quinta-feira, 10 de abril de 2014

David Magno, um português em La Lys, em 9 e 10 de Abril de 1918



[9 de Abril] “O bombardeamento aberto às 4h15 vai alastrando, crescendo e aproximando-se como um imenso incêndio numa seara. (…)
Estou (…) assistindo (…) ao bombardeamento, ao despejo contínuo dessa cornucópia infernal, que em volta de nós vasa projécteis espantosos, muitos dos quais de trajectória mais curva se ouvem vir, uivando e dando a impressão da morte, a chegar de instante a instante!
A terra treme, o ar vibra, o arvoredo geme e a minha caserna oscila até aos alicerces. Nos seus subterrâneos, como os antigos cristãos que esperam a hora de serem lançados às feras, um punhado de almas rezam a oração do amor da Pátria e um punhado de corações batem uníssono de amor à vida. A igualdade da adversidade os une. Só eu não rezo, com medo de ter medo, mas em compensação alguém o faz por mim!
A ferme vai-se desconjuntando até que por fim vem a ser devorada pelo incêndio. Por aqui e por ali os tectos voam, as paredes fendem e os adobes despenham. A padieira e os umbrais a que me encosto esmagar-me-ão, mas… este é o lugar que o meu brio me determina! (…)
Chamo os poucos homens que me restavam, formo-os e parto mas, entretanto, a deslocação de ar produzida por uma granada de grande calibre sacode-nos. Os meus soldados lançam-se por terra para escaparem aos estilhaços e alguns até correm a procurar abrigos detrás das paredes de lona de uns anexos ao alojamento como se fossem paredes de aço! Depois erguem os olhos espavoridos para mim que, levantado, tenho rebuço de curvar a cabeça à morte que passa e continua a passar, assobiando árias macabras…
O espectáculo é como os nossos sentidos, habituados a bombardeamentos, jamais tinham visto. Campos de esmeralda a serem pontuados pelas explosões. Altos choupos decepados como vidas que desaparecem. O nevoeiro a envolver tudo em mais escura tragédia, porque o sol se recusa a iluminá-la. (…)”

[10 de Abril] – “Neste segundo dia, o fogo passou a ser mais renhido, incluindo granadas de gás, e as perdas sensíveis , principalmente entre os escoceses.
Com efeito, adiante de nós todos, nas primeiras e segundas linhas, já não existe desde ontem senão um extenso sepulcro português. Tantos corpos desfeitos na lama flamenga, embora com suas almas nimbadas de glória, devem sentir o peso das tropas e viaturas de um exército imperial. Os que não se renderam morreram. Sem dúvida, os mais heróis são estes. Os mais habitual e ingratamente esquecidos os mesmos. Mártires todos, sem deixar de contar os mutilados, feridos e gaseados. A aumentar o horroroso quadro, cadáveres inimigos em número muito superior se misturam com aqueles. Bandos de corvos, como águias negras, prussianas, vão assinalando a marcha vitoriosa.”
David Magno. Livro da guerra de Portugal na Flandres (vol. 1).
Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1921

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