quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Tolentino Mendonça: Ler Frei Agostinho da Cruz hoje



Em 3 de Janeiro, o salão nobre da Câmara Municipal de Setúbal encheu-se para a conferência de José Tolentino Mendonça sobre o arrábido Frei Agostinho da Cruz, corriam as celebrações do IV Centenário da Morte e do 480º Aniversário do Nascimento do frade que veio das margens do Lima para as do Sado para uma vida de contemplação, oração e poesia na Arrábida.

Oportuna e intensa foi a intervenção do cardeal madeirense, arquivista-bibliotecário da Santa Sé e poeta. Para lembrar a mensagem, a Câmara Municipal de Setúbal promoveu a edição da conferência sob o título A actualidade de Frei Agostinho da Cruz, contendo, em adenda, as intervenções de saudação de Maria das Dores Meira (Presidente da Câmara) e de Ruy Ventura (comissário diocesano das comemorações) e a de encerramento, por D. José Ornelas, prelado sadino.

A oportunidade da leitura de Tolentino Mendonça resulta da pertinência que os poemas do frade arrábido mostram para o nosso presente. Quase no início do texto, o desafio é lançado: a intenção “não é a de revisitar simplesmente um nome insigne do passado, mas de arriscar um diálogo que faça ressoar, mesmo que muito sumariamente, a importante actualidade de Frei Agostinho da Cruz”, assim se sublinhando a grandeza da figura sobre quem se fala e a perspectiva do diálogo cultural, tornando essa mesma figura um elemento importante para se pensar o hoje.

O ponto de aproximação é o da ideia de “crise”, presente no tempo de Agostinho por um certo desmoronamento “da visão humanista do Renascimento”, num mundo “desgovernado, caótico e trágico”, e presente hoje através de marcas como a “diminuição da confiança nas instituições”, a “falência da ideia vigente de desenvolvimento e de progresso como motores do equilíbrio social” e a “revisão e reinterpretação” dos “pressupostos identitários”. Assim, criadas estão as condições para uma reflexão sobre o destino do Homem, sendo a opção de vida do homenageado entendida como “um laboratório de pensamento acerca do significado último da nossa humanidade”.

Enaltecida é a qualidade que o espaço, a Arrábida, tem para Frei Agostinho - pela intensidade do vivido, ela é vista como “a expressão mais forte e radical do franciscanismo na sua luta pelo culto das origens”, isto é, ali “estavam, na verdade, a acontecer coisas”, testava-se “um silêncio que alterava a palavra” e uma “solidão que iluminava de forma nova a experiência humana”. Por aqui passando, Tolentino Mendonça é crítico relativamente ao “antropocentrismo cego” que caracteriza o nosso tempo e enaltece a conjugação que Frei Agostinho fez entre “um movimento interno de depuração” e “uma ampliação da capacidade contemplativa”, na demanda da “voz silenciosa da natureza como exaltação privilegiada da música de Deus”. O frade arrábido é, assim, apresentado como o iniciador de um percurso de conversão, surgindo o homem vocacionado para ser “cantor do real”, num “horizonte que é a festa” da vida, nos seus caminhos de descoberta do saber e de construção de uma “arte da existência”, talvez a essencial mensagem.

Revela-se de esperança a análise que Tolentino Mendonça faz passar, com referências cruzadas de textos bíblicos e de nomes como Afonso Medina, Anders Retzius, António da Piedade, Daniel Faria, Erich Fromm, Françoise Dolto, José Mattoso, Maria de Lourdes Belchior, Martino Martini, Nietzche, Papa Francisco, Pedro de Alcântara, Rodrigo de Deus, Sebastião da Gama, Silva Dias, Sophia ou Walter Benjamin, todos contribuindo para a construção de um homem que se quer mais profundamente humano e em harmonia com o universo, desafio que, mais do que nunca, temos à nossa frente.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 451, 2020-08-26, pg. 10.


quinta-feira, 30 de julho de 2020

De Setúbal se vê o mundo e o tempo que o faz



Se é verdade que os jornais narram o mundo por episódios que acrescem à medida da periodicidade, também constituem um documento datado (muitas vezes, fonte única) para que a História possa ser feita em qualquer momento, género de visitação ao passado, ali agindo os protagonistas dos tempos, desde o cidadão comum à mais destacada personalidade.

Se dúvidas existissem, bastaria olharmos o livro Setúbal no Centro do Mundo que acaba de sair, editado pelo jornal O Setubalense a partir de ideia do seu director, trabalho coordenado por Albérico Afonso Costa e devido a uma equipa de vinte colaboradores. O título faz justiça ao papel do jornal e localiza-nos (aos leitores e aos autores): Setúbal como miradouro onde o mundo e o passado podem ser revisitados, perspectiva útil para a imprensa dita regional, que deve noticiar o local sem esquecer o nacional ou o universal pelas implicações destes dois universos nas nossas vidas.

O pretexto do livro, trabalhado por uma equipa com ligações a múltiplas áreas do saber (declaração de interesse: sou um dos membros do grupo), foi o 165º aniversário do título jornalístico O Setubalense, puxado para o mundo da imprensa pelo sadino Almeida Carvalho em 1855, data em que O Setubalense se colou à identidade desta região, muito embora com algumas interrupções.

Estruturado em seis partes, Setúbal no Centro do Mundo sustenta-se em diversos vectores que favorecem o pendor narrativo, por um lado, e o encontro com momentos, acções ou personagens essenciais ao espaço setubalense, por outro. Do ponto de vista dos acontecimentos, estão eles organizados em dois grupos - os que têm a marca local, gerados a partir de Setúbal, e os que assentam em mais vastas latitudes, sejam nacionais ou internacionais. Desde 1855, foram escolhidos 55 factos ocorridos na margem do Sado, em áreas tão diversas quanto o associativismo e as colectividades, o lazer, a educação, o desporto, a política, o mundo do trabalho, a mobilidade, os investimentos em obras e melhoramentos, a industrialização, a afirmação de valores, a cultura, a economia, a religião ou a preocupação ambiental. No plano nacional ou internacional, o destaque caiu sobre 23 eventos, selecionados a partir da segunda fase de publicação do jornal (1916), todos de suma importância para o nosso estado de cidadãos pelas réplicas geradas - a título de exemplo, refiram-se a Revolução Russa, a guerra civil em Espanha, as duas guerras mundiais, a guerra colonial, a europeização do Benfica, as implicações do domínio soviético em diversos países, as visitas papais a Portugal, a entrada na União Europeia, o caso de Timor, o nobelizado Saramago ou o 11 de Setembro, todos eles contados a partir daquilo que O Setubalense escreveu na altura sobre os mesmos, via relato informativo ou texto de opinião.

Não se fazendo a história sem personagens, outra parte da obra é construída sobre perfis de 52 nomes ligados a Setúbal durante este século e meio ou sobre os quais houve eventos neste mesmo tempo. Por aqui passam nomes indiscutivelmente conhecidos e divulgados, associados a outros sobre os quais haverá menos conhecimento - Agostinho da Cruz, Américo Ribeiro, António José Baptista, António Maria Eusébio, Bocage, Francisco Paula Borba ou Jacinto João, entre outros, levam-nos à redescoberta, assim como Agripino Maia, António Joaquim de Melo, Armando de Medeiros, Mendes Dordio, José Augusto Coelho, José Bernardo ou Maria Emília Barradas, entre muitos outros, chamam à descoberta. De personagens se fala também num outro capítulo com notícias avulsas, coleccionadas a partir de 1855, tendo como protagonista o cidadão comum e as suas vivências do quotidiano, imagens do que a cidade foi também nas histórias que muitas vezes se não contam.

Finalmente, o jornal e a sua história, porque o leitor deve conhecer esta figura que lhe traz as notícias e as caras todos os dias, surgem num capítulo que contextualiza o tempo em que o jornal se criou e em que são lembradas as várias fases por que passou (por vezes interrompidas por acontecimentos políticos, razões económicas, situações de contexto) e num outro em que são visitadas algumas páginas que tiveram continuidade (das várias possíveis), normalmente ligadas à cultura ou ao pensamento.

Ao ter este livro uma mensagem de saudação do Presidente da República (e sabemos como Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi ligado aos jornais), ele acaba por ser também uma homenagem à própria história da imprensa sadina e a todos aqueles que sistematicamente a fazem para garantir a opinião como um dos elementos-base da democracia. Este é, aliás, um dos aspectos pensado por Viriato Soromenho-Marques no texto introdutório, ao referir a necessidade de o homem “olhar criticamente o quotidiano de uma cidade”, depois de evocar uma interessante e feliz citação hegeliana - “a leitura dos jornais é a oração matinal do homem atento à realidade.”

Setúbal no Centro do Mundo é, pois, um livro para não esquecer - pelo que consegue coligir do muito que nos faz o que somos, pelas histórias que nos (re)conta, pelo contributo para a história local absolutamente interligada com o universal, com a vantagem de todos os contributos serem apresentados em textos curtos e autónomos. Podemos questionar-nos sobre os acontecimentos escolhidos ou as personagens selecionadas... Podemos, claro. Mas esta obra é apenas um olhar plural sobre a vida de uma região, necessariamente com escolhas, sempre discutíveis porque, na nossa livre opinião, conseguimos sempre encontrar um, dois (ou mais) eventos ou uma, duas (ou mais) personagens que deveriam constar. Mas há uma razão de fundo: uma escolha pressupõe os caminhos do essencial, sendo que o mundo se faz com o essencial e com tudo aquilo que o rodeia. Como se costuma dizer: um livro a não perder e a ser visitado sempre que apeteça olhar como chegámos até aqui.
J.R.R. O Setubalense: nº 447, 2020-07-30, pg. 2

quarta-feira, 29 de julho de 2020

O chapéu que defende o descarregador



Foi no início da década de 1980 que uma francesa de Reims e um setubalense dos “Quatro Caminhos” se conheceram em Setúbal. Pretexto: o ofício dele. Passados anos (ela, a caminho do doutoramento; ele, “iletrado”), casaram-se e viveram entre Setúbal e Paris.

Noëlle Perez-Christiaens (1925-2019) e José Miguel da Fonseca (1932-2015) são os autores de Setúbal - ‘Quatro Caminhos’ et le ‘descarregador’ - Petit guide pour découvrir des choses cachées, livro editado pelo Institut Supérieur d’Aplomb (Paris, 1987). Noëlle, etnóloga, correra diversos países por mor da sua investigação - comunidades em que “as pessoas transportam à cabeça, porque, em geral, não sofrem nem das costas nem do pescoço” e, junto do Sado, em Setúbal, encontrou a colónia dos “descarregadores” de peixe, “homens belos como deuses, com uma forma de andar altiva e rápida”, “como árvores tranquilas apesar da brisa marinha”, “humildes”, “simples”. Impressionada, convenceu-os a serem radiografados nas suas posições naturais de trabalho (o primeiro voluntário foi Miguel), usando o característico chapéu de descarregador (utensílio candidato por Setúbal às 7 Maravilhas da Cultura Popular, na modalidade de artefactos), análise que jamais fora feita: “era a primeira vez que radiologistas viam colunas vertebrais em bom estado e as suas formas espantaram-nos”: os descarregadores conservavam o tórax com as características observáveis no “recém-nascido ou nas crianças ainda pequenas, sem as deformações pelas posturas que vão assumindo na escola”.

A investigação levou Noëlle Perez-Christiaens a conhecer as condições de vida desta comunidade (caracterização da cidade, vida na lota, alimentação, tipologia das casas, distracções), guiada por Miguel, havendo referências a outros companheiros de ofício como Ernesto, “Encarnadinho”, Eduardo, “No”, “Piguita”, Silvinho e “Limpinho”, entre outros. Entrar nestas formas de vida justifica o subtítulo escolhido, “pequeno guia para descobrir coisas escondidas”, chamando a atenção dos visitantes, onde quer que eles estejam, para sentirem os valores que o óbvio esconde.

O essencial desta obra visa explicar o contributo do transporte à cabeça para a manutenção da saúde da coluna: “não só o pescoço mobiliza a cabeça para suportar a carga, mas também todos os músculos dorsais, as costas, se ajustam em contra-peso, num movimento ágil e eficaz”, em que a coluna se estira e o tronco se alonga. Nesta acção entra o famoso chapéu do descarregador, utensílio “sagrado”, pois, “sem ele, a vida seria muito mais complicada”, tornando-se “amigo indispensável, que simplifica tudo” naquela profissão. Pela descrição de Noëlle, sobre a cabeça é usado um “lenço”, por cima do qual assenta a “barretina” e, depois, o chapéu (na altura, feito de tecidos grossos bem envolvidos em camada de óleo, hoje construído com outros materiais), circular, com larga aba de forma tubular, resistente à água, aqui se percebendo a sua função primeira: proteger o descarregador da água que escorre das canastras ou das caixas cheias de peixe, que, a partir do barco, transporta à cabeça. Podendo pesar cerca de dois quilos quando seco, o chapéu atinge seis quilos quando molhado, ajudando a suportar cestas que rondam os trinta quilos. Uma segunda função relaciona-se com o proveito próprio do descarregador - o peixe que caia da caixa e se mantenha na aba passa a pertencer-lhe; por outro lado, é também dentro dessas abas que o descarregador prepara o peixe para ser cozinhado. 

Noëlle Perez-Christiaens destacou o que se pode aprender com os descarregadores em termos de posturas corporais e, ao chamar Miguel para co-autor, homenageou este grupo e deu uma prova de gratidão e de amor a quem lhe desvendou este universo.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 446, 2020-07-29, pg. 5.


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Lenda da Arrábida recontada



Em 1989, o padre Manuel Frango de Sousa (1929-2000) assinava o opúsculo policopiado A Lenda de Santa Maria da Arrábida, revelando as fontes de tal narrativa.

O essencial da lenda (candidata às “7 Maravilhas da Cultura Popular” na modalidade “Lendas e Mitos”) conta-se rápido: por 1215, o mercador Hildebrant navegava de Inglaterra para Lisboa e, próximo do destino, uma tempestade atirava o seu barco para a zona da Arrábida; perante desastre iminente, o inglês correu ao camarote para suplicar protecção a uma imagem de Nossa Senhora que o acompanhava, reparando que a figura desaparecera; desamparada, a tripulação rápido se reanimaria ao avistar grande clarão sobre a serra, tentando seguir nessa direcção; na manhã seguinte, os que conseguiram chegar a terra procuraram na serra o sítio de onde brotara o clarão, aí encontrando a imagem desaparecida; Hildebrant decidiu ficar naquele lugar, construindo uma capela, a Ermida da Memória, e iniciando, com alguns companheiros, vida eremita.

Na sua investigação, Frango de Sousa transcreve vários documentos relacionados com esta lenda, começando por reproduzir, a partir de obra de Frei António da Purificação (1638), testemunho de Hildebrant quanto à fundação da ermida e à obra ali iniciada, datado de Março de 1220, acrescentando Frei António ser Hildebrant um religioso eremita, capelão de Bartolomeu, viajante fidalgo a bordo. Quase um século depois, em 1721, Frei António da Piedade dirá que a embarcação de Hildebrant teria vindo parar a Alportuche, não se desviando, no resto da narrativa, daquilo que a lenda contava. Até aqui, as versões apresentadas não eram alheias a oposições entre ordens religiosas (agostinhos e franciscanos) que tentavam a primazia na ocupação religiosa da Arrábida.

Por 1896, Joaquim Rasteiro (1834-1898) relacionou a vinda de Hildebrant com a fuga de comerciantes de Inglaterra na sequência de acontecimentos políticos no século XIII; na restante narrativa, Rasteiro pincelou a paisagem e os sentimentos algo ao gosto romântico, mantendo a linha dos acontecimentos. O último relato recolhido por Manuel Frango de Sousa reproduz o poema de Arronches Junqueiro (1868-1940) publicado na obra Arrábida, organizada por José Maria da Rosa Albino (1874-1941) em 1939 - com 23 estrofes, o texto anuncia a excepcionalidade da história ao dizer: “Vou contar a santa lenda / desta serra. Ouvi, ouvi! / É tão bela esta legenda, / que outra igual eu nunca vi.” Depois, é a luta do homem contra os elementos, buscando a salvação, e o encontro do sítio onde raiou a “luz branca”, poiso da imagem e futuro local de culto.

Uma das razões para o estudo do padre Manuel Frango de Sousa foi a publicação, em 1988, pelo azeitonense Carlos Alberto Ferreira Júnior (1906-1997), de Lenda da Arrábida, longa narrativa em prosa, que não se afasta do essencial da história, povoando-a de marcas locais e de personagens com profundo sentido religioso e tentando explicar o culto popular sentido em Azeitão relativamente a Nossa Senhora da Arrábida.

Em 2014, nova versão literária da história foi dada a conhecer - Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, de Sebastião da Gama (1924-1952), poema de Janeiro de 1942, inédito até ao momento em que a Associação Cultural Sebastião da Gama o divulgou. Contando a aventura de Hildebrant, o texto é sobretudo um poema de fé, em cujo final o homem surge inundado de uma paz interior, possível porque nunca lhe faltou a confiança num Deus próximo.

A lenda da Arrábida, contada a partir da historiografia religiosa, entrou no imaginário popular e na literatura, assim se cumprindo a dinâmica que anima todas as lendas.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 441, 2020-07-22, pg. 14. 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Quando Luiz Pacheco escreveu a Raposo Nunes



Na bibliografia de Luiz Pacheco (1925-2008) constam vários títulos que reúnem parte da sua epistolografia, área em que foi pródigo, talvez por constituir esse género um espaço de liberdade e de autenticidade (à mistura com alguma teatralidade e com alguma preocupação em deixar obra), valores que o nortearam. Entre 1990 (19 de Dezembro) e 2003 (9 de Abril), em Setúbal, o livreiro e alfarrabista João Carlos Raposo Nunes recebeu 22 missivas do seu amigo Pacheco, conjunto que, em 2005, foi publicado sob o título de Cartas ao Léu, agora republicado (Lisboa: Maldoror, 2020).

Organizador das edições foi António Cândido Franco, que assume este reaparecimento como uma oportunidade para “revisitar” aquilo que considera “o retrato de uma geração fim de século que se reuniu à volta de Raposo Nunes entre 1989 e 2000”. Com efeito, o destinatário destas cartas, responsável pela livraria setubalense Uni-Verso, fomentou, nesse tempo, um grupo que tinha como características mais evidentes o amor ao pensamento e à poesia, muitos dos seus elementos participantes na página “Arca do Verbo”, que Raposo Nunes animou no periódico O Setubalense ao longo de quase uma década (362 números, entre 1988 e 1997), por onde passaram cerca de 350 autores, incluindo Luiz Pacheco (em cinco números).

Este conjunto de dezassete postais e cinco cartas tem a primeira mensagem datada de 1990, estando as outras registadas entre 1999 e 2003. O hiato de nove anos na escrita explica-se por ter sido esse o tempo em que Pacheco viveu entre Setúbal e Palmela, propício a muitos encontros entre os dois amigos; em 1999, ao mudar-se para o Montijo (e, depois, para Lisboa), Pacheco recorreu às cartas para o convívio com o amigo de Setúbal.

Não são longas as comunicações; mas são povoadas por muita gente e por uma forma de pensar que põe a descoberto o espírito do emissor. O fascínio de Pacheco pelo estabelecimento do amigo é vivamente demonstrado logo no postal de 1990: “Isso não é uma livraria; isso não é um alfarrabista; isso não é para vender selos da Indonésia. (...) Isso é o Olimpo.” A partir de 1999, o destinatário é referido como “Raposão”, “Senhor Raposão”, “Poeta editor, livreiro”, “Dr.”, “Sr. Raposão-Mor”, “Dr. Raposão”, “Poeta”, “Poeta e Amigão” e “Mister Raposão”, formas de tratamento que demonstram a proximidade, o afecto, a criatividade e a vivacidade discursiva do subscritor.

Os assuntos abordados são diversos - a vida editorial, pedido de livros, o dinheiro (ou a falta dele), os amigos, a opinião sobre algumas obras, desabafos sobre a vivência nas residências por onde passou -, sempre numa escrita de impulso, rápida, eficaz na brevidade, povoada por um sentido de humor à maneira pachequiana - alternando entre o irónico e o terno, o humano e o satisfeito com a vida.

Esta nova edição de Cartas ao Léu apresenta os textos que constavam na anterior (a correspondência amplamente anotada, alguns ensaios sobre a epistolografia e a crítica de Pacheco e um roteiro cronológico de contextualização, assinados pelo organizador; dois textos de Luiz Pacheco saídos no suplemento “Arca do Verbo”;  e apreciações sobre a obra Raposo Nunes assinadas por António Cabrita, Avelino de Sousa e Agostinho da Silva), acrescidos de dois curtos textos que actualizam a obra em termos de bibliografia aparecida nos 15 anos que medeiam as duas edições e justificam a reedição e de fotografias.

Obra a (re)ler. Sobretudo porque revivemos o tempo feliz (apesar de tudo) que Luiz Pacheco passou, à sua maneira, em Setúbal.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 436, 2020-07-15, pg. 10.

sábado, 11 de julho de 2020

Maria Albina Bartolomeu: História(s) de família em Azeitão



O livro abre com uma fotografia do casal José dos Santos e Maria José, em jeito de quem inicia a visita a um álbum de família de que eles serão os inauguradores (se é que há fundadores de família...). Parte importante da narrativa vai viver deste par, bisavós de Maria Albina Bartolomeu, que assina Um dia que mudou vidas (Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2019), recriação da história de várias gerações a partir de relatos transmitidos pela avó, Susana Martins, e pelo pai, Albino Martins.

O propósito é anunciado em nota prévia - “deixar um testemunho dos nossos antepassados aos meus descendentes” - e reforçado no final, ao fechar a narração (e a escrita): “que esta narrativa sirva para os mais novos nunca esquecerem as suas origens”. Assumido o carácter testemunhal, o leitor entra na história da família, muitas vezes ouvindo a voz da narradora, quer enquanto mediadora entre o passado e o presente, contextualizando muitas vezes os tempos e as suas circunstâncias (por vezes, comentando as diferenças resultantes dos hábitos e das modas), quer como responsável pelo enunciado, visível logo no início do primeiro capítulo - “Começo hoje este texto, dia 5 de Outubro de 2017. Primeiro a ideia surgiu de forma espontânea, mas, ao iniciar o mesmo, lembrei-me de que este dia tinha também muito significado na vida de alguns dos intervenientes nesta pequena biografia de uma família.”

José dos Santos (1858-1930), cognominado “Caramelo”, natural da Anadia, chegou a Azeitão em 1866, depois de um percurso em busca da subsistência e marcado pelos medos e pelas inseguranças, sendo acolhido pelo casal Manuel e Josefa num regime de adopção aceite por ambas as partes. Do casamento de José dos Santos com Maria José nasceram vários filhos, acompanhando o leitor o percurso de Susana (1897-1977), que enviuvou de Francisco (1923) depois de seis anos de casamento, relação de que houve três descendentes, sendo privilegiado o percurso de Albino Xavier (1918-2005), casado com Maria Bárbara (f. 2013), também com três filhos, sendo uma das irmãs Maria Albina (n. 1951), a autora, casada em 1975 com Manuel. Quatro gerações passam nesta história, ainda que haja referências aos pais da primeira geração e aos filhos e netos da última.

As personagens vivem entre Azeitão e Setúbal (com alusões a outros locais da região), espaços em que se cruzam com figuras localmente conhecidas (Alexandre Cardoso, o médico Teixeira, Artur Cardoso, Isabel Chagas, Manuel Pato, Peres Claro, Mestre Oliveira, entre outras). Embora a narrativa não explore as descrições, ao longo das décadas abrangidas, há lugar para contextualizar tempos como a Segunda Grande Guerra, a Guerra Colonial, o do receio causado pela polícia política ou o 25 de Abril. A propósito de alguns episódios, surgem também comentários ao presente (“hoje em dia, teme-se que as nossas crianças fiquem afectadas negativamente pelo facto de ajudarem os pais nas tarefas domésticas”, por exemplo), manifestando-se assim o propósito de testemunhar a diferença e a mudança dos valores.

A história (num texto que mereceria uma revisão cuidada) resume cerca de 150 anos do percurso de uma família (1866-2017, entre a chegada de José a Azeitão e o início da escrita), em que intervieram pessoas que foram heróis das suas vidas, numa narrativa que mostra de que são feitas as identidades e que aqueles com que nos cruzamos no mundo são, todos eles, bom assunto para um relato, pois qualquer vida dá um bom filme...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 431, 2020-07-08, p. 10.



sexta-feira, 3 de julho de 2020

Olga de Moraes Sarmento - Vida feita memória



“Nem só as pessoas que foram ou se julgaram importantes podem escrever as suas Memórias. Podem escrevê-las também - e eu diria até que devem escrevê-las - aquelas que com todo o seu coração amaram a vida, a observaram com intensidade, lhe deram grandes momentos de formosura ou de tristeza. Além disso, segundo tudo indica, vivemos uma hora de transições profundas. Amo demais a beleza para descrer dela - e estou certa de que hoje, amanhã, depois, a vida humana em suas evoluções conservará a beleza, ou a ela voltará.” Assim abre o prefácio do seu livro As minhas memórias (Lisboa: Portugália Editora, 1948) a setubalense Olga de Moraes Sarmento (1881-1948), aí denotando duas questões desde logo importantes - o memorialismo como escrita de uma vida intensamente sentida e como forma de recuperação dos aspectos belos da vida, convindo não esquecer que esta obra foi redigida a partir de Outubro de 1942 (até Janeiro de 1948), vivia a autora nos Estados Unidos, ali exilada por causa do que era a dominação nazi na Europa, particularmente em França, onde Olga de Moraes Sarmento vivera antes (acompanhando a sua amiga Hélène de Zuylen, do ramo Rothschild, na fuga da perseguição nazi).

Nestas memórias, a escritora setubalense conta todo o seu percurso, desde as “recordações dolorosas” da infância (a severidade do pai; o cordeiro de que ela gostava como seu “assassinado para o jantar”, gesto que a levou a chorar “niagaras de lágrimas”; o fascínio sentido pelo avô materno, liberal e amigo de D. Luís, figura marcante na sua personalidade; a indignação sentida quando viu o tio a chicotear uma criada negra) à viuvez a que chegou aos 23 anos (e que manteve até ao final dos seus dias) e ao ambiente de salão e de tertúlia de que se fez grande parte da sua vida, animada por conferências e pela intervenção cultural e cívica.

Nascida em Setúbal, foi Olga de Moraes Sarmento aos quatro meses viver para Elvas na sequência de uma colocação do pai, militar. Por influências familiares e sociais, a sua adesão à monarquia sempre a acompanhou, uma das razões por que passou a viver em França após a implantação do regime republicano em Portugal. Desde aí, correu mundo a fazer conferências. As suas casas em Portugal, em França (em Paris ou em Hendaia) ou nos Estados Unidos sempre albergaram o escol cultural da época e, assim, conviveu com os nomes mais representativos da música, da literatura, da pintura e da política dos vários países por onde passou, fazendo amizade com muitos deles.

Episódios intensos deste volume de memórias são vários, podendo-se destacar: o momento em que, em 1919, assistiu ao desfile da vitória dos aliados em Paris; o discurso feito em Setúbal aquando da oferta ao município de parte dos bens que tinha na casa de Paris (“desenhos de Delacroix e Columbano, autógrafos de Goethe, desenhos de Victor Hugo e inúmeras outras” recordações, biblioteca incluída), decisão tomada em 1938, quando viu que a Europa ia ser dominada pela pilhagem; o momento em que, nos Estados Unidos, participou no entusiasmo pelo fim da Segunda Guerra.

“Tempo passato, tempo amato” foi o subtítulo escolhido para este volume de memórias, nele reflectindo o propósito essencial: evocar o passado, sobretudo nos seus momentos felizes, e assumi-lo. Apesar de alguns momentos de crítica social e política, este registo alinha sobretudo na recordação dos momentos de felicidade e de alegria, de convívio e empenho social, percurso pontuado pelos acontecimentos históricos que selaram os 67 anos da autora.

* "500 Palavras". O Setubalense: nº 426, 2020-07-01, p. 12.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

António Oliveira e Castro: Narrar o apocalipse



Que Arrábida? “Lera que os sobreiros tinham desaparecido do sul de Portugal, e que a Serra da Arrábida, ali bem próxima, era uma corcova estéril, branca como um osso de milenar sepultura.” Que Arrábida, outra vez? “Sabes o que aconteceu à Serra e ao Parque Natural da Arrábida?”, pergunta Mafalda, informando logo a seguir que “a indústria do cimento a consumiu, os diques são vorazes.” Que diques? É ainda a mesma personagem que esclarece Ricardo, o irmão: “Defendem Lisboa, Setúbal, Aveiro, Faro, centenas de quilómetros de muralhas, das águas do mar.” Que natureza? Ricardo circulava em Lisboa, olhava as diferenças na comparação dos tempos e “reparava, agora, que as árvores colocadas ao longo da avenida eram de plástico, quase tão perfeitas como as originais.”

Os cenários e as personagens são do ano 2050 e saltam de Ponte Pequim sobre o Tejo (Lisboa: Gradiva, 2020), o quarto romance que António Oliveira e Castro, radicado em Setúbal, assina. Uma narrativa para um ambiente hipotético, mas plausível, dentro de três décadas, num mundo dominado pelas máquinas e pelas tecnologias, resultado do deslumbramento humano, repleto de artificialismos, centrado num eixo entre Xangai e o Tejo - e o leitor pode observar, ao lado da velhinha ponte 25 de Abril, a fulgurante ponte Pequim ligando as duas margens do mesmo rio...

A trama circula pelos encontros e desencontros de uma família, com história de quatro gerações: a de Curibeca (velho sonhador cheio de segredos de um saber único, sempre presente na memória dos dois netos, apesar de a história não se passar no seu tempo), a de Leónidas e Águeda (desaparecidos, julgados mortos, a recusarem o novo mundo), a de Ricardo e Mafalda (irmãos, ele a viver em Xangai, próspero no seu ducentésimo andar, ela a viver em Lisboa, ligada a um “Carocha” desactualizado, crítica) e a de Belchyor (jovem, combatente no exército chinês). É com este último que a narrativa abre e encerra, quase simulando a esperança nas mudanças (sejam elas quais forem) e o desespero pela desumanidade a que se chega. Mas são os irmãos Mafalda e Ricardo, netos de Curibeca, quem mais povoa as páginas destes dez dias, falando cada qual de si, em jeito de diálogo, dando ideia do que pensa do outro, em forma de apartes.

O leitor familiariza-se com os dois irmãos, com um narrador cúmplice que não quer desiludir e se vai mostrando discretamente, em busca “de um mundo naufragado”, enquanto as personagens procuram as suas origens, se revêem nos aromas, sabores e aprendizagens da infância, embora num tempo que não permite a reversibilidade.

Percebe o leitor que a história caminha para o apocalipse e que Lisboa, a “Xangai da Europa”, é, nesse 2050, a cidade “de tralha, de lixo”, que “perdera a sua identidade”, pintada pelo pó vindo do deserto. Entre as obras premonitórias (recordamos Orwell ou Huxley), pode ser inserida esta Ponte Pequim sobre o Tejo, que se coroa com o cataclismo - como em 1755, o perigo chega pela água: um iceberg encostado a Lisboa culmina a destruição, impedindo que as personagens se encontrem, que os laços se restabeleçam, que o mundo e a vida se recomponham. É de agonia este retrato em que nem se sabe quem ficará para ter memória, ganhando crédito a frase várias vezes repetida: “Tudo o que o olho não consegue observar, a mente imagina a dobrar.”

Uma obra a justificar a leitura: pelo enredo narrativo, pela criatividade na construção das personagens, pelo aviso que a literatura pode ser.

* "500 Palavras". O Setubalense: nº 421, 2020-06-23, p. 11.


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Bocage biografado por Daniel Pires



Entre os acontecimentos culturais ligados a Setúbal em 2020 ficará, sem dúvida, a edição da obra Bocage ou o Elogio da Inquietude, assinada por Daniel Pires (Lisboa: Imprensa Nacional), que, apesar de ter o ano passado como data de publicação, só surgiu para o público recentemente, em Maio.

Ao longo de vinte capítulos, entra o leitor nos meandros da vida do mais conhecido poeta setubalense, Bocage (1765-1805), que, no mundo das academias setecentistas, ficou conhecido por Elmano Sadino (conjugando o anagrama do seu primeiro nome, Manuel, e a referência toponímica à sua origem). Esse percurso nem sempre foi de reconstrução fácil, avisando Daniel Pires, em várias ocasiões, ser necessário “recorrer ao campo das hipóteses” para acompanhar o poeta em diversas épocas da sua vida, devido à falta de documentos ou à ausência de referências. Contudo, nesses momentos, o biógrafo informa o leitor sobre a explicação hipotética, avançando com elementos que sustentam a sua interpretação, tornando-se, assim, autor e leitor cúmplices nesta visitação a Bocage e ao seu tempo.

Apesar de o adjectivo gentílico ter sido integrado pelo poeta no seu nome da academia, as referências a Setúbal são escassas na obra bocagiana, parecendo que levou à letra o seu verso “Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado” com que abre um soneto, publicado no primeiro tomo das Rimas, em 1791. Informa Daniel Pires que, a partir do momento em que, em 1783, foi transferido para a Academia dos Guardas-Marinhas, “a sua partida de Setúbal foi quase definitiva”, pois “só terá estado na sua terra natal em 1790, na sequência do seu regresso do Oriente, e, em 1802, quando o pai faleceu.” As causas deste afastamento poderão ser várias, mas não serão estranhas a tal “inquietude” que caracterizou a sua vida, o facto de o pai ter caído em desgraça por um crime não provado e, sobretudo, o desgosto amoroso resultante do casamento de seu irmão com a jovem que o vate amava (Gertrúria, nas referências poéticas, filha do governador do Outão).

Da experiência do poeta no seu percurso de quarenta anos salvou-se a escrita, que lhe trouxe o reconhecimento, ainda sentido em vida: “no início do século XIX, Bocage usufruía de um estatuto literário elevado”, testado nas republicações e no valor que os contemporâneos lhe atribuíram - “o estilo genuíno, a autenticidade, o apuro formal, a capacidade de improvisação e a forma peculiar como dizia os poemas despertavam inequívoca admiração”. Bem interessante é a incursão que o biógrafo faz pela vida editorial do tempo do poeta, assim como pelo historial das edições sucessivas dos poemas de um autor que, apesar do valor que lhe era atribuído, terminou, “para cúmulo, sem túmulo” (título do derradeiro capítulo da obra, algo prenunciador de outros nem sempre simpáticos tratos).

O ritmo das ideias, das viagens, das contendas, dos desgostos, das descrenças, das polémicas, da miséria, da prisão e da falta de saúde, e a qualidade literária sempre acompanharam Bocage, apresentando Daniel Pires contextualizações sobre cada um dos tempos ou cada um dos problemas que enformaram o percurso do poeta (ambientes, regras, costumes, hábitos, em Portugal, no Brasil ou no Oriente) com uma eficácia informativa e uma abrangência plural que guiam o leitor, aliando ainda alguns textos bocagianos a certos momentos biográficos, sem que esta colagem se sobreponha ao reconhecimento literário dos mesmos.

Tratando-se de uma obra de leitura acessível, fortemente alicerçada na investigação (muitos documentos são divulgados pela primeira vez), bom seria que ela constituísse também um alerta para que Bocage reocupasse o lugar que merece nos estudos de literatura e cultura portuguesa do ensino secundário, mesmo por uma questão de cidadania!

* "500 Palavras". O Setubalense: nº 416, 2020-06-17, p. 10.


sábado, 6 de junho de 2020

Luís Amaro - Testemunhos para a amizade



Em 9 de Novembro de 2008, em Massamá, Luís Amaro (1923-2018) escreveu quatro dedicatórias em outros tantos livros que Sebastião da Gama lhe tinha dedicado - Serra-Mãe, Cabo da Boa Esperança, A Região dos Três Castelos e Campo Aberto. As mensagens apresentam idêntico teor, com algumas variações, aqui se transcrevendo a que foi exarada no primeiro dos livros: “À Biblioteca do Museu Sebastião da Gama, em Vila Nogueira de Azeitão, terra natal do Poeta e onde este livro - peça bibliográfica única, porque com dedicatória do querido e inesquecível autor! - ficará mais resguardado, como relíquia que é, oferece comovidamente o Luís Amaro - Homenagem também a Joana Luísa da Gama, Companheira do Sebastião”.
O Museu Sebastião da Gama ficava, assim, com a posse de quatro obras autenticadas com as assinaturas de Sebastião da Gama e de Luís Amaro, dois pólos de uma relação intensa construída sobre a poesia e a amizade, que tivera início em 1945, era Luís Amaro funcionário da Livraria Portugal, em Lisboa.
Ao longo da sua vida, o aljustrelense Luís Amaro foi autor de apenas um livro de poemas, cuja primeira edição saiu em 1949, Dádiva, que reapareceria em reedições de 1975, 2006 e 2011, assumindo um título diferente, Diário Íntimo, a que, em 1975 e em 2011, foi acrescido o subtítulo “Dádiva e Outros Poemas”. Uma interpretação rápida dos títulos permite dizer muito daquilo que Luís Amaro foi como pessoa - muito reservado, mas sempre disponível para oferecer o seu contributo aos outros.
A propósito dos seus 80 anos, um grupo de amigos preparou-lhe uma surpresa - a edição de Para lá da névoa - Homenagem a Luís Amaro (Edições Caixotim, 2005), em que testemunharam 16 autores, rol que integrou dois setubalenses, António Osório e Daniel Pires. Em 2020, novo projecto nos vem lembrar o poeta e bibliófilo alentejano através da obra Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), coordenada por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel e reunindo depoimentos de 19 amigos, incluindo Daniel Pires. A linha que perpassa por todos os testemunhos é a da generosidade do homenageado, autodidacta que sempre abriu portas a quem o procurava, epistológrafo genial, já que a maioria das informações que partilhava seguia através de cartas cheias de anotações, apontamentos, referências. No retrato que a sobrinha Maria Dulce P. Amaro lhe traça, é dito: “O seu percurso não teve nada de fortuito, nem de milagroso. Era um perfeccionista, trabalhou arduamente para atingir a excelência, colocando em segundo plano a sua vida pessoal, que de um modo ‘envergonhado’ frequentemente escondia.”
Por finais de 1990, numa deslocação a Monsaraz com alunos, vi um grupo de três pessoas, parecendo-me ser uma delas o Luís Amaro. Nunca lhe tinha falado, mas conhecia-o de uma fotografia publicada algures e sabia de muita da sua acção em prol da literatura portuguesa. Fui ter com ele, apresentei-me e saudei-o. “Mas como reconheceu que sou o Luís Amaro se nem apareço por aí nos meios?” Lá lhe contei a minha história e os meus afectos literários, por onde passavam alguns amigos dele. Ficámos amigos. As cartas que dele conservo são lições sobre livros, achegas para investigações que me têm envolvido, provas de amizade inexcedível, em duas delas evocando esse encontro alentejano. Subscrevo aquilo que Daniel Pires regista no testemunho deste livro de 2020, chamando a generosidade e a disponibilidade de Luís Amaro para traços maiores. Foi também isso que senti, essa permanente dádiva, de que fui um dos privilegiados.
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 410, 2020-06-05, p. 17.