No número de 7 de Novembro de 1897 da revista Branco e Negro, aparecia um artigo de Trindade Coelho expondo o seu pensamento sobre o que seria um conto. Reconhecido como contista a partir da obra Os meus amores (publicado em 1891), o escritor de Mogadouro confessava as razões que o levavam a considerar o conto como uma arte do seu tempo: “É uma forma literária encantadora (conquanto não mencionada ainda nos livros didácticos); e o maior assunto, ou o mais complexo, cabe no conto, pela mesma razão que nas proporções delicadas de uma miniatura pode caber, desafogado, um grande quadro. Tudo se reduz a uma questão de processo; e pelo que toca à emoção, o conto pode dá-la mais intensa, creio eu, do que o romance. Depois, os próprios jornais, com a sua insistência cronométrica de todas as horas, o seu carácter de enciclopédia, a sua variedade, ou absorvem, ou fazem aborrecido, o hábito de ler demorado – e livros, são às dúzias, e na grande maioria livros maus, o que também desanima. A vida, hoje, e cada vez mais há-de ir a pior, é pouco extensa e muito intensa. Nada, pois, de coisas demoradas: tudo se quer breve, curto, incisivo, como essa linguagem do telégrafo, que é bem a deste fim de século alucinado…”
Depois deste enquadramento circunstancial e marcado pelo tempo, Trindade Coelho tenta definir a estrutura e o modo de fazer um conto, partindo do seu percurso: “Mas como se faz um conto? O que é o conto? Não sei. Quem o sabe? Tenho dele, desse delicado género de poesia literária, a visão de uma coisa redonda, sem princípio, nem meio, nem fim, e todavia geométrico e perfeito, como uma bola de fino marfim. Isto é talvez grosseiro, este modo de exprimir – mas confesso que não tenho outro e peço desculpa…” O leitor passa por este parágrafo e reconhece o tom dos contos do seu autor, eivados das características aqui anunciadas e sentidas, justamente o modo literário que deu a Trindade Coelho o reconhecimento na literatura, embora tenha sido autor de outra obra vasta nos domínios do direito, da didáctica e da cidadania.
Em 1949, Júlio de Lemos dava à estampa o opúsculo intitulado Elogio do contista Trindade Coelho (Lisboa: revista Ocidente), com meia centena de páginas, num texto assumidamente comprometido com o título – a única parcela da obra de Trindade Coelho aflorada é a dos contos e o ensaio percorre o que foi a recepção da obra Os meus amores, vista por numerosos escritores, críticos, admiradores, portugueses e estrangeiros. Esta obra é ainda importante pelas duas listagens apresentadas no final: uma, de bibliografia constituída por títulos de escritores que homenagearam Trindade Coelho; outra, dos periódicos que, entre 1879 e 1905, em geografias diversas (Bairrada, Braga, Bragança, Coimbra, Elvas, Famalicão, Lamego, Lisboa, Paris, Ponte de Lima, Portalegre, Porto, Serpa, Viana do Castelo e Viseu) e alguns por si fundados, mereceram a colaboração de Trindade Coelho.
Júlio de Lemos conhecia bem Trindade Coelho e entre os dois existiu uma relação epistolar, tendo a revista Limiana, publicada em 1912 e dirigida por Júlio de Lemos, dado a conhecer, em vários números, um total de 34 cartas de Trindade Coelho, escritas entre 1897 e 1907. Daí que não nos surpreenda o início deste Elogio: “Pelo que observamos há cinquenta anos e pelo que desde então viemos lendo e reflectindo, estamos convencidos de que com o aparecimento do livro Os meus amores principiou uma transformação na vida literária portuguesa.” O que estava em causa era uma crítica ao Naturalismo e àquilo que era visto como os excessos dessa fase, sendo enaltecido em Trindade Coelho “a literatura casta, suave, iluminada e emotiva, que nos banha a alma numa torrente de espiritualidade, bondade e graça, a literatura que respira saúde moral e, portanto, doce, límpida, repousante e construtiva”. Júlio de Lemos alia-se, assim, ao colectivo que escolheu para apreciar o conjunto de contos de Trindade Coelho, definindo que “as constantes artísticas de Trindade foram a pureza dos seus temas e da sua linguagem, a simplicidade formal e o amor à nossa terra, que tanto louvou e exaltou”, para o que contribuem a “naturalidade, singeleza, claridade rebrilhante, cadência, musicalidade”, sentindo necessidade de sublinhar a existência de uma “simplicidade estética” na obra em apreço.
