São cinquenta as crónicas que se albergam sob o título Nascemos Livres (Porto: Fundação SPES, 2018), livro póstumo do primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins (1927-2017), inicialmente publicadas no Jornal de Matosinhos, entre Setembro de 2016 e Setembro de 2017, com abertura de José Ferreira Gomes (presidente da Fundação SPES) e prefácio de Eugénio da Fonseca (professor setubalense, presidente da Caritas e uma das pessoas que mais dialogou com D. Manuel Martins).
O título do livro não é inócuo: num tempo como o nosso, em que à liberdade são impostas muitas fronteiras que pouco têm a ver com a justiça, em que se assinalam os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (assinada em 10 de Dezembro de 1948), em que continuamente ouvimos falar sobre limitações sociais, a voz de D. Manuel Martins encontra registo neste título, que era uma das suas frases de catequização e de intervenção.
As crónicas são curtas e também neste aspecto jogam a sua eficácia porque os textos vão ao encontro do essencial, partindo de situações concretas e sem rodeios. Logo na primeira intervenção, “Cidadãos abaixo do nível da pobreza”, o dedo é apontado aos responsáveis da “causa primeira desta lamentável situação” que “é a Filosofia Económica que guia o mundo”. A intervenção vai mais longe quando comenta, dando conta do ridículo de situações a que todos assistimos: “Quantas vezes apetece perguntar: mas, afinal, o que é isso de cidadania, de democracia, de direitos humanos? Aqueles (não todos, felizmente) que no-lo propõem ensinar-nos nem imaginam o espectáculo que oferecem a quem o ouve.” E a questão dos direitos humanos vai saltitando, espreitando-nos em quase todas as crónicas, às vezes explicitamente, às vezes implicitamente, suportada em frases tão límpidas quanto estas: “Ser feliz é o mesmo que ter acesso a todos os Direitos Humanos”; “é urgente levar os nossos cidadãos a conhecerem e a apaixonarem-se pela Declaração Universal dos Direitos Humanos”; “é no mundo que a Igreja se move e vive para cantar, promover e defender a dignidade do Homem, os Direitos Humanos são a sua profissão”; “a Declaração consta de trinta artigos e ficamos com a impressão de que são o Evangelho traduzido em linguagem do nosso tempo”.
A confessada adesão ao espírito do Papa Francisco (a quem chama “o Papa com o relógio acertado” ou o “Papa Profeta”) leva-o aos desafios que se põem à nossa relação com a Natureza ou com o dinheiro ou à mudança necessária dentro da própria Igreja - “Queremos padres no mundo, que se enterrem no mundo, para aí iluminarem e ajudarem a descobrir e a testemunhar os verdadeiros valores.”
Assunto das suas crónicas vão sendo os acontecimentos, o real com que as pessoas se confrontaram durante aquele tempo dos textos-encontro publicados ao ritmo semanal: as eleições em Portugal, em França ou nos Estados Unidos; as controvérsias em torno da Caixa Geral de Depósitos; a colocação de professores; as ameaças à paz; as dificuldades do cidadão comum; os falecimentos de Mário Soares e de Daniel Serrão; os exemplos de Abel Varzim, de Sebastião Soares de Resende e de António Ferreira Gomes; a celebração dos dias (do Doente, dos Namorados, do Natal, da Páscoa, do Carnaval, do Trabalhador, da Mulher, do 25 de Abril, da Mãe); a solidariedade como prática do quotidiano; o centenário das Aparições em Fátima ou a Semana das Vocações; os incêndios. A interpretação que D. Manuel Martins apresenta da vida tem, numa das mãos, os factos e na outra, a palavra bíblica, seja por referência directa ao livro sagrado, seja através de testemunhos relacionados com o mesmo livro.
Mesmo para os seus leitores matosinhenses, o primeiro bispo sadino não esqueceu nestas crónicas a referência à sua “querida diocese de Setúbal”, ao contar, com data de 26 de Setembro de 2016, um caso de “testemunho coerente e corajoso da nossa fé”, assente na Doutrina Social da Igreja - a criação do restaurante social e do consultório dentário social levada a cabo na paróquia de Nossa Senhora da Conceição pelo padre Constantino Alves, um gesto que dá alento ao slogan “todo o homem tem direito a sorrir” e que D. Manuel assim comenta, enaltecendo esta iniciativa da paróquia: “Eu vejo neste slogan o melhor compêndio do respeito pelos Direitos Humanos.”
Uma outra referência à margem do Sado surge pela poesia de Sebastião da Gama, quando, ao evocar as palavras do Papa na recepção que fez aos sem-abrigo, aconselhando-os a nunca deixarem de sonhar, D. Manuel Martins remata: “Pelo sonho é que vamos! Apetece acrescentar.”
A última crónica, “O nosso querido Bispo”, surge datada de 16 de Setembro de 2017, a evocar o prelado portuense D. António Francisco dos Santos (1948-2017), que falecera cinco dias antes. Logo no parágrafo inicial, é dito que este bispo conquistou o Porto em três anos, “em pouco tempo tornou-se alma do Porto”. Depois, são lembrados outros importantes prelados da diocese - D. António Augusto Castro Meireles (1885-1942), D. António Ferreira Gomes (1906-1989), D. Júlio Tavares Rebimbas (1922-2010) e D. Armindo Lopes Coelho (1931-2010) -, todos por razões diversas, mas com uma marca forte no cronista. A concluir, o texto questiona: “D. António Francisco como nos marcará, como marcará o Porto?” E a resposta fecha o artigo: “Para mim, como o nosso querido Bispo.”Não podemos ler esta última crónica sem pensar que, por vezes, a vida nos surpreende. Com efeito, D. Manuel testemunhava sobre prelados que conheceu, tendo como pretexto a morte repentina do “seu” bispo.
Uns dias depois de ter produzido esta crónica - oito, em 24 desse Setembro -, D. Manuel Martins partia também. A forma como fechou a sua derradeira crónica bem podia aplicar-se ao final que poderíamos escolher para um testemunho sobre D. Manuel Martins! Nascemos Livres, este livro, bem pode integrar um testamento espiritual legado pelo “nosso” primeiro bispo!
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