domingo, 5 de janeiro de 2020

Papa Francisco e o significado do presépio



No primeiro dia de Dezembro de 2019, o Papa Francisco datava, em Greccio, a sua carta apostólica O Sinal Admirável (Lisboa: Paulinas, 2019), um texto “sobre o significado e o valor do presépio”. Poucos dias antes, Francisco tinha anunciado a deslocação: “Irei a Greccio para rezar no lugar do primeiro presépio que fez São Francisco de Assis e enviar a todo o povo fiel uma carta para entender o significado do presépio". E foi ali, na região em que, em 1223, Francisco de Assis fez a primeira reconstrução do nascimento de Cristo, a cerca de uma centena de quilómetros de Roma, no santuário franciscano, que Francisco revelou ao mundo a sua leitura sobre o presépio.
A comunicação é de uma simplicidade impressionante, oscilando entre a memória e a pedagogia, mostrando o presépio como desafio para a sociedade de hoje. Num cenário envolvido pelo silêncio, o presépio é apresentado como “um apelo para seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento” e cada um dos sinais presentes no quadro merece a interpretação papal, quase num efeito de “zoom” que se vai dirigindo do mais geral para o mais particular: o céu estrelado e o silêncio para a procura de respostas “às questões decisivas sobre o sentido da nossa existência”; o contraste das representações de casas ou palácios em ruínas, marcas de decadência, com a “novidade” da mensagem natalícia da reconstrução do mundo e da vida; “as montanhas, os riachos, as ovelhas e os pastores”, representações de uma criação participante; todas as outras figuras simbólicas que cada um carrega para o “seu” presépio, demonstrando um caminho de simplicidade, de mistério e dando a entender que, “neste mundo novo inaugurado por Jesus, há espaço para tudo o que é humano e para toda a criatura”; finalmente, as imagens da gruta - Maria contemplativa e apelativa, José guardião, o Menino sorridente e de mãos estendidas para ser recebido - e as dos magos, vindos de longe na sua “sede de infinito” para representarem a alegoria das ofertas, que simbolizam a realeza, a divindade e a humanidade de Jesus.
O retrato apresentado cruza-se com as fases da vida de cada um e com o entusiasmo da infância em torno do presépio ou com o gesto de, continuamente, se armar esse mesmo presépio. E é já próximo do fim que Francisco afirma: “Não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modificá-lo cada ano. O que conta é que fale à nossa vida.” Ligando esta força à manifestação da fé, o Papa deixa aqui o desafio mais interessante que nos é feito por esta recriação que não abandonamos e que, iniciada por Francisco de Assis, traz um pouco dos livros sagrados para o ambiente que fazemos e construímos em cada dia.
Esta ideia do silêncio e da reconstrução a partir das imagens que fazem o presépio encontramo-la também no texto de José Tolentino Mendonça “O burro do presépio e todos os outros”, publicado recentemente na revista do semanário Expresso (nº 2454, 9.Novembro.2019). Depois de lembrar vários episódios sobre a importância do burro na história humana, o cronista chega às 163 vezes que o burro é mencionado na Bíblia (das 3594 referências a animais que ela contém) para chamar a atenção para o seu papel no quadro representativo do Natal: “O burro do presépio sempre me comoveu. (...) O mais natural é que se tratasse de um dos asnos anónimos do acampamento dos pastores e que escutou, ao mesmo tempo que eles, o pregão feito pelos anjos (...). Provavelmente, começou apenas por acompanhar a excitação dos pastores (...). Mas, depois, ele próprio se apercebeu de que no chão, diante das suas patas, surgia o rasto luminoso de uma estrela que o chamava. (...) Quando os pastores chegaram à visão do recém-nascido, ele já lá estava, como uma figura do presépio, (...) deitado por terra, protegendo com o calor do próprio pêlo a jovem parturiente e aquele filho. Os seus olhos grandes não se afastavam do pequenino, nem um segundo. E extasiados assistiam ao recomeçar do mundo.”
É neste final de contemplação e de fascínio perante o recomeço que o texto de Tolentino Mendonça vai ao encontro da carta do Papa Francisco, quando nos convida à reconstrução sobre a simplicidade. Uma e outra leitura constituem dois bons momentos de reflexão sobre o sentido do presépio, o tal “sinal admirável” que nos é oferecido para que a vida seja sempre um espaço e um tempo de encontro.

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