quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Arrábida e imagens da sua espiritualidade (1)

 


Quando abriu a janela e olhou para o exterior, a personagem só pôde exclamar: “Parece que o mundo foi criado daqui!” Este momento é relatado no romance As Terras do Risco, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1994 (Guimarães Editores). A frase, que exprime o maravilhamento de quem a diz, no momento em que olha a Arrábida, remete-nos para a expressão do sublime, algo impossível de ser descrito, por muitas tintas que se ensaiem, por muitas frases que se recomponham, por muitos ângulos que os olhares procurem, por muitas combinações em que os sons se concertem. 

Conseguir contar a beleza seria igualá-la, operação impossível porque o belo é único, irrepetível, envolvendo uma aguarela de mistério, uma linha de sentido que a Arrábida, esse espaço que corre desde a Comenda até ao Cabo Espichel, sempre tem albergado e suscitado. Com razão escrevia Luís Marques em 1990, no seu estudo intitulado Arrábida e a sua Religiosidade Popular (Assírio & Alvim): “A essência da serra continua a sobrepor-se a todas as obras e transformações já realizadas. Um espelho disso, que chegou aos nossos dias, verifica-se (...) na interpretação que dela fazem, designadamente, os amantes da natureza, os poetas, os religiosos e os investigadores. (...) Hoje, como ontem, apenas os que se deixam penetrar pela serenidade da sua paisagem ou pela sua sacralidade conseguem encontrar a imutabilidade e intangibilidade que a serra permanentemente desencadeia.”

Servem estas duas referências — da ficção, através de Agustina Bessa-Luís, e do ensaio, por intermédio de Luís Marques — para chegarmos à obra A Espiritualidade da Arrábida, iniciativa louvável do Grupo dos Amigos da Paróquia de S. Sebastião, acabada de publicar, que reúne duas dúzias de olhares contemporâneos sobre a Serra, distribuídos pela escrita e pela imagem em partes iguais, associando-se ainda a expressividade dos dois nomes indiscutivelmente mais arrábidos, pelo contributo inegável que deram para a integração desta Serra na tradição literário-cultural portuguesa: Frei Agostinho da Cruz, religioso e poeta, que neste espaço viveu os seus últimos quinze anos no século XVII, e Sebastião da Gama, poeta e professor, que também aqui se acolheu e construiu o seu poemário em torno da simbologia da Serra, na década de 1940. 

A emergência desta obra pode ser vista a partir do que António Melo, um dos obreiros deste projecto, regista no texto de apresentação: “Este livro pretende ser uma prova de admiração pela Beleza e Espiritualidade da Arrábida e por todos os que a conseguem preservar na sua imortalidade.” Trata-se de um propósito forte, porque reflecte um sentimento do presente, num contínuo espanto perante o sublime, e, simultaneamente, homenageia a múltipla partilha que gerações nos têm transmitido neste caminho que tem sido o descortinar as linhas de sentido associadas à geografia social, cultural e natural da Serra, a que, metaforicamente, na obra Terral, o poeta Miguel de Castro chamou “varanda de ver o mar” (Edições Estuário, 1990). A importância desta obra é assinalada também no prefácio que D. Américo de Aguiar subscreve, um pouco em tom confessional, pondo-se à prova e testemunhando a sua descoberta: “Não estava prevenido para o impacto da beleza do mar e da serra. Sempre viajei muito do Norte ao Sul da nossa terra, na maior parte das vezes pelo cinzento monótono das auto-estradas. (...) A serra da Arrábida pede-nos silêncio e alguma solidão. É um convite renovado ao subir da montanha.” A recomendação é um desafio, exactamente o mesmo que se pôs ao frade franciscano Agostinho da Cruz, que lhe permitiu registar a beleza da experiência numa exclamação elegíaca — “Ó Serra das estrelas tão vizinha, / Quem nunca de ti, Serra, se apartara!” São, aliás, estes dois versos que fecham o percurso sugerido pela organização textual deste livro, que contraria a progressão cronológica, partindo das reflexões contemporâneas para recuar até ao século XVII.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º1416, 2024-11-19, pg. 7.


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