sexta-feira, 24 de julho de 2020

Lenda da Arrábida recontada



Em 1989, o padre Manuel Frango de Sousa (1929-2000) assinava o opúsculo policopiado A Lenda de Santa Maria da Arrábida, revelando as fontes de tal narrativa.

O essencial da lenda (candidata às “7 Maravilhas da Cultura Popular” na modalidade “Lendas e Mitos”) conta-se rápido: por 1215, o mercador Hildebrant navegava de Inglaterra para Lisboa e, próximo do destino, uma tempestade atirava o seu barco para a zona da Arrábida; perante desastre iminente, o inglês correu ao camarote para suplicar protecção a uma imagem de Nossa Senhora que o acompanhava, reparando que a figura desaparecera; desamparada, a tripulação rápido se reanimaria ao avistar grande clarão sobre a serra, tentando seguir nessa direcção; na manhã seguinte, os que conseguiram chegar a terra procuraram na serra o sítio de onde brotara o clarão, aí encontrando a imagem desaparecida; Hildebrant decidiu ficar naquele lugar, construindo uma capela, a Ermida da Memória, e iniciando, com alguns companheiros, vida eremita.

Na sua investigação, Frango de Sousa transcreve vários documentos relacionados com esta lenda, começando por reproduzir, a partir de obra de Frei António da Purificação (1638), testemunho de Hildebrant quanto à fundação da ermida e à obra ali iniciada, datado de Março de 1220, acrescentando Frei António ser Hildebrant um religioso eremita, capelão de Bartolomeu, viajante fidalgo a bordo. Quase um século depois, em 1721, Frei António da Piedade dirá que a embarcação de Hildebrant teria vindo parar a Alportuche, não se desviando, no resto da narrativa, daquilo que a lenda contava. Até aqui, as versões apresentadas não eram alheias a oposições entre ordens religiosas (agostinhos e franciscanos) que tentavam a primazia na ocupação religiosa da Arrábida.

Por 1896, Joaquim Rasteiro (1834-1898) relacionou a vinda de Hildebrant com a fuga de comerciantes de Inglaterra na sequência de acontecimentos políticos no século XIII; na restante narrativa, Rasteiro pincelou a paisagem e os sentimentos algo ao gosto romântico, mantendo a linha dos acontecimentos. O último relato recolhido por Manuel Frango de Sousa reproduz o poema de Arronches Junqueiro (1868-1940) publicado na obra Arrábida, organizada por José Maria da Rosa Albino (1874-1941) em 1939 - com 23 estrofes, o texto anuncia a excepcionalidade da história ao dizer: “Vou contar a santa lenda / desta serra. Ouvi, ouvi! / É tão bela esta legenda, / que outra igual eu nunca vi.” Depois, é a luta do homem contra os elementos, buscando a salvação, e o encontro do sítio onde raiou a “luz branca”, poiso da imagem e futuro local de culto.

Uma das razões para o estudo do padre Manuel Frango de Sousa foi a publicação, em 1988, pelo azeitonense Carlos Alberto Ferreira Júnior (1906-1997), de Lenda da Arrábida, longa narrativa em prosa, que não se afasta do essencial da história, povoando-a de marcas locais e de personagens com profundo sentido religioso e tentando explicar o culto popular sentido em Azeitão relativamente a Nossa Senhora da Arrábida.

Em 2014, nova versão literária da história foi dada a conhecer - Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, de Sebastião da Gama (1924-1952), poema de Janeiro de 1942, inédito até ao momento em que a Associação Cultural Sebastião da Gama o divulgou. Contando a aventura de Hildebrant, o texto é sobretudo um poema de fé, em cujo final o homem surge inundado de uma paz interior, possível porque nunca lhe faltou a confiança num Deus próximo.

A lenda da Arrábida, contada a partir da historiografia religiosa, entrou no imaginário popular e na literatura, assim se cumprindo a dinâmica que anima todas as lendas.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 441, 2020-07-22, pg. 14. 

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