sábado, 23 de maio de 2009

Um retrato da escola, hoje

Delação na sala de aula
«Numa semana, os professores recebem um manual de instruções para conduzir as provas de aferição que os coloca uns furos abaixo da indigência mental; na outra, ficam a saber que uma aluna pode gravar clandestinamente o que se passa na sala de aula e usar o material ilegalmente obtido como prova de inaptidão para o exercício das suas funções. Depois de dois anos de uma terrível guerra de nervos iniciada com o estatuto e aprofundada pela avaliação, os professores, principalmente do ensino público, têm cada vez mais estímulos para a descrença e a desmotivação. Por muita razão que a ministra tenha em algumas das suas reformas, e tem-na, pelo menos, ao nível da urgência e do conceito de avaliação, a soma de grandes afrontas e de pequenos ataques de que têm sido alvo os docentes ameaça desfazer o que resta de empenho e sentido de serviço público na classe.
Por uma vez, era bom que o caso de Espinho pudesse ser visto de uma forma global e não se resumisse à análise dos devaneios de uma professora que, manifestamente, merece ser punida pelo que disse na aula ou pelo que aí insinuou sobre matérias do foro privado das suas alunas. Encerrado, e bem, este caso com um processo disciplinar, esperava-se que o Ministério da Educação se preocupasse com o outro lado da questão: o método usado pelas alunas e assumido pelas suas encarregadas de educação. Ora, que se saiba, não haverá ao nível da escola nem da direcção regional qualquer diligência, o mínimo gesto, a mínima palavra de censura pelo acto. O que, para os cidadãos e, principalmente, para os professores, quer apenas dizer uma coisa: que a espionagem clandestina do que se passa na aula, o recurso a tecnologias para instigar a delação é um método que não causa o mínimo arrepio à tutela.
Haverá certamente quem se apoie no nexo de causalidade para justificar o emprego de gravadores digitais ocultos nas mochilas. Afinal, os resultados estão à vista: sem as declarações gravadas, jamais alguém poderia acreditar que uma professora, aquela professora, fosse capaz de proferir tantos disparates e tantos insultos à dignidade dos alunos. Mas, resolvida a situação a favor dos pais revoltados e das alunas insultadas, o problema principal que agora se coloca tem a ver com o futuro. Doravante, o recurso a gravações clandestinas que não têm qualquer valor probatório em sede de processo na justiça ordinária (exigem autorização de um juiz), passa a ser legitimado nas salas de aula. Os momentos de descontracção, de diálogo franco e aberto, de proximidade entre professor e aluno estarão condenados a desaparecer das nossas escolas. Nenhum professor deixará de ter medo ao pensar no fantasma da gravação oculta sempre que arriscar sair da matéria oficial para fazer o que lhe compete: abrir horizontes aos seus alunos.
Pode parecer um cenário excessivo, mas o facto é que o episódio de Espinho é mais uma peça de um puzzle que gradual e paulatinamente vai corroendo o amor-próprio e a personalidade da docência. A menos que queiramos professores-funcionários, apenas autorizados a ditar sebentas ou a transmitir sumários, não se pode estar de acordo com as instruções do ministério que os transformam em aprendizes ou a legitimação por falta de censura de gravações ocultas nas salas de aula. Se não for pelo clima de intimidação e medo que pode gerar nos docentes, ao menos haja o bom senso de as condenar por estimularem os alunos a cultivar práticas pidescas. Querer resumir o incidente à condenação da professora é por isso um insulto a todos os que consideram a bufaria um daqueles vírus que a escola tem o dever de extirpar dos hábitos dos jovens.»
Manuel Carvalho. "Delação na sala de aula". Público: 23.Maio.2009.

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