quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Diário dos dias da pandemia (2)



Ao longo dos textos de Dias Entreabertos - Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia, as recomendações encontram também espaço, haja em vista os apelos aos leitores para que “fiquem em casa”, eco dos avisos vindos das estruturas da saúde pública e do medo sentido no vazio das ruas. No entanto, as saídas estritamente necessárias (por exemplo, para ir passear os animais de companhia) foram hipótese que logo serviu para alegrar os caninos, em passeatas contínuas, como sucedeu com “Kiko”, o cão visto a ser passeado por uma senhora e, passados vinte minutos, a ser acompanhado por um jovem, sequência que causou estranheza a Maria do Carmo Branco: “O rapaz, a sorrir, explicou que, como só havia um cão no prédio onde morava, todos os condóminos vinham passear o cão com autorização da dona”..., história que merece nota irónica - “um negócio a ponderar!”

A imaginação tinha de encontrar alternativas para este “desembrulhar dos dias” (João Santiago), enquanto a televisão debitava o “boletim do dia da DGS” e a “evolução da curva” para demonstrar a progressão pandémica, numa invasão informativa, como Fátima Frazão Lopes enuncia em 28 de Março: “Em casa, acordamos com o Coronavírus, tomamos as refeições com o Coronavírus, somos bombardeados até à exaustão com as mortes provocadas pelo Coronavírus em Portugal, na Europa e no resto do mundo. (...) O Coronavírus ‘infectou’ as televisões, as rádios, os jornais, as revistas e as conferências de imprensa.” Desse mesmo dia é o registo de Fernanda Resende, marcada pelo retiro obrigatório e pela busca de uma nova forma de relação com o mundo - “aqui estou em prisão domiciliária, a cumprir a pena que me foi imposta ‘isolamento social’. (...) Procuro reinventar o tempo em conversas com o meu interior.” E conclui: “Hoje não se vive, aprende-se a viver.”

Esta reinvenção passa por cenários gizados por novas coordenadas: “a magia de um brinde com taças de champanhe erguidas do outro lado da cidade”, sobre um aniversário celebrado à distância, ou o reparar na roupa também “em quarentena de utilização” ou nos “sapatos que esqueceram o jeito de andar” (Malice Silva); o cumprir tarefas desde há muito adiadas, como “pensar, escrever, repousar com serenidade, meditar e conviver com a comunidade de familiares” e “aceder à prática do maravilhoso culto da imaginação” (João Santiago); a procura da proximidade para combater o frio do afastamento através daquele “engenho tecnológico que o homem criou para aproximar as pessoas”, permitindo o contacto com os familiares mais directos, sobretudo “aqueles ramos maravilhosos que de nós partiram”, vencendo-se a irrealidade daqueles dias (Sanchez Antunes, o mais assíduo frequentador desta antologia).

Alguns poemas perpassam também por estes Dias Entreabertos, com destaque para aqueles que surgem em nome de uma memória - Resendes Ventura (1936-2013) e Maria de Sousa (1939-2020), trazidos por Fátima Ribeiro de Medeiros, o primeiro a propósito da energia da palavra, partilhado no Dia Mundial da Língua Portuguesa (7 de Maio), a segunda, com um poema produzido quatro dias antes de saber que estava infectada pelo vírus que a vitimaria passados dez dias (13 de Abril), testemunho forte de humanidade: “Mas antes de morrer / Quero que saibam / O quanto gosto de vocês / O quanto me preocupo convosco / O quanto recordo os momentos / partilhados e / queridos / (...) / Porque posso morrer e vós tereis de viver / Na vossa vida a esperança da minha duração.”

A última intervenção é de Arlindo Mota, em mensagem para Ana Bela Aleluia, uma quase justificação para este conglomerado de textos, registando “a perplexidade, a angústia, a incompreensão pelo desconhecido que nos amputa tudo aquilo que faz com que a vida mereça ser vivida”. Momentos intensos de emotividade, surgidos na oportunidade de um diário partilhado, conferindo à literatura o testemunho das dores dos tempos.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 961, 2022-11-16, p. 9.


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