quinta-feira, 14 de março de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (4)

 


A motivação principal das colectâneas de rimas de Miguel Caleiro eram as Festas da Arrábida, também ocasião para que fosse editado um opúsculo com os seus versos, cuja temática principal era a ida ao Convento da Arrábida para essa celebração, havendo também cantigas, que diferiam de ano para ano, motivadas por razões autobiográficas ou por questões sociais - por exemplo, na edição de 1916 dos Versos em honra das antigas Festas d’ Arrábida, Miguel Caleiro escolheu para a linha autobiográfica duas cantigas dedicadas aos pais e duas cantigas que tomam o poetar como tema, particularmente uma em que esboça o seu auto-retrato; já a imagem da época, questão importante pelas implicações sociais, políticas e históricas, foi ocupada com duas cantigas sob o título “Despedida para a Guerra”, relatando o momento da separação familiar dos que eram recrutados para ir “auxiliar o francês”.Retomando a edição do início da década de 1920 que nos tem servido de base, vale a pena olhar para umas loas à Senhora da Arrábida, vinte e oito quadras organizadas em quatro partes - “Saída de Azeitão”, “Chegada ao Convento”, “A despedida da Serra” e “Chegada a Azeitão”. Nelas, o leitor acompanha, no momento da saída, a ansiedade dos romeiros pela partida para a festa, o trajecto da berlinda que acompanha a Senhora, a despedida que o povo faz da imagem, o sinal de partida dado pelo sino da igreja; já no Convento, assiste-se aos momentos de devoção perante a “Rainha do Céu”, à contemplação da grandiosidade do cenário natural, à reza a pedir a bênção e protecção para os romeiros; o momento da despedida é feito sob o signo da oração, pesando também a emoção “de tão triste apartamento”, pois era chegada a hora de regressar à vila; no último quadro, da chegada a Azeitão, a comoção envolve os peregrinos, no meio dos repiques sineiros, com aqueles que ficaram a manifestarem o contentamento, pois era “chegada a santa Imagem / cheia de graça e louvor”, com um momento intenso de oração no final.

A ideia das loas para este momento festivo manteve-se pelos tempos. E, se algumas destas quadras se repetiram nas edições de vários anos, em 1946 (tinha Miguel Caleiro falecido há 11 anos), uma inovação surgia ao serem publicadas as Loas a Nossa Senhora da Arrábida, texto conjunto de Miguel Caleiro e de Sebastião da Gama (que tinha 22 anos à época e apenas um livro publicado). Das 28 quadras que constituem esta composição, organizadas nos mesmos quatro quadros, há oito que constam nos Versos de Caleiro do início da década de 1920. Não há a certeza de que todas as outras sejam de Sebastião da Gama, ainda que, em algumas, se consiga perceber a sua marca nas imagens que recorrem à Natureza, não se desconhecendo também o jeito que o jovem poeta tinha para a construção de quadras de gosto popular.

Esta junção dos dois poetas azeitonenses na publicação das Loas (que foram republicadas em 1966 e em 1996) alimenta também a admiração que Sebastião da Gama tinha por Miguel Caleiro - em Março de 1942, tinha Caleiro falecido há sete anos e estava Sebastião prestes a fazer 18 anos, o novel poeta azeitonense compôs um soneto em honra do antecessor, com a nota “para a sua campa”, assim retratando a memória: “Aqui repousam cinzas, pó e nada: / despojo humilde de quem foi alguém / e agora, com certeza, no Além, / maneja a Lira, a Lira bem-fadada. // Não vistes ‘inda a terra descuidada / que a torga, o alecrim, o lírio vêm, / a violeta, o malmequer também / tornar a mais formosa e delicada? // Teu estro foi, ó vate, o campo inculto / aonde foi nascer e tomou vulto / jardim tão perfumado, tão mimoso! // Teu corpo aqui, Miguel! Mas lá nos céus / eu bem te vejo a recitar a Deus / teus versos - flor’s de tom o mais vistoso!”

Que bom gesto de memória seria o de se conseguir uma compilação dos versos que Miguel Caleiro compôs, tendo como abertura este soneto de Sebastião da Gama, que constrói a feliz ideia de transformar o céu num espaço em que os poetas recitam versos para Deus!...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1259, 2024-03-13, pg. 9.


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