A ligação de Trindade Coelho à terra onde nasceu foi devidamente destacada por outro escritor, João de Araújo Correia, alto-duriense e também contista, quando, no último dia de Junho de 1961, para assinalar o centenário do nascimento de Trindade Coelho, discursou na Casa de Trás-os-Montes, em Lisboa, sobre o Perfil trasmontano de Trindade Coelho, conferência que verteu livro (Lisboa: Portugália Editora, 1961), dizendo, logo no início, que o escritor de Mogadouro, apesar de ter andado por várias terras (Coimbra, Sabugal, Portalegre, Ovar e Lisboa), “nunca saiu de Mogadouro”, justificando: “nunca saiu de lá, porque lá lhe ficou preso o coração à rama dos negrilhos”.
Este é o ponto de partida para considerar o “trasmontanismo” do autor de Os meus amores, apresentado por ter sido um escritor “independente”, que “não se enamorou de modas literárias” e manteve, “em cada linha escrita do seu punho, Trás-os-Montes pintado por uma pena”, com as cores da rusticidade e da delicadeza. A melhor tela, segundo Araújo Correia, está nesses contos, que revelam “o cenário do planalto, os animais rasteiros e os passarinhos, a leiva e a nuvem, a árvore e o homem, os tonilhos contados à lareira em linguagem imaculada”.
No mesmo ano em que se assinalava o centenário do nascimento de Trindade Coelho, era publicada a obra de Rogério Fernandes Ensaio sobre a obra de Trindade Coelho (Lisboa: Portugália Editora), que continua a ser uma excelente leitura da obra do escritor trasmontano.
Rogério Fernandes começa por analisar o livro mais conhecido que é essa colecção de contos intitulada Os meus amores, para introduzir a questão da arte de narrar, bem como a reflexão sobre a eventual proximidade de Trindade Coelho da estética realista.
Sem dissociar a intenção do autor de contar histórias no cenário rural da sua região, trazendo para a literatura a simplicidade e a emoção do homem do campo, considera Rogério Fernandes que as narrativas de Os meus amores são “perfeitos como realização literária” e “consistem sempre na narração de um caso, elegantemente desenvolvido nos seus lineamentos principais e encerrado com soberba mestria”, além de haver nelas, “para além dos seus episódios e da caracterização de tipos, um pensamento moral e social subjacente”. Quanto à questão do realismo, pensa Rogério Fernandes que “o realismo de Trindade Coelho é, de facto, um realismo amável, uma poetização da realidade”, já que, “no espectáculo horroroso que a sua província oferecia, o autor de Os meus amores seleccionava, unilateralmente, aqueles elementos mais susceptíveis de uma idealização lírica.”
Quase metade do estudo é dedicado a outra faceta do escritor de Mogadouro: o seu envolvimento enquanto cidadão e a sua actividade em prol da instrução, da escola e da formação cívica. Rogério Fernandes passa pelas obras que exibem o pensamento social de Trindade Coelho com uma adesão de simpatia, demonstrando a verticalidade e o compromisso do escritor, com amplo recurso a citações de obras suas e a opiniões de seus contemporâneos. Alheio a honrarias, preocupado com a necessidade de instrução popular, autor de uma proposta de forma de ser cidadão, de Trindade Coelho nos dá este ensaio um retrato vigoroso e coerente, onde cabem momentos difíceis e um percurso de vida que acaba sinuoso, com o suicídio. Só um homem “que se bateu ardorosamente pela elevação material e intelectual do seu povo e pelo ressurgimento do País” pode ter mantido a sua independência ou o caminho da sua sinceridade nos moldes em que se apresentou em carta a Luís Derouet: “A sinceridade é indisciplinada; não transige. E eu, como sincero, sou intransigente, e seria sempre, por isso, um mau partidário – fosse do que fosse e de quem fosse”.
Os contos de Os meus amores não têm, felizmente, andado esquecidos e com facilidade se encontram reedições (igualmente acessíveis quanto a custos). O facto de esta ser uma obra recomendada para leitura no ensino básico também sustenta essa presença nos escaparates. Mais difícil será encontrar a recolha que Viale Moutinho fez, em 1985, de diversos contos de Trindade Coelho que tinham ficado em jornais ou se mantinham inéditos, sob o título de Outros amores (Lisboa: Editorial Labirinto), narrativas construídas na esteira de Os meus amores. Ler Trindade Coelho continua a ser um encontro com a sensibilidade e com as histórias que têm feito a identidade de Portugal. Os três contributos aqui lembrados constituem outros tantos pretextos ou convites para ler Trindade Coelho ou para ajuizar do que foi a sua importância na literatura portuguesa.
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