com fervor / Liberdade, como és bela.”), responde a intenção de Ana Wiesenberger, construída sobre a antítese da reduzida dimensão geográfica e da forte intensidade da palavra (“Portugal, meu Portugal pequenino / É urgente que as tuas gentes inundem as Praças / Que os nossos gritos sejam farpas / Que o nosso hino traje de novo / A transparência desejada / O fim dos conluios que nos arruínam / A solidez da veracidade nos caminhos”) ou de Deolinda de Jesus, com versos em jeito de palavra de ordem (“É urgente devolver a paz ao povo / E com seu poder criar um país novo / A união dum povo tem a força da razão.”).
A esperança é algo que inunda muitos dos poemas aqui presentes, alicerçada sobre o sentimento e a vivência da liberdade, como se pode ver nas palavras de Maria do Carmo Branco – “Neste país apertado de tristeza / onde a dor e o desalento se acentua, / construiremos de novo o poema, / quebraremos a força da algema, / erguendo a Palavra em cada rua…” Por estes caminhos cravados de dizeres e de expressão do que vai na alma, Alexandrina Pereira retoma a imagem do cravo e personifica-o como o elemento capaz de ser transportador da esperança – “Meu cravo de Abril com alma de povo / Volta por favor a florir de novo!”
A imagem do cravo é forte no texto de Helena de Sousa Freitas, num poema que joga com palavras e conceitos sob o título de “A (r)evolução dos (es)cravos”, cujos dois primeiros versos assumem um tom provocatório – “Cairá por evolução ou por aférese / o ‘r’ da revolução, assim decapitada?” O poema evolui no sentido de uma resposta igualmente desafiadora, presente no último terceto: “E, se nos pedem o desfalque da palavra, / nós rebatemos com perpétuos ideais. / Pois somos cravos… ainda, sempre e muito mais!” E por aqui se chega à responsabilidade que na afirmação da liberdade tem cada um, poeta ou não, como propõe João Santiago no final do seu interrogativo título “Remédio?”, a sugerir que a solução não poder vir através dos outros, mas do compromisso de todos: “No uso da liberdade / que em ninguém delego, / ouso dizer: / que a haver luz, / se luz houver, / ou é a luz a vir de ti / ou não é luz.”
Evocação e compromisso, mesmo que apenas poético, é este livro, que surge uma década depois de outro construído com o mesmo objectivo, 25 de Abril – Revolução dos Cravos – 30 anos 30 poemas (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2004). Os dez anos que separam estas antologias (entre as quais só há seis autores comuns) podem também permitir uma leitura simultânea das duas obras, gesto que colocará o leitor perante um desafio: o que se nota que mudou no “espírito de Abril” através da palavra poética? Fica o convite para essas leituras…

Sem comentários: