“Um dia, há muitos anos, arrastado não sei por que força, vim aqui parar, a esta praia, de onde se vê a serra e parte da cidade. Tinha levado uma velha máquina fotográfica do meu avô e tirei algumas fotografias. Banais, para não dizer pior, são o único registo dessa tarde de setembro, quando no areal havia poucos veraneantes e tudo se adequava ao meu estado de espírito, na ressaca de um desgosto amoroso. (...) Naquela tarde, eu vim aqui porque este era o limite geográfico do meu mundo, o mais longe que podia ir sem ultrapassar a linha imaginária para lá da qual o regresso era incerto.” Quando isto escreve, Bruno Vieira Amaral (n. 1978) aproxima-se já do final da sua narrativa em Setúbal (Centro Atlântico, 2024), obra que integra a colecção “Portugal”, composta também por fotografias da região devidas a Libório Manuel Silva.
A questão da fotografia não é de somenos, porquanto, logo no início do livro, de outras fotografias se fala — as que permitem ver momentos do passado ou aqueloutras que visam registar, “na medida do possível, o que a paisagem tem de inspirador e de terrível”, mesmo que o fotógrafo curioso e sensível, depois, chegue à conclusão de que a imagem que captou “fica sempre aquém do verdadeiro mistério” que acompanha o visível...
É justamente na tentativa de desvendar o mistério dos lugares que o narrador deste livro parte, numa viagem que, não esquecendo o que na região impressiona o olhar (Albarquel, Portinho, Arrábida e seu Convento, Azeitão, nos arredores; praça de touros, Misericórdia, cemitério da Piedade, coreto da Avenida Luísa Todi, monumento aos Combatentes, Convento de Jesus, gafaria, Galeria Municipal, na cidade), valoriza sobretudo a forma como a paisagem e a história se foram construindo, num percurso que cultua os heróis anónimos e algumas figuras conhecidas.
Se os construtores dos dias e dos tempos são habitualmente albergados na capa do anonimato, Bruno Vieira Amaral faz por se opor ao princípio de que dos anónimos “não reza a história”, abandonados que foram “na roda trituradora de um quotidiano que tudo destrói”. Assim, logo de início, surgem os pescadores, os jornaleiros, os trabalhadores das fábricas, os bandos de crianças, mesmo os doentes acamados, todos elementos, homens e mulheres, “que marcaram gerações e cuja memória se desvaneceu no tempo”.
O viajante vai calcorreando as ruas e os espaços como quem vai desenhando as artérias, descobrindo as histórias que são contadas a partir das memórias ouvidas das pessoas com quem se cruza, numa recuperação que provoca o desvendar do mistério. O leitor que o acompanha vai aprendendo noções tão simples quanto a que resulta do saber olhar, como acontece durante o embrenhamento na serra, que, “para ser decifrada, pede entrega e abandono, exige tempo e não apenas o contacto passageiro e superficial do turista apressado”. Esta atitude leva o visitante a momentos de contemplação, num quase entrar na história, em que a tela do visível lhe proporciona momentos de fantástico — perante o navio avistado na baía, logo a imaginação reencarna os galeões de pesca, os barcos de água, as aiolas, os iates e até a tripulação que o manuseia e trata é apresentada como descendente “desses marinheiros e pescadores, piratas e flibusteiros, reis e rainhas” de antanho.
Não fica o leitor sem saber as histórias de Hildebrando, de Tubal, de Mendo da Costa, de Frei Agostinho da Cruz, de Sebastião da Gama, de D. Brites, de Orlena Scoville, de Américo Ribeiro ou de Vicente Inácio Martins, o rapaz dos pássaros que povoa o mural do Largo José Afonso. Não fica o mesmo leitor sem passear por Azeitão, com visita à Bacalhoa e à Casa-Memória e ao sabor de um néctar (pretexto para evocar a ancestralidade do saber quanto ao trato do vinho, história feita de gestos e tradições mantidas por seres, “todos eles poetas sem jamais terem escrito um verso”). Não fica o leitor sem deambular pelas ruas da cidade (várias delas dominadas pelas lojas encerradas), vias em que, “sem roteiro ou mapa, o viajante depende da intuição”, até chegar ao Convento de Jesus, ponto final do emotivo e emocionado roteiro, quase símbolo de ascensão ao mistério das coisas.
Não é por acaso que o livro começa com o registo do mistério que envolve cada comunidade, cada espaço — é que “claridade”, a palavra com que o percurso se conclui, explica a intenção da viagem e o cunho eminentemente pessoal que marca este itinerário, consequência que ele é de um olhar poético que humaniza e eterniza o tempo e a paisagem.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1300, 2024-05-15, pg. 10.
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