quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Sobre "O barulho das chaves", de Philippe Claudel

Comecemos pelo fim. “A pequena frase que fazia sonhar todos os reclusos que seguiam as minhas aulas, porque ela abria todas as portas, frase que proferi milhares de vezes frente aos intercomunicadores: ‘Claudel, professor…’, frase que, doravante, não voltarei a proferir.” É o último parágrafo de O Barulho das Chaves, curta narrativa de Philippe Claudel (Alfragide: Edições ASA, 2008 – ed. orig.: Le bruit des trousseaux, 2006), que, à boa maneira da escrita autobiográfica, acaba por identificar o narrador, nunca nomeado ao longo da história, com a personagem que une todas as pequenas histórias que vão sendo contadas e com o autor, sobrepondo-os.
Narrativa autobiográfica, onde se acumulam memórias de momentos, de encontros, de histórias, de um período ao longo do qual Claudel foi professor de francês num estabelecimento prisional, onde, ao longo de 11 anos, se deslocou três vezes por semana. O título é sugestivo e recorda o som inconfundível do molho de chaves que se agita na abertura das portas gradeadas. O livro revela a vida da prisão, em jeito fragmentado, vista e sentida por alguém que lá convive e a quem a prisão esmaga.
Logo no início, a primeira reacção de quem sai da prisão pela primeira vez que a visita: “No passeio, na primeira vez que saí da prisão, não consegui começar a caminhar de imediato. Deixei-me estar, alguns minutos, imóvel. Pensava que, se quisesse, podia deslocar-me para a esquerda, ou para a direita, ou ainda sempre em frente, e que ninguém teria nada a dizer. Pensava ainda que, se quisesse, podia ir beber uma cerveja, um Ricard, ou ainda um cappuccino num qualquer café, ou então regressar a casa e tomar um duche, dois duches, três duches, tantos duches quantos quisesse. Compreendi nesse momento que fruíra até então de uma liberdade da qual ignorava a extensão e as aplicações mais comuns, ou mesmo a exacta e quotidiana dimensão.” Este início confronta o leitor com a sua capacidade de ser livre, com as pequenas liberdades que, no quotidiano, se nos apresentam e de que usufruímos, insignificantes, não notadas, de banais. Mas confronta-o também com a riqueza de poder decidir, graças a essa mesma liberdade, aqui valorizada pelo que se viu dentro das grades, onde tudo surge controlado, visado, calculado, com regras próprias.
Depois, as histórias. “Cenas isoladas”, que não demoram mais do que um parágrafo. Muitas, telegráficas, incisivas. E sempre o confronto com a liberdade – “Terminado o meu tempo, saía da prisão. Não saía de prisão. Nunca senti tão intensamente que a presença ou a ausência de um simples artigo definido abrisse ou fechasse tão imensas perspectivas numa língua.”
No final, depois de passar por histórias humanas e de expressar sentimentos relativamente ao visto, o narrador justifica o termo do livro, quase em jeito de desculpa por não ter levado a experiência da prisão até à exaustão e para, simultaneamente, não lhe ser retirado crédito ao vivido: “Enfim, creio ter dito tudo. Dito tudo o que sabia, o que fixei. Pode ser um testemunho, ou mais exactamente um falso testemunho, pois falta-me um coisa essencial para falar da prisão: ter passado uma noite lá dentro. No fundo, não sei se será possível falar da prisão sem nunca lá ter dormido. As horas que passei dentro daquelas paredes formam dias, sim, mesmo meses, mas nenhuma noite, nem uma. Além disso, o que reforça o meu falso testemunho é o facto de ter conhecido apenas um dos lados da prisão.”
Frases vivas
1.A prisão é o lugar onde se dita o que é correcto, admissível, incorrecto, inadmissível. (…) A prisão não elimina as diferenças. Não é de modo nenhum igualitária: o rico continua a ser rico. O pobre é muito pobre. Mas a prisão estabelece a relação entre seres que, em liberdade, nunca se veriam nem falariam.
2. As cores da prisão, raramente alegres ou vivas. As paredes eram pintadas frequentemente mas pareciam sempre sujas, talvez por a própria tinta ser encardida. Lembro-me de amarelos pálidos, de cinzentos um pouco azulados, de beges a tender para o castanho desbotado. A própria luz parecia trabalhada nestas direcções, alimentando uma leve penumbra que nos obrigava a fixar o olhar para distinguir os rostos.
3. Na prisão encontram-se representadas quase todas as idades da vida: bebés nas celas com as mães; velhos, mulheres e homens maduros, adolescentes, vocês, eu. A gravidade dos delitos não depende da idade. Lembro-me de uma rapariga de catorze anos presa por ter estrangulado uma colega da escola, de rapazes da mesma idade à espera de serem julgados por violação colectiva, de um velho, um padre, acusado de pedofilia. A prisão contraria todas as estatísticas, estereótipos, colunas de números tranquilizadores, Limita-se a reflectir o mundo. Muda com ele.

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