Nos Versos de Miguel Caleiro, aparecidos cerca de 1920, passa também o sentimento da amizade, vivido numa festa feita em honra de Armando Barata, um seu amigo, sendo o poeta impressionado pela beleza do evento, tempo em que “nos passa a dor / entre as almas donairosas / que, fiéis e piedosas, / escutam a poesia” que lhes é oferecida pelo cantador. Os poemas são equiparados a “ramalhete de apreço”, constituído por dálias, verbenas e açucenas, imagem que serve também para elogiar a assistência - “são as flores que vejo / doçuras que amam poetas”. A cantiga (com uma quadra como mote e quatro décimas) conclui com a demonstração da alegria festiva e o agradecimento do poeta: “Ao ver tanta animação / nesta festa de amizade, / toda a alegria me invade / de raríssima confusão. / Perante a reunião / que escuta minhas glosas, / com palavras especiosas / são os mais gratos deveres, / elevando os vossos seres / como alfim mágicas rosas.”
Outra cantiga com o mesmo formato da anterior recorda uma assustadora tarde de inverno, em que é registado o ambiente sentido, oscilando entre planos gerais e planos de pormenor - a aflição dos camponeses que não podiam atravessar a ribeira para acudir à família, o tom assustador das trovoadas, os rebanhos assustados em fuga, as árvores partidas e arrancadas pelo vento, os telhados destruídos, o relampejar feroz, as águas a descerem pela montanha, a ponte e a azenha destruídas, a noite avassaladora, a morte do moleiro e do seu filho. A quadra que dá o mote anuncia bem a calamidade que se descreve: “Era uma noite de inverno; o céu parecia um inferno. / Estavam os astros em guerra. / A ribeira mal sustinha a grande cheia que vinha / pelas vertentes da serra”.
Duas cantigas assumem um pendor marcadamente autobiográfico, revelando alguns traços sobre o poeta destes Versos. A primeira, demonstrando a sua origem rural e modesta, o estatuto de poeta popular e de cantador que para si reclama e o reconhecimento do seu nível cultural, sujeita-se ao mote “Miguel Fernandes Caleiro, / um poeta camponês, / não pode cantar o fado / em correcto português”. A cantiga retrata o percurso do autor: nascido “numa aldeia de Azeitão”, em tempo de dificuldades sentidas por uma “humilde geração”, numa família sem posses financeiras para dar melhor formação ao filho. Na segunda décima, já o poeta valoriza o seu percurso, enaltecendo o trabalho, a honra e o autodidactismo - “Eu fui como uma pobre flor / pelo vento açoitada / e, herdeiro da enxada, / aprendi a cavador. / Nasci para trabalhador / no meio da honradez. / Em mim, não há altivez, / eu só canto irmãmente, / mas têm na vossa frente / um poeta camponês.” Prossegue a cantiga, manifestando a alegria por aquilo que faz, para terminar com uma evocação da figura da mãe e a afirmação do que entendia ser o poeta popular: “Minha mãe santo afecto / chorou ao ver-me crescer, / sem apenas aprender / as letras do alfabeto. / Assim, sou analfabeto, / mas não semeio a rudez. / E vós, povo que me vês, / queiram-me aqui desculpar, / porque eu não sei cantar / em correcto português.”
A segunda cantiga de marca autobiográfica começa por glorificar a poesia, associando-a à capacidade emotiva: “Os versos que ides ouvir / nesta singela canção / são flores que nascem d’alma, / que brotam do coração.” Assemelhando os poemas que compõe a um “raminho de flores”, confessa o tom pessoal ao considerá-los “rimas do meu sentir”, garantia que vai dando ao longo do poema, terminando com a assinatura que reafirma o seu estatuto e a sua simplicidade: “São canções de um camponês / que não sabe ler nem escrever, / por isso não podem ter / grande beleza talvez. / Foi o Caleiro que as fez / sem a metrificação. / P’ra lhe oferecer elas são / como desfolhadas rosas, / as minhas pobres glosas / que brotam do coração.”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1254, 2024-03-06, pg. 10
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