quinta-feira, 24 de abril de 2025

Cores e Palavras de Abril desde Grândola



O título da colectânea, publicada em 2024, advém de um poema de Sophia de Mello Breyner motivado pelo 25 de Abril, publicado na sua obra O Nome das Coisas (1977): “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. Intitula-se O Dia Inicial (numa caixa dominada por fundo verde e letras vermelhas, com os nomes dos autores em prateado) e é uma colecção de 25 postais sobre o cinquentenário do 25 de Abril, cada um deles tendo, numa face, uma ilustração e, na outra, um texto, reunião de meia centena de autores (tantos os escritores quantos os artistas do desenho), num trabalho produzido pela Câmara Municipal de Grândola.

Se a imagem do cravo surge em 21 das ilustrações, já a força da cor vermelha perpassa por todas elas, ora mais viva, ora menos acentuada. Algumas das propostas artísticas misturam o desenho com o “slogan” (exemplo da ilustração de Joana Mosi, cruzada com excerto de canção de Sérgio Godinho), outras reforçam a urgência de assinalar a data (em várias, aparece o slogan imperativo “25 de Abril Sempre”, como são as ilustrações de Bernardo P. Carvalho, Tamara Alves, Nuno Saraiva e Mafalda Milhões), outras ainda dão azo a uma valorização de alguns momentos do 25 de Abril (como é o caso de João Vaz de Carvalho, que nos deixa ver uma multidão de cravos a ser emitida a partir de uma telefonia, ou o de Bernardo P. Carvalho, cuja mistura de rostos, de profissões, de gestos e de olhares sugere a união em torno da data e da sua simbologia), havendo ainda espaço para o humor (como na proposta apresentada por Nuno Saraiva, que parodia “slogans” em reconstruções como “A terra a quem a compra!” ou “Viva a reforma agro-turística!”, levando o mesmo tom parodístico para o desenho, substituindo a foice pelo símbolo da moeda euro) ou para a sugestão de narrativas relacionadas com o 25 de Abril (como se nota na figura salazarenta que foge de um alvejamento de cravos, concebida por Cristina Sampaio).

Relativamente aos textos, a maioria dos autores optou pela prosa, tendo o poema sido a modalidade preferida por Almeida Faria, José Agostinho Baptista, Helga Moreira, Yvette K. Centeno e Hélia Correia. Seguindo o índice, é Afonso Cruz quem abre a escrita, com uma mensagem que joga com algumas frases de “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, assumindo um cunho pedagógico sobre o sentimento da democracia e sobre a necessidade de pensar. Reflexão sobre a maneira como foi vivida esta data há 50 anos é feita por Onésimo Teotónio Almeida, que junta a memória e as imagens guardadas — “O 25 de Abril foi a festa onírica do grafito que captou o espírito dominante no tempo: ‘Queremos tudo!’, enlevados nos mais doces e utópicos sonhos de um homem e de um mundo novos.”

Histórias imaginadas ou reconstruídas povoam alguns dos textos (Dulce Maria Cardoso ou Ana Margarida Carvalho), havendo lugar também para o humor (Cláudia Andrade redige uma carta, em que não falta o final “a bem da Nação!”, dirigida ao director da polícia política a informar sobre “actividades indizíveis” acontecidas no quintal), para as memórias do tempo anterior ao 25 de Abril (Maria do Rosário Pedreira, Anabela Mota Ribeiro ou Ana Bárbara Pedrosa) ou para a memória da data ocorrida em tempo de juventude (Possidónio Cachapa ou Julieta Monginho), assim como para a lembrança do que foi viver essa data (Germano Almeida). Não faltam também os textos que problematizam a concretização das esperanças que vieram com esse Abril (Joel Neto ou Richard Zimler)

Feliz é o tom de José Luís Peixoto (nascido em 1974, já depois de Abril). Só tendo conhecido o país em regime de liberdade, confessa ter demorado “a entender a importância do 25 de Abril”. Mas a alegria de não ter conhecido o tempo anterior cola-se-lhe à escrita, num reforço do que é viver: “O passado era o peso de tanta injustiça, sofrimento, medo. (...) Fico feliz que essa sombra não me tenha tocado a pele. E todos os dias, em todos os momentos, agora mesmo, encho o peito de ar, sinto o gosto fresco do oxigénio. Estou vivo, estamos vivos, sou livre, somos livres.” Um excelente convite para concluir estas leituras a favor de Abril surge de um nome, também nascido em 1974, depois de Abril, Jacinto Lucas Pires, que relembra a intensidade da canção de José Afonso, avivando, numa interpretação pessoal, o significado de “Grândola, Vila Morena”: “Voltei hoje a ouvir esta canção que marca a nossa vida. Um detalhe pouco referido é o que se pode escutar antes da voz: o som dos pés na terra. O som da terra, o som de gente sobre a terra, a caminhar. Sempre que me lembro de ‘Grândola, Vila Morena’, vejo a imagem límpida de uma utopia, uma ‘terra de fraternidade’, um lugar ideal que nos serve de bandeira e inspiração - mas a canção que sonha um mundo novo começa com os pés na terra. É bom lembrar isso. Ter sempre presente que uma revolução que não caminha, morre. E que esta canção — como o próprio 25 de Abril — pede gestos concretos e a nossa melhor participação.”

João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1516, 2025-04-23, pg. 8.


1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei imenso!
Desejo que muitos leiam isto. MESMO AQUELES QUE NÃO SE ENVERGONHEM DE DIZER QUE DANTES É QUE ERA BOM.