quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (1)



No primeiro número do jornal O Azeitonense, de 3 de Agosto de 1919, a terceira página abre com o título “Poetas humildes”, informando, logo no primeiro parágrafo: “os versos que abaixo reproduzimos, sendo, como são, de uma alma inculta, revelam um temperamento poético, de que muito haveria a esperar se fosse cultivado.” Depois, é explicada a razão para nada ter sido alterado no texto poético: não haveria, assim, adulteração do “temperamento afectivo e bom”.

Formalmente, o texto é uma cantiga, em que uma quadra (mote) anuncia o tema a desenvolver: “Eu gosto imenso de ouvir / pela fresca madrugada / o clarim do rouxinol / dar o toque de alvorada!” Seguem quatro décimas (glosas), retomando cada uma delas no final um verso do mote, desenvolvendo o tema do prazer da vida campestre - passeios no prado, canto da pastora e sons de flauta do pastor, trabalho agrícola das ceifeiras, cantar do rouxinol, moças na escamisada ou a transportar água da fonte.

O autor de tal poema é Miguel Fernandes Caleiro (1876-1935), de Aldeia de Irmãos, figura que o padre Manuel Frango de Sousa (1919-2000) divulgou na sua folha paroquial Azeitão - A Nossa Terra, em Fevereiro de 1989, dele dizendo ser “uma figura típica”, em quem “a espontaneidade era característica” e considerando a casa que ele animou e onde se cantava fado “um monumento de Azeitão”. Na última página do referido número de “O Azeitonense”, inteiramente dedicada a anúncios, consta o “Retiro Vila Jacinta de Miguel Fernandes Caleiro”, situado “nos Brejos, Casal de Bolinhos, Estrada de Coina”, espaço de “mercearia e belo retiro com bons petiscos e deliciosos vinhos”, condições que favoreceram os encontros de fado.

A sobrevivência dos textos de Miguel Caleiro deve-se, em grande parte, à sua sobrinha Maria da Saúde (1903-1995), que os transcrevia. Ligado às Festas da Arrábida, o poeta viu, no início da década de 1920, algumas das suas rimas publicadas sob o título Versos em honra das Antigas Festas d’Arrábida que pomposamente costumam realizar-se na pitoresca Vila de Azeitão, opúsculo de 16 páginas impresso na Tipografia Simões (com “oficinas movidas a força motriz”, em Setúbal), apresentado em “duas palavras”: “os versos que vão ler-se são simples e ingénuos como a sua alma de trabalhador do campo. Miguel Caleiro não sabe ler. As inúmeras canções populares de que é autor brotam-lhe espontâneas e é sua afilhada Maria da Saúde, uma engraçada pequena de 17 anos, que Caleiro estremece como se fora sua filha”, quem as escreve. É curioso que a nota sublinhe uma ideia que já tinha sido aflorada no recorte de O Azeitonense: “Dos versos de Caleiro diria de certo o nosso genial Guerra Junqueiro, se os lesse, que são como certas rosas que florescem nos matagais incultos.” Mas esta nota torna-se também interessante por recuperar o empenho que Guerra Junqueiro (1850-1923) pôs na divulgação da poesia popular, tal como fez no caso do poeta popular setubalense António Maria Eusébio (1819-1911), conhecido como “Calafate”, ao prefaciar a recolha dos seus Versos feita por Henrique das Neves em 1916, dizendo: “Não sabendo ler nem escrever, és um grande poeta (...). A tua bondade, meu velho, exala-se das tuas cantigas sem arte, como um aroma delicioso de um matagal inculto, que nasceu entre pedras (...) Ganhaste com o suor da fronte o pão de cada dia.” As palavras de Junqueiro sobre o Calafate poderiam ser aplicadas também a Caleiro, por certo...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1245, 2024-02-22, pg. 10.


Sem comentários: