quarta-feira, 12 de maio de 2021

Afonso Cruz - Por falar em livros...



“Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.” Esta personificação sobre a resiliência dos livros é trazida por Afonso Cruz na sua recente obra O vício dos livros (Companhia das Letras, 2021), três dezenas de textos em que são contadas histórias relacionadas com livros, leitores e descobertas.

Tão interessante sensibilidade dos livros pode ser encontrada num texto intitulado “Porque não há muitos leitores”, exercício de reflexão sobre a vontade que não existe nos não-leitores para descobrirem a mensagem que escorre pelas páginas, com o argumento repetitivo da “falta de tempo”... isto é, para se ser mais claro, reconhecendo que ler dá trabalho e exige condições específicas - a atenção, o silêncio, o recolhimento, numa palavra, a dedicação do leitor, que nunca pode esperar uma compensação imediata.

Por estas incursões passam histórias sempre dominadas pela marca comum da valorização do protagonista que o livro assume ser. Umas são passadas com outros escritores e leitores - Kafka e as cartas de uma boneca para a sua dona-menina até um final feliz, Balzac e a sentida morte da personagem que era a duquesa de Langeais, Dionísio de Siracusa e os seus versos sem arte que nem o autoritarismo conseguiu impor, Eurípides e a força da poesia libertadora de escravos, a máxima que Ramsés II escolheu para a sua biblioteca - “casa para terapia da alma”. Outras ocorreram entre pessoas que sentem a vida pelas histórias que protagonizam - a avó quase centenária que se sentia útil por poder contar as suas memórias ou a discussão nos Montes Urais sobre a maior importância da poesia ou da prosa que levou a que o defensor da poesia matasse o seu oponente. Há momentos que foram vividos pelo próprio autor, relatados numa revisitação autobiográfica enquanto leitor - o adolescente que procurava a distância mais longa entre dois pontos para o tempo render em favor da leitura, a descoberta de uma escritora árabe para quem a leitura originou a sua libertação, a experiência são-tomense em torno do sabor e do afecto revelado pela atenção dada às palavras, a dedicatória deixada pelo avô num livro para o neto só descoberta vinte anos depois da morte do avô. E há a reprodução de muitas reflexões sobre a leitura, geralmente pontos de partida para associação de outras ideias ou para reflexão própria sobre o acto e o gosto de ler - de resto, a obra conclui com mais de três dezenas de referências bibliográficas, maioritariamente relacionadas com o triângulo formado pelo livro, escrita e leitura.

Algumas crónicas deste livro são curtas, quase não ultrapassando o apontamento. Outras surpreendem pelas associações e pelos extremos a que a paixão pelo livro pode levar. Em todas surgem verdades intensas sobre o acto de ler, num enredo capaz de enlaçar o leitor, que nelas acaba por se encontrar. É que “abrir um livro é abrir pessoas e explorar o nosso próprio mundo através da experiência dos outros. O território inexplorado dentro de nós é acessível através dessa imersão em personagens que nunca fomos e jamais seríamos ou talvez venhamos a ser, e em vidas que nunca tivemos e jamais teríamos ou vidas que serão o nosso destino. As personagens dos livros que lemos são o meio de transporte para o que não somos, ou melhor, para o que somos sem ser.” Afonso Cruz, leitor e construtor de personagens, dixit...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 620, 2021-05-12, p. 9.


Sem comentários: