quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Torga e a homenagem a Garrinchas pelo Natal



Garrinchas povoa, dominante, “Natal”, de Miguel Torga (1907-1995), incluído em Novos contos da montanha (1944), uma das mais belas narrativas a propósito desta quadra, num trajecto em que se misturam a rudeza da vida e o carinho imanente do homem, a pobreza material e a riqueza espiritual.

Caminheiro que cruza o percurso da vida, saindo de Lourosa para aí tentar regressar após ter sulcado os penhascos da pedincha, passando por Loivos, Carvas, Fetais e Senhora dos Prazeres, Garrinchas, se é partidário de uma vida pincelada de relativo e obrigatório cirandar, gira sempre em volta do seu centro, num esforço de sacralização da terra-natal, buscando alimento (ou aquilo que lhe possibilite alimentar-se), embora à sua maneira. Pronto a aceitar tudo - “viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara” -, arrasta consigo a simplicidade dos ricos de espírito. É filósofo por via popular, muito presumivelmente homem de provérbios, mas sempre de resposta pronta para as aventuras e desventuras que lhe estão reservadas e com um pensar crítico sobre o que vê e sente.

Quando parece que vai desistir da luta com a serra por causa da neve, a história surpreende-nos com o desabafo consolador do “algodão em rama” e Garrinchas, “com patorras de elefante e branco como um moleiro”, conserva um misto de aspereza e de ternura - se bem que rude pelas brutalidades da vida, é, ao mesmo tempo, o retrato vivo da pureza que se reveste de branco para não destoar da neve.

Tendo já percorrido uma longa etapa (tem 75 anos), mantém-se como um penedo e admira, no meio da brancura da paisagem, os penedos “que lembravam penitentes”. Na verdade, Garrinchas aprende, em cada momento que passa, a lidar com a Natureza como se sua família fosse. Por isso, não conseguirá chegar à sua terra-natal para consoar - esse momento de comunhão e partilha acontecerá na capela, na solidão de uma noite serrana, não sem ter o cuidado de não gastar todos os fósforos que lhe restam (lembrando-se o leitor de idêntica noite passada pela “Menina dos fósforos”, essa com trágico final).

Garrinchas, criativo e religioso até ao âmago, arranja, busca, inventa companhia, procurando o centro do mundo, a origem dos espaços que percorre, numa capela que será o eixo gerador de vitalidade, o abrigo, com a Virgem e o Menino como companhia, já que convidou os dois para consoarem com ele, momento em que se distancia da vulgaridade para atingir o sagrado, o belo.

Se os milagres só acontecem com os simples e com os crentes, Garrinchas conseguiu ter o Natal, talvez o melhor Natal da vida que se habituou a conhecer. Para completar o trio, personifica-se em S. José, trazendo a santidade para a vida humana e vencendo a solidão do momento e aquilo que parecia ser uma quase profanação do lugar.

Lutador em extremo, acaba por transformar a viagem em oração e a paragem em paraíso. Eminentemente prático, recusa as ladainhas incompreensíveis porque a vida lhe parece a melhor credencial para a obtenção de espaços e momentos felizes.

Ao leitor nada mais resta do que aderir a esta personagem pela vertigem que ela causa, um todo, um eu cada vez mais sagrado e sempre próximo do imenso. Muito contribui para essa aproximação a escrita torguiana que alia a dureza da vida aceite, a aspereza da alma e o sentimento interior da personagem, numa audição do monólogo que Garrinchas entabula consigo mesmo, talvez para que seja compreendido e aceite.

Um dos mais belos contos de Natal na literatura portuguesa, este, que Torga nos legou!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 759, 2021-12-22, pg. 2.


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