quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A biografia de Domingos Garcia Peres




O nome de Domingos Garcia Peres não é desconhecido na cidade de Setúbal, seja pela inserção do seu nome na toponímia (um beco, um largo e uma rua), seja pela existência de um fundo bibliotecário com o seu nome, doado em 1964 para integrar o Museu da Cidade. No entanto, a sua biografia, baseada em fontes e estabelecida com rigor, teve de esperar até aos finais de 2012, em que foi assinalado o bicentenário do seu nascimento, a acompanhar uma exposição, uma e outra actividades devidas a António Cunha Bento, Carlos Mouro e Horácio Pena.
A biografia, intitulada Domingos Garcia Peres (1812-1902) – Um setubalense pelo coração (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2012), é justificada pelo acto comemorativo, pela admiração que esta personalidade despertou em vida, pela sua intervenção cívica e cultural assente em Setúbal mas fazendo a ponte com outros meios (foi clínico e deputado e manteve colaboração e amizade com o bibliógrafo Inocêncio da Silva e com o espanhol Menéndez y Pelayo, eruditos de renome na área da cultura).
Thomaz de Mello Breyner, médico e amigo de Garcia Peres, no elogio fúnebre do amigo, caracterizou-o como “homem que nunca fez falar de si, por ter sido dotado de uma modéstia tão grande como era o seu coração, a sua inteligência e o seu saber”. Estas qualidades determinaram a admiração, mas não podem ser responsáveis por um desconhecimento sobre a sua personalidade que levou tanto tempo a ser suprido, mesmo em Setúbal, terra onde esteve ligado a eventos e criações importantes como o exercício da medicina, a eleição como deputado, a intervenção no Asilo da Infância Desvalida, a participação na Sociedade de Recreio Familiar, a fundação da Sociedade Arqueológica Lusitana ou a autoria de uma obra importante para a bibliografia como o Catalogo razonado biográfico e bibliografico de los autores portugueses que escribieron en castellano (obra de uma vida, publicada em Madrid em 1890).
Fruto das suas viagens a Espanha, Garcia Peres teve ainda possibilidade de, resultado do acaso, ter conhecido Hans Christian Andersen e com ele ter viajado entre Madrid e Lisboa, em Maio de 1866, época em que o escritor dinamarquês visitou Portugal a convite dos seus amigos O’Neill (tendo permanecido cerca de um mês em Setúbal).
A biografia que Cunha Bento, Carlos Mouro e Horácio Pena assinam passa por todos esses aspectos e momentos da vida deste alentejano nascido em Moura, que, aos 34 anos, chegou a Setúbal (depois de quatro anos em Alcácer do Sal) e que pelas margens do Sado se deixou ficar, numa ligação intensa à terra. Lidaram os três autores com variadas fontes, sobretudo do Arquivo Distrital de Setúbal, da imprensa sadina da época e da correspondência entre Peres e Pelayo, o que permitiu corrigir informações que têm sido divulgadas sobre o biografado, assim se revendo os seus aspectos biográficos.
Num texto preocupado com o rigor e com informação exigente, bem anotado, esta viagem pela vida de Garcia Peres não esquece mesmo a recolha de testemunhos sobre a personalidade e o quotidiano do médico alentejano, resultante de uma leitura que permite inclusivo que o biografado se autorretrate, como se pode verificar em duas passagens bem reveladoras do seu sentido de humor e de disponibilidade – ao escrever sobre a sua prática em Alcácer do Sal, referirá: “ali desfalquei a humanidade até 1844”; em correspondência com Menéndez y Pelayo, dirá: “de há muito que seus são todos os meus livros”, numa prova de permuta incondicional que girava em torno das bibliografias entre os dois autores, levada ao extremo, quando numa outra carta o desafia para lhe renovar a assinatura de uma revista espanhola e redigirá numa outra carta um pacto de troca em termos humorísticos – “a respeito de contas creio-as saldadas; saqueemo-nos mutuamente, segundo possamos; eu, pela minha parte, não deixarei de tentá-lo; faça Você o mesmo e veremos depois quem leva a melhor.”
Figura grada no seu tempo, que suscitou admiração e esteve envolvido em marcos importantes para a história sadina, Garcia Peres tem agora o ensaio biográfico que merecia, enriquecido ainda com alguma documentação fotográfica e com uma tábua cronológica. Um documento cheio de interesse e, sobretudo, credível.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não sei se saberá responder, mas... porque é que a rua tem o nome escrito com "Z" (Garcia Perez)? Há uma confusão tremenda em torno disso. Muito obrigado